Opinião
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29 de janeiro de 2023
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21:54

O Brasil em três tempos (por Céli Pinto)

Posse do Presidente Lula. Foto: Luiza Castro/Sul21
Posse do Presidente Lula. Foto: Luiza Castro/Sul21

Céli Pinto (*)

  1. O governo Lula

O governo que assumiu no dia 1º de janeiro tem muitas qualidades, mas também alguns sérios problemas internos. As qualidades estão, antes de tudo, na pessoa de Lula. Além de sua imensa resiliência e vitalidade, sendo um homem de 77 anos, há de se considerar como fundamental suas virtudes como ser político. Lula tem uma  capacidade de ler o momento político que encontra poucos exemplos na história contemporânea mundial.

Entre as qualidades do novo governo se destacam também outros dois aspectos: a excelência política e técnica da maioria de seus ministros e demais membros o 1º escalão e a rapidez com que os mais urgentes gargalos da crise social brasileira foram identificados, a partir dos quais começaram a ser estruturadas políticas públicas.  

Parte dos brasileiros respiraram aliviados pela primeira vez desde o impeachment golpista de 2016. Há uma sensação de democracia pairando no ar que faz muito bem e dá esperanças de ver o país ser um país outra vez. Nos últimos 4 anos, fomos um pedaço de terra sendo arrasada por milicianos e assemelhados, sendo considerado um pária internacional, com um presidente que causava constrangimento aos seus colegas presidentes e 1º ministros, quando tinham de conviver com ele, mesmo em um rápido coquetel.

Sim, temos razão para estar aliviados, mas é preciso ter parcimônia, por múltiplas razões, relacionadas aos problemas internos do governo. O primeiro deles é a frente amplíssima que forma o seu ministério, com nomes que até ontem estiveram ligados ao governo neofascista. É necessário para a garantia da governabilidade? Talvez.  São cobras guardadas no bolso? Certamente.  Há ministros, uma minoria, sem dúvida, cuja única razão de estar no governo, é mostrar que pertencem a uma direita diferente de Bolsonaro para se cacifarem para as eleições de 2026. Terão sucesso? Depende do poder mortífero do veneno que cada cobra carrega…

O segundo problema do governo é sua política externa e isto está muito relacionado com a própria forma de pensar de Lula. Muitas das declarações feitas nos vinte primeiros dias não precisavam ter acontecido. Que o Brasil é uma liderança inconteste na América Latina não há dúvidas, e ele só não a exerce quando não quer. Por outro lado, não é necessário ir com tanta sede ao pote.  O mundo é outro e a América Latina também. Na primeira viagem internacional, o presidente se atrapalhou com uma ideia mal explicada de “moeda única”, que sabemos ser outra coisa, e criou, desnecessariamente um fuzuê no Brasil, talvez para dar uma sobrevida ao cambaleante Alberto Fernández. Não sou economista e não tenho nada contra este expediente de comércio internacional, mas definitivamente o tema não pode ser anunciado em um discurso antes de ser objeto de estudos técnicos aprofundados.

Também é muito problemática a posição da política externa brasileira em relação a Cuba, Nicarágua e Venezuela. Primeiro porque são três realidades completamente distintas e deveriam ser tratadas como tais, depois porque foi no mínimo infeliz a declaração de que cada um escolhe a forma que quer viver e eles não escolheram a democracia liberal. Ora, Lula diria o mesmo em relação ao governo iraniano ou da Arábia Saudita, que mata mulheres por não usar véu, ou por fazer sexo fora do casamento?

2. As instituições

Os cientistas políticos costumam ter muita confiança nas instituições e afirmam que a democracia vai bem, quando as instituições vão bem. O best seller de Levitsky e Ziblatt  “Como as Democracia morrem” (2017), muito citado e pouco lido, mostra uma realidade bem diversa.

Não me parece que as instituições brasileiras sejam uma tranquila garantia para a democracia e sirvam de apoio institucional ao governo Lula. Em primeiro lugar, considerando o executivo, um nó se encontra nas Forças Armadas, tratadas como uma criança mimada, que não pode ser contrariada. Todo o cuidado é pouco, elas podem se rebelar a qualquer momento, se tirarem algum brinquedo delas. 

Enganam-se aquelas e aqueles que pensam que as Forças Armadas estão pacificadas, que o comandante do Exército é um ícone da democracia. O Exército deu guarida, por mais de um mês, para um movimento insurgente nas portas de seus quartéis. Não foram manifestações pacíficas, apesar de contarem com a participação de amigos e familiares do atual Ministro da Defesa.  Também não adianta dizer que apenas uma parte do Exército esteve envolvido. Ora, as Forças Armadas não se jactam de ter como pilares a ordem, a disciplina e a hierarquia? Como, então, uma parte aceitou insurgentes contra a democracia frente às suas portas? Onde ficaram seus pilares durante este episódio?

