Opinião
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22 de dezembro de 2022
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06:40

De caranguejos e vira-latas (por Tarson Núñez)

Prefeitura quer
Prefeitura quer "importar" ideia do letreiro de Hollywood para Porto Alegre. (Foto: Pixabay)

Tarson Núñez (*)

A proposta da prefeitura municipal de Porto Alegre de colocar um enorme letreiro com o nome da cidade na encosta do Morro da Polícia é uma síntese muito expressiva de todo um modelo de desenvolvimento urbano que vem sendo implementado na capital gaúcha há mais de uma década. Apresentada como uma ideia inovadora e criativa, esta proposta, se for analisada com um mínimo espírito crítico, não passa de uma simplória imitação de um símbolo icônico e antigo de uma cidade da costa oeste norte-americana. Aliás de gosto duvidoso e valor cultural muito restrito. Digo que esta proposta sintetiza todo um modelo porque é um exemplo de uma ideia de cidade que vem sendo implementada, mas que é muito pouco discutida e questionada.

Isto porque o debate sobre o desenvolvimento urbano de Porto Alegre sofre muito com a simplificação e a manipulação da opinião pública. A aliança hegemônica hoje na cidade, que envolve a prefeitura municipal, o capital imobiliário e a mídia corporativa, criou uma forma fácil de evitar um debate consistente: caracterizar os críticos deste modelo usando a metáfora dos caranguejos. Quem é contra o modelo é tachado de conservador, atrasado, de ser contra o progresso, de não ver que as políticas atuais são o caminho do avanço e do progresso. Os caranguejos, portanto, estariam contra a adoção das boas práticas, consagradas internacionalmente. A prefeitura, segundo eles, estaria adotando iniciativas sintonizadas com o que há de mais moderno e avançado no mundo. A resistência dos caranguejos, portanto, prejudica a cidade.

Acontece que este tipo de discurso não passa pelo teste da prática. Se olharmos para a vida real, sem as lentes da mídia corporativa, poderemos facilmente constatar que as ideias que orientam as ações do poder público municipal são profundamente atrasadas. O que se está propondo, e pior, o que se está implementando em Porto Alegre, são políticas totalmente retrógradas, que vão na direção contrária de tudo que se está fazendo de mais avançado em termos urbanos pelo mundo. O caminho escolhido se resume a mimetizar políticas que já estão mais do que superadas nas cidades desenvolvidas.

Um primeiro exemplo, o favorecimento da especulação imobiliária. O atual governo flexibiliza as regras do Plano Diretor, beneficiando as grandes incorporadoras, que produzem basicamente habitações de alto padrão ou prédios corporativos. Agindo assim a prefeitura se omite em relação ao problema muito mais importante que é o da habitação popular, do direito à moradia. E o resultado, em termos urbanos, é muito claro. Vemos se multiplicarem na cidade prédios enormes com o clássico modelo concreto armado, alumínio e vidro, todos virtualmente iguais e parecidos com prédios de qualquer outro lugar do mundo. Ou então condomínios fechados de luxo, que perpetuam o apartheid social e a desigualdade nas condições de vida dos cidadãos. Será este um modelo inovador?

Um segundo exemplo: a mercantilização dos espaços públicos. O patrimônio de todos os porto-alegrenses vem sendo sistematicamente dilapidado, repassado de forma barata a “investidores” que transformam estes espaços em instrumentos de acumulação privada. Se estabelecem belos espaços para o usufruto de quem pode pagar, limitando ao mesmo tempo o acesso dos cidadãos comuns. Mesmo não sendo espaços formalmente fechados, o perfil e o custo de acesso servem como um mecanismo de seleção dos frequentadores. E os donos do dinheiro passam a fazer mais dinheiro às custas de espaços que deveriam ser de todos nós.

Um terceiro exemplo é o da privatização das empresas públicas, mais uma contribuição do governo municipal no sentido de privilegiar os que tem mais em detrimento do conjunto dos cidadãos. O sucateamento e desmonte da Carris, o esforço pela privatização do DMAE são dois exemplos de uma gestão que privilegia o capital em detrimento dos moradores da cidade. E nos dois casos ameaçando direitos essenciais do cidadão, o acesso à água e a mobilidade urbana.

Um quarto exemplo é o da supressão da democracia. O Orçamento Participativo está totalmente esvaziado. Para o ano que vem serão dedicados R$ 15 milhões, que representam menos de 0,1% do orçamento total do município. Mas o desapreço pela democracia não termina aí. O governo municipal vem alterando as leis que regem os conselhos municipais de políticas públicas, alterando sua composição e atribuições, reduzindo a participação da sociedade civil e retirando seus poderes deliberativos.

Por fim uma outra política clássica dos governos do atraso urbano, o privilégio ao transporte individual de passageiros, os carros, em detrimento do transporte público. São ruas do centro que antes eram restritas a pedestres e hoje circulam veículos, é o estacionamento de carros no Largo Glênio Peres, são propostas recorrentes de novos estacionamentos. 

Este breve resumo aponta a natureza e o conteúdo das políticas urbanas levadas a cabo por esta coalizão prefeitura, capital imobiliário e mídia corporativa. É fácil perceber que tudo isso, em que pese sua fachada “moderninha”, é mais do mesmo, apenas uma reprodução de políticas neoliberais do século passado. Uma política que busca copiar um modelo falido, que se expressa hoje em um mundo em crise econômica, política, climática e cultural. Isto reflete um ponto de vista que já tinha sido identificado por Nelson Rodrigues, o tradicional complexo de vira-latas que caracteriza as elites brasileiras, sempre querendo copiar o que se faz no chamado “primeiro mundo”.

