Opinião
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11 de janeiro de 2023
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16:47

‘Sem caminhos para Gaza’: o Egito e a subserviência aos interesses de Israel (por Andréia Beppu)

Foto: Pixabay
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Andréia Beppu (*)

Ter como foco de pesquisa o Oriente Médio muitas vezes nos entristece, quando analisamos o sistema de poder vigente hoje e vemos que o interesse dos  bilhões recebidos dos EUA, levam alguns grupos que outrora foram aliados dos países árabes e da causa Palestina, a dar apoio ao sistema de opressão realizado na faixa de Gaza, repensamos como de fato o poder econômico ainda impera e talvez possa ser um viés que devemos focar nossas pesquisas, buscando como usar essa questão econômica como um caminho a soluções pacíficas.

No livro Sem Caminhos para Gaza podemos analisar a questão do fechamento da faixa de Gaza e a pressão ao povo palestino pelo viés do regime militar agora após o golpe dado em 2013, pouco temos a cobertura real do que vem ocorrendo no Oriente Médio e esse livro joga luz a essa questão.

Em uma resenha, uma das primeiras premissas indicadas a quem está analisando é ser imparcial, mas ao ler o livro, isso se torna quase impossível. Ao iniciar meus estudos sobre Oriente Médio (minhas pesquisas sempre foram na área comercial e econômica), sempre busquei compreender todo o debate acerta da causa Palestina com certa distância, tentando encontrar um meio termo onde não adotaria um lado, mas quando nos deparamos com determinados relatos não conseguimos.

Divulgação

 Ao ler, o que me vinha à mente era uma narrativa quase hollywoodiana (de grande orçamento, pois tem muita ação), onde simples pesquisadores brasileiros buscaram sobreviver a um sistema quase impossível de se sair vivo. Sim!! O risco de vida era constante naquele cenário. Peguei-me pensando em como quatro acadêmicos, buscando fazer sua pesquisa, sem apoio financeiro, sobreviveram a essa situação.

A princípio eu participaria deste projeto, iria viajar com o grupo para fazer as entrevistas com as mulheres palestinas, pois poderia conseguir chegar a locais em que homens não conseguiriam, devido à questão religiosa, porém quando me disseram que não conseguiram entrar por Israel e decidiram tentar pelo Egito, tiveram de adiantar a viagem e, como ministrava aulas em faculdades particulares e não poderia sair no meio do semestre, não viajei com eles. Ao ler o livro, certo lado meu agradeceu a Deus, mas ao mesmo tempo fiquei triste, pois gostaria de ter dado apoio a esses colegas no momento tão complicado que viveram.

O livro é claro e objetivo, narra a trajetória de aproximadamente vinte dias destes quatro pesquisadores no Egito, retrata como eles foram iludidos por uma diplomacia que tenta mascarar sua posição política, mas que de fato passou a ser clara ao impedir que qualquer pesquisa viesse a ser realizada em solo palestino, mais precisamente, em Gaza. Esses pesquisadores viveram uma montanha russa de emoções, em parte, proporcionada pela burocracia egípcia, que é utilizada como ferramenta para apresentar um Estado que expressa nuances políticas dúbias. Se, por um lado diz: “você pode vir ao Egito, que irá conseguir entrar em Gaza!!”, por outro, atua criando inúmeras barreiras, ou seja, a atuação egípcia hoje é subserviente aos interesses americanos e israelense e o único motivo aparente seriam os bilhões recebidos, que terminam nas mãos militares.

Outro ponto que merece destaque no livro, e que acompanha a narrativa dos pesquisadores, é o fato de que ele traz subsídios históricos para que possamos compreender o porquê de os eventos terem ocorrido daquela maneira. Traça-se um paralelo histórico do que vivem e a questão Israel-Palestina. Ao lermos, o texto sempre remonta a acontecimentos importantes para que possamos compreender os atos e situações que esses heróis da ciência brasileira (sim, heróis!!) se expuseram. Há de se ressaltar que fazer pesquisas sem auxílio ou qualquer subsídio, por si, é um ato de grande coragem. Ainda mais quando o objetivo maior é poder difundir o conhecimento e contribuir para o desenvolvimento do Brasil, ainda mais numa aérea que é tão carente.