Consideremos então o Legislativo. Artur Lira, um fervoroso bolsonarista até as eleições  passadas e Rodrigo Pacheco, que se vê como um misto de JK com FHC, agora defendem o governo, e o governo os defende para as presidências da Câmara de Deputados e do Senado, respectivamente. Os dois, candidatos a reeleição, estão fazendo acordos que lhes dão grande poder e sabem, como qualquer um de nós, que o governo Lula dependerá terrivelmente deles para aprovar seus PLs e PECs. Além disso, mas não menos importante, eles terão ainda o poder de impedir os processos de impeachment que chegarão aos magotes nos próximos anos.

Na Câmara de Deputados, o 1º vice presidente será do PR, os 2º e 3º, do PL. A primeira secretaria deverá reconduzir Antonio Bivar, do União Brasil, ex-presidente do PSL e grande construtor da candidatura Bolsonaro. Brigaram, durante o governo do capitão, parece que por razões pouco publicáveis. Neste acordo de Lira com o governo Lula, o PT, a segunda maior bancada da Câmara, ficará com a 2ª secretaria, que caberá a uma das mais importantes e batalhadoras deputadas da Câmara, Maria do Rosário. Para dizer o mínimo, injusto ou covarde.

Resta ainda o judiciário, mais especificamente o Superior Tribunal Federal, profundamente ferido em suas togas, seja pela falta de compostura do governo Bolsonaro, seja pelo risco que a própria instituição sofreria, caso o capitão se reelegesse.  No momento em que até seu escultural Palácio foi vandalizado, ao STF não resta outra atitude a não ser defender a democracia, mas não foi sempre assim.  Ao longo da operação Lava Jato, do processo do impeachment golpista de Dilma e durante a prisão de Lula, o STF contribuiu mais para a destruição das instituições políticas do que para a manutenção da democracia. O famoso voto da Ministra Rosa Weber “não tenho prova cabal contra Dirceu, mas vou condená-lo porque a literatura jurídica me permite ” é a síntese da forma de agir da corte. Portanto, não devemos nos iludir com os compromissos com a constituição e com a democracia do STF. Eles estão salvando a própria pele. Só o tempo dirá se o susto valeu para incorporarem uma nova postura realmente democrática.

3. Os ideologizados

Não vou falar de povo brasileiro, nem de eleitores de Bolsonaro, mas de um fenômeno mais grave, que não é novo, não é brasileiro em sua origem, nem tem lado ideológico. Trata-se do que se poderia chamar de ideologia como religião.

A religião, ao expressar a relação de cada um com sua própria existência, é um assunto privado, que merece todo o respeito. Quando se torna instituição que impõe comportamentos, constrói discursos fechados de verdades absolutas, torna-se uma ideologia totalitária, que dita verdades incontestáveis, cria dogmas de fé e não permitem o contraditório.

O totalitarismo tem a pretensão de fixar significados para a família, a educação, a sexualidade, o patriotismo, a guerra justa, o imperialismo e poderia continuar dando exemplos Ad Infinitum.  O sucesso do projeto totalitário decorre de convencer um povo de que qualquer crítica a um significado fixado corresponde a uma traição à fé, à verdade. Quando enfrentado, não constrói um argumento, mas justifica o comportamento apontando uma razão passada. Bolsonaro, ao falar dos atos golpistas de 8 de janeiro, se referiu às manifestações de 2013. A referência é absurda, até porque as manifestações não foram de esquerda, como disse, mas isso não interessa, já que o objetivo era justificar o vandalismo de seus apoiadores. Racistas empedernidos e amorais justificam a escravidão no Brasil, afirmando que ela existiu na África.

A este construto de fé chamo de fração ideologizada da sociedade. Outro dia, defendi a vacina contra a Covid para uma atendente de lavanderia, que me disse: “não tomo, não acredito, sou livre”. Não há contra-argumento possível a uma declaração como esta. Para uma parcela da sociedade, os cientistas estão mentindo, as organizações Globo são agentes do comunismo internacional, por mais cômico que isto possa parecer. A ideologização, que não tem nada a ver com ideologia, é o princípio da verdade, o que dá uma grande tranquilidade aos que creem. Há resposta para tudo, nada gera dúvida, nada é ameaçador. Assim como na religião, o criador nos salvará. O totalitarismo alimenta cada um em cada certeza. Os regimes totalitários e as ideologias totalitárias não embalaram e embalam tantos porque os seres humanos são do mal, mas porque são frágeis. E quanto mais consciência tiverem de seus privilégios  ou paradoxalmente de sua miséria nesta sociedade profundamente desigual, mais frágeis se sentirão. E maior será seu desejo de se sentirem acolhidos por verdades absolutas.

No Brasil, os anos de esbórnia política, provocada por lavajatismos, impeachments, condenações ao bel-prazer de um juiz que queria ser ministro, levaram parte da população a uma ideologização absurda.  Religiosa e irracional. Não há caminho fácil para trazer estas pessoas para o difícil mundo do real. 

A democracia voltou, mas é preciso muita vontade política e um pouco de sorte, diria até, para conseguir vencer tantos obstáculos.

(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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