A questão é: se fosse o caso de copiar o que se faz pelo mundo, deveríamos olhar a realidade e não um modelo teórico e ideológico. Pois nem mesmo nos países desenvolvidos estas políticas são mais implementadas. Portanto, além de vira-latas, nossos governantes são ainda atrasados, pois buscam copiar o que se fazia pelo mundo nos anos 80 e 90 do século passado. O mundo vem superando o neoliberalismo faz bastante tempo, e um olhar sobre as maiores cidades do planeta aponta para um rumo totalmente diferente do que é proposto por Melo e sua turma de privatistas. 

Em Berlim e em Viena os governos locais vêm fazendo profundas intervenções no mercado imobiliário. Controle de preço dos aluguéis, restrições à especulação imobiliária, investimento na habitação social. É isso que fazem as cidades mais avançadas do planeta hoje, priorizam o direito à moradia e não a valorização do capital imobiliário. O poder público deve priorizar os interesses da maioria. Em Paris, a prefeitura reestatizou a gestão do fornecimento de água, que tinha sido privatizada em 1984. Em três décadas de experiência prática ficou evidenciado que a gestão privada da água tinha resultado em serviços deficientes e caros. Por isso, em 2008 o governo da cidade não apenas retomou o controle da empresa como estabeleceu mecanismos democráticos de gestão onde os cidadãos também tem representação na condução dos serviços.

Na maior parte das maiores cidades dos Estados Unidos, pátria do liberalismo, o sistema de transporte é público, gerido pelos governos locais. Em Nova Iorque, Boston, Chicago, o transporte de massas não é uma atividade privada voltada para o lucro, mas sim um serviço público cuja lógica é de atender bem os cidadãos. Em Barcelona, a prefeitura criou, em 2018, uma empresa pública de energia elétrica, que provê energia que vem 100% de fontes renováveis e também é gerida de forma democrática, com participação de representações dos cidadãos usuários do serviço.

Por fim, a questão da democracia. Enquanto Melo desmonta o Orçamento Participativo, o mundo avança na participação cidadã. Hoje existem mais de 11 mil casos de OP sendo implantados pelo mundo, dos Estados Unidos à China, do Senegal à Finlândia, passando pela Rússia e a Coréia do Sul. Cidades como Paris, Seul, Taipé todas buscam ampliar a participação cidadã, enquanto em Porto Alegre estamos regredindo.

Todos estes exemplos, e haveria muitos mais, servem apenas para mostrar que nossos vira-latas locais deveriam olhar melhor os exemplos que vêm de fora. Ao invés de copiar um modelo dos anos 80 do século XX, o neoliberalismo e sua apologia ao mercado deveriam se mirar nos exemplos de governos municipais que se orientam pelas necessidades dos cidadãos e não apenas dos setores poderosos economicamente. 

Pensar nas formas de transformar Porto Alegre em uma cidade relevante em termos globais, capaz de atrair investimentos, de gerar prosperidade, não passa por reproduzir um modelo ideológico e falido. Ao contrário, passa justamente pela busca de construir alternativas criativas e inovadoras. Não podemos reproduzir as receitas do passado, precisamos justamente buscar fazer diferente.

Isto fica muito claro quando se olha para as ações que efetivamente fizeram Porto Alegre atrair as atenções do mundo. Foram justamente ações que iam na direção contrária ao modelo neoliberal. Se alguém visitar a sede do Banco Mundial em Washington e falar com alguém sobre Porto Alegre, provavelmente esta pessoa vai mencionar o Orçamento Participativo. Se alguém for a uma universidade da Alemanha ou da França e perguntar sobre Porto Alegre, certamente vão mencionar o Fórum Social Mundial. Foram iniciativas muito mais relacionadas com as posições dos caranguejos do que dos vira-latas. Nossos guaipecas locais deveriam se mirar nestes exemplos e não nas políticas neoliberais.

O que pode projetar nossa cidade, gerar atração de investimentos e prosperidade é um modelo alternativo, focado na criatividade, na inovação e na sustentabilidade. Um mundo onde a consciência ambiental é crescente, onde muitas empresas se focam na responsabilidade social e ambiental (a chamada ESG – Environmental Social Governance), é um mundo que vai olhar não para a repetição de políticas privatistas, mas para a inovação social. O que pode atrair investimento internacional para a capital dos gaúchos é o diferente, e não mais do mesmo.

A inovação em Porto Alegre está nas feiras ecológicas e na agroecologia, na participação cidadã, nas iniciativas dos pequenos empreendedores que estão revitalizando o Quarto Distrito, no cicloativismo, na ocupação dos espaços públicos pelos cidadãos em suas feiras e eventos culturais públicos e gratuitos. Nosso futuro está nas universidades, nos centros tecnológicos e de pesquisa existentes na cidade. É apoiando iniciativas inovadoras e criativas que vamos nos tornar uma cidade global e competitiva e não repetindo uma receita que há 20 anos tem nos levado à estagnação e à mediocridade.

Portanto entre os caranguejos e os viralatas, parece evidente que os simpáticos artrópodos têm muito mais razão do que os guaipecas vira-latas, que têm como modelo transformar nossa cidade em uma cópia de Miami, Dubai ou Camboriú. Essa é uma escolha que vai determinar o futuro de nossa cidade, e que, sem dúvida, demanda uma discussão pública muito mais profunda e objetiva do que a que vem sendo realizada nos últimos anos.

(*) Doutor em ciência política, pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles e membro do Grupo de Pesquisa Identidade e Território

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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