Opinião
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4 de novembro de 2022
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20:34

Entre a aparição e a desaparição, entre o luto e a mitologia (por Lucas Donhauser e Danichi Mizoguchi)

Foto: Joana Berwanger/Sul21
Foto: Joana Berwanger/Sul21

Lucas Donhauser e Danichi Mizoguchi (*)

Dia 2 de novembro de 2022 foi feriado nacional, dia dos finados. Nessa data, paramos para lembrar e homenagear aqueles que nos deixaram. Este ano o feriado aconteceu em uma quarta-feira cinzenta, três dias após o segundo turno das eleições presidenciais em que Lula foi eleito para o seu terceiro mandato como presidente da república”.

O segundo turno aconteceu no domingo, dia do descanso dos mortais. Era passado das oito horas da noite quando recebemos a notícia aguardada com muita apreensão e expectativa: Lula estava matematicamente eleito, e foi uma vitória com uma diferença de pouco mais de 2 milhões de eleitores, quase 2% dos votos válidos. Festejamos, bebemos, comemoramos. Foi a vitória não só da democracia, mas de uma política de desejo – o pleito eleitoral apenas confirmou isso. 

A impressão que tínhamos, logo após a confirmação da vitória, era de que um velório estava em vias de acontecer. As redes sociais e os jornais começaram a circular imagens e frases de luto: a bandeira do Brasil em cores preto, vermelho e branco. Parecia ser não só a derrota, mas a morte de algo. Do outro lado também circulavam frases e imagens, mas com outro teor. As frases que circulavam eram falas do próprio presidente, feitas durante os períodos críticos da pandemia de Covid-19, como esta: “E daí? Não sou coveiro”. Era a resposta de quem parecia dizer que não reconheceria luto algum, de quem não pôde chorar seus mortos; era o desabafo de uma grande parcela da nação a quem foi negado o processo de luto e não foi reconhecida a dor.

No clarear do dia, após a vitória e as comemorações, fomos nos dando conta de que o luto dos vencidos começava a ser recusado, mas não pela esquerda. As rodovias, por todo o país, começavam a ser bloqueadas com caminhões, ônibus, pedras, pneus queimados, caçambas de terra, blocos de concreto, bandeiras, eleitores vestidos de verde e amarelo e muito patriotismo. Havia focos de motins em todo o país, e se antes fechar ruas e rodovias era uma prática de terroristas e vagabundos de esquerda do MST, parecia que o patriotismo queria agora reivindicar esse lugar para si. 

Bolsonaro não se pronunciou desde a confirmação da derrota e não fez nenhuma aparição pública. Não havia, quase dois dias depois, nenhuma previsão de aparição e de um pronunciamento público de reconhecimento da derrota. E foi somente no fim da tarde do dia primeiro de novembro que ele deu uma tímida declaração, agradecendo seus eleitores, mas sem reconhecer a derrota, dizendo que “nosso sonho segue mais vivo do que nunca”. Foram quase dois dias de expectativa tanto do pronunciamento quanto da aparição, tanto do reconhecimento da derrota quanto do início da transição democrática. 

A expectativa não se concretizou e não se concretizaria de imediato; era a recusa não só da derrota, mas do luto, e esse período de desaparição que antecedeu o pronunciamento é chave para lermos os desdobramentos de nossa cena política atual, pois se antes da derrota a sua aparição era fundamental para agitar as moléculas de fascismo contra tudo e contra todos, a sua desaparição após a derrota continuou cumprindo o mesmo propósito, mas, como poderíamos imaginar, através da mobilização do ódio do luto, recusando a possibilidade de se começar a fazer o luto do ódio.

***

À medida que as horas passavam, parecia ser proporcional a crescente do sentimento de ódio, como se, ao permanecer em um estado de desaparição, as manifestações ganhassem uma intensificação, escalonando em focos de bloqueios de rodovias, ameaças a estudantes e no desejo de golpe. Essa relação entre desaparição e intensificação do ódio não é fortuita, e devemos estar atentos à relação entre ódio e luto, entre o luto e a mobilização do ódio.

As palavras de Freud, logo no início de “Luto e melancolia”, sinalizam para essa experiência: “o luto, via de regra, é a reação à perda de uma pessoa querida ou de uma abstração que esteja no lugar dela, como a pátria, a liberdade, um ideal, etc.” [1]. Em nossa sociedade, a experiência majoritária do luto passa pela possibilidade de velar e sepultar o corpo. É o corpo presente, que se faz em aparição, que permite o processo de passagem, isto é, a reação de transposição da dor psíquica provocada pela perda do objeto de investimento de amor. A passagem pelo luto passa pela necessidade de se poder direcionar o ódio ao objeto de investimento de amor e, em certo sentido, poder matá-lo. 