Ao ler determinadas passagens, como quando os motoristas estão nos checkpoints, a forma com que estes são humilhados, sempre chegando com a cabeça abaixada, se posicionando como inferiores na escala social, não temos como não nos emocionar, mas como bem esclarecido pelos autores, talvez este seja o “pedestal” utilizados por esses militares egípcios, que também estão na base da pirâmide, em posição  precária, e assim conseguem se sentir na ilusão de estar acima na escala social.

Durante toda a narrativa, vejo uma humilhação constante aos palestinos que têm de fazer o trajeto de Cairo até Rafah, e uma maneira peculiar de sobrevivência dentro do capitalismo nosso do dia a dia, qual seja, a constante necessidade de dar “gorjeta” para prosseguir nesse caminho tortuoso até Gaza. Mais explicitamente, reforça a imagem de que para sobreviver dentro do Estado militarizado e corrupto egípcio, deve-se pagar e ainda fazê-lo como se o militar fosse um ser benevolente e que só está ali para ajudar. Evidentemente que o resultado dessa corrupção latente é um sistema lucrativo e funcional para alguns segmentos da sociedade, o que, por sua vez, tende a se perpetuar.

Ao ler o capítulo onde chegam a Al-Arish, o Estado militarizado ganha status de ator principal. Ouve-se as rajadas de metralhadora e o cenário passa a ser descrito detalhadamente pelos autores. A pobreza e a dificuldade para quem está naquela fronteira, que outrora era um lugar turístico e rico, ganham ar de tragédia. Aquele cenário, de certa forma, me fazia lembrar da série da Netflix Fauda, não só pelo contexto e cenário de guerra contínuo o qual a população Palestina é submetida, mas também pelo fato de ser uma narrativa extremamente complexa da qual pouco temos conhecimento.

Assim como os autores, acabei por ficar refletindo por dias sobre o porquê terem deixado esses pesquisadores chegar até a fronteira entre Egito e Gaza (Rafah), o porquê de terem deixado eles viajarem ao Egito, terem permitido que eles atravessassem o Canal de Suez, que eles cruzasse o deserto do Sinai, tantas situações que os colocaram em risco de morte. De fato, me deixa indignada a frase do Rodrigo, no final, “como eles sabem do Fábio? Não falei nada para eles…”, ou seja, esses simples acadêmicos estavam sendo acompanhados de perto pelo serviço de inteligência egípcio que sabia que eles iriam apenas fazer pesquisas com a Universidade Islâmica de Gaza, mas mesmo assim os impediu. Então, como num jogo de perguntas e respostas, mas aqui sem as respostas, a grande questão que se impõe é: por que deixá-los à beira da fronteira, sem permitir que entrassem em Gaza?

Na minha humilde opinião, como uma pessoa que assiste muitas séries e filmes sobre o Oriente Médio, esse livro deveria ser transformado em um filme ou série. Temos ação e reviravoltas em todos os episódios, sendo que esses pesquisadores, seres reais, viveram algo indescritível, para quem não conhece a dinâmica histórico-política do Oriente Médio. E isso ser colocado em uma tela, apresentado ao público, é algo indispensável, pois estarão apresentando a realidade que a mídia nunca exporá.

Tenho consciência de que estamos diante de um tema polêmico, assim como Fauda, mas por tudo que li, entendo que o que foi vivenciado pelos personagens/pesquisadores do livro, é algo que precisa ser compartilhado e debatido. Essa narrativa política tem sido conhecida apenas dentro do círculo acadêmico e por tudo que representa, eu, como professora, certamente indicarei a todos os alunos que atuam na área internacional.

(*)  Doutorado em História Econômica pela FFLCH/USP. Pesquisadora Associada da Universidade de Londres no Centro de Estudos da Lei Islâmica. Participou de pesquisas no Irã e participa de grupos de pesquisa no Brasil sobre Oriente Médio.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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