É preciso, no luto, realizar um trabalho que consiste em desinvestir a libido do objeto perdido, e isso não se faz de forma pacífica. Não se abandona de bom grado uma posição libidinal, mesmo que um substituto esteja à espera, e contra esse movimento de desinvestimento, diz Freud, levanta-se uma notável oposição. Esforça-se para prolongar, por todos os meios possíveis, a existência psíquica do objeto. Há, por um lado, a evitação do trabalho sobre o luto, e a derrota nas urnas foi apenas uma parte do processo de elaboração. Há, também, por outro lado, o temor e a evitação de passar para uma posição melancólica, em que a perturbação da autoestima incidiria com força sobre cada um que depositou algo em Bolsonaro.

Segundo Freud, uma das diferenças entre o luto e a melancolia se estabeleceria em um traço específico: a perturbação do sentimento de autoestima, isso porque o objeto de investimento passa a ser o Eu, isto é, toma o Eu (ego) como palco de um conflito de investimento de amor e de ódio. No luto, preservar-se-ia o desânimo profundamente doloroso, a suspensão da intensidade pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar e a inibição da capacidade para realização, mas estaria ausente o rebaixamento da autoestima, “que se expressa em autorrecriminações e autoinsultos, até atingir a expectativa delirante de punição” [2].

No caso da melancolia, tomando o Eu como objeto de investimento, estaríamos diante, portanto, de um conflito interno entre uma paixão fascista e o ódio mobilizado para desligar esse investimento. Na posição melancólica, haveria a necessidade de se confrontar com o retorno da pulsão tanática sobre si, tomando a si como objeto de investimento e do conflito entre a paixão fascista e o ódio que permitiria a ruptura desse investimento.

Chamemos esse investimento de investimento de paixão fascista, ou pulsão fascista, tendo em vista que ele é desinvestido de Eros e reinvestido de Tânatos. Dispensa-se uma explicação mais extensa e evidente do porquê, uma vez que a realidade não parou de tornar evidente que sempre houve um enorme investimento de desejo de destruição e morte durante os anos de gestão do governo Bolsonaro, especialmente na pandemia de Covid-19 – aliás, foi exatamente esse investimento de desejo que o elegeu em 2018. 

As reações agressivas que vimos escalonar com a desaparição de Bolsonaro são também reações que tentam resistir ao processo de passar pelo luto e, sobretudo, tentam se proteger de uma posição melancólica mais violenta e insuportável. As reações que acompanhamos são de uma dupla evitação: evita-se passar pelo luto ao se deparar com a morte do objeto, sendo forçado a desinvestir a libido desse objeto, e evita-se, por outro lado, entrar em uma posição melancólica na qual se tomaria a si como objeto de reinvestimento tanto da paixão fascista quanto do ódio.

A desaparição de Bolsonaro e de tudo aquilo que ele corporificou fez aumentar a tensão e garantia um mínimo de esperança de que o objeto de investimento ainda permanecia vivo. O ódio suscitado pela derrota – portanto, pela morte –, estando solto e não podendo ser direcionado para o objeto, traria como consequência reações violentas contra tudo e contra todos que não estivessem sentindo a perda, e não foi surpresa o que vimos nas ruas e rodovias; reações golpistas como uma última tentativa de investimento libidinal em um corpo já em putrefação e que nunca foi, embora sempre se pretendeu, viril, imbrochável e imorrível.

Bolsonaro era um mito, assim sempre foi chamado por seus apoiadores, um mito que aparentemente tinha uma áurea sobre-humana, acima de tudo e acima de todos. A sua desaparição fez com que o seu corpo não pudesse mais ser o objeto de investimento do ódio, necessário ao começo do trabalho de luto. O efeito foi a recusa do abandono do investimento fascista, e aí reside o ponto crucial de nossa cena política, entre a aparição e a desaparição, entre o luto e a mitologia.

Se por um lado é precisa realizar o trabalho sobre a perda e, nesse sentido, será necessário conseguir odiar o objeto antes amado, a grande questão é que o processo se apresenta como uma recusa desse desinvestimento de desejo, porque não havia, até então, aparição do corpo, e quando ele apareceu, não reconheceu a vitória de seu opositor – o que seria sacramentar a sua derrota. 

Na derrota das duas grandes experiências fascistas, Hitler e Mussolini, o corpo foi objeto de cuidado e atenção. No primeiro caso, planejou-se a sua desaparição e qual o método a ser utilizado para se atingir o objetivo: ele seria cremado e não sobraria nenhum vestígio. No segundo, ao contrário, o corpo seria capturado, mutilado e exposto, de cabeça para baixo, em praça pública no centro de Milão. Nas duas experiências, seja pela aparição ou pela desaparição, o corpo teve a morte como destino, seja pelo último gesto suicida, seja pela humilhação da captura.

A aparição imediata de Bolsonaro e o reconhecimento da derrota seria um desfecho humilhante. Ele precisou jogar com a aparição e a desaparição, como quem tem a necessidade de suscitar dúvidas e alimentar esperanças. Não nos surpreenderíamos se ele, na condição de mito, triunfasse heroicamente quem sabe através de uma desaparição suicida. Morrer com a glória de um mito, de preferência quem sabe como Hitler, do que ser humilhado publicamente como um mortal, reconhecendo a própria derrota.

Nas horas que se sucederam ao desfecho final das eleições, a sua desaparição deve ser entendida não menos que uma posição suicida. O gesto de não falar, o gesto de não se apresentar em público é o gesto paradoxal de quem está derrotado e não está derrotado, de quem está morto, mas não está morto. É a radicalização da “pulsão do inimigo”, como descreve Achille Mbembe, em que a sua desaparição ou morte pressupõe também a morte desse outro, portanto, um triunfo de sua vida, na morte, sobre a vida desse outro, matando-o. “O suicida não quer mais se comunicar, nem pela fala nem pelo gesto violento, exceto talvez no momento em que, dando cabo da própria vida, também põe um fim à vida dos seus alvos. O matador se mata e mata ao se matar, ou depois de ter matado” [3].

A desaparição do corpo de Hitler, repetida por Bolsonaro, mas não levado às últimas consequências como o primeiro, nos faz relembrar, quando da notícia de sua derrota iminente, do telegrama 71 enviado pelo Führer: se a guerra está perdida, que pereça a nação. Na cena brasileira, estando as eleições perdidas, o desejo investido é muito parecido: que pereça a nação – esta, tomada já e sobretudo como inimiga. 

Esse ato suicidário de desaparição quer fazer a transmutação da carne em espírito, tornar-se mártir, “vida essa que ele acredita residir junto ao próprio Deus. Ela nasce de uma vontade de pureza”. Eis por que a desaparição do corpo é importante para o fascismo, uma vez que “pôr fim à própria vida ou abolir-se a si mesmo é, pois, incumbir-se da dissolução dessa entidade aparentemente simples que é o corpo” [4].

***

Vencemos as eleições, mas não significa que realmente vencemos o fascismo. Não bastará a vitória nas urnas para dar fim ao caos, será preciso um trabalho sobre o luto. O corpo frio de Bolsonaro apareceu em público no dia primeiro de novembro e depois desapareceu, alimentando as esperanças de que ele ressurgiria de maneira messiânica, jogando com o ódio do luto para evitar o início do trabalho de luto sobre o ódio.

A quarta-feira, celebração dos mortos, foi também a data que as multidões de eleitores de Bolsonaro escolheram para ir às ruas protestar, fazendo coro às paralisações dos caminhoneiros nas rodovias, enquanto ele permanecia em estado de desaparição. No final da noite, reapareceu, como se quisesse passar a mensagem de que estaria vivo, porém, suas palavras sinalizaram para uma ruptura quem sabe capaz de enfraquecer a paixão fascista. Ele reconheceu a derrota.

O dia após o feriado de finados apresenta-se como início de abertura à possibilidade histórica de início do sepultamento não só da representação mítica de Bolsonaro, não só do corpo de Jair, mas de toda uma paisagem fascista que se formou e na qual, certamente, ele fazia parte – e todos que a ela se agarraram libidinalmente. Nunca se investe libidinalmente, como sublinhou Deleuze, senão uma paisagem em que o objeto faz parte, afinal, “qual ser amado não envolve paisagens, continentes e populações mais ou menos conhecidos, mais ou menos imaginários?” [5]

A derrota, em especial, é o início da possibilidade de experiência do luto de uma paisagem que sempre se pretendeu pura e divina, e que diz precisamente de um modo de subjetivação racista, classista, xenofóbico, transfóbico e que há muito respira com a ajuda de aparelhos; uma subjetivação agonizante e agonizada que esperamos que tenha dado o seu último grito.

Essa abertura para o início do processo de luto nos forçará a também estarmos implicados nesse trabalho sobre o desinvestimento. É preciso estarmos implicados no paradoxo que é reunir forças para decretar a morte dessa paisagem agonizante, oferecendo-lhe a possibilidade de viver, e tão-somente, como uma memória daquilo que não mais se poderá reinvestir, nem mesmo de forma melancólica. A derrota nas urnas foi o primeiro passo, mas certamente não será o último.

Notas

[1] Freud, S. Luto e melancolia. In: ______. Neurose, psicose, perversão. 1 ed. 6 reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. p. 100.

[2] Ibid., p. 100.

[3] Mbembe, A. Políticas da inimizade. São Paulo: N-1 edições, 2020. p. 87.

[4] Ibid., pp. 87-88.

[5] Deleuze, G. Crítica e clínica.2 ed. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 84.

Referências:

Deleuze, G. Crítica e clínica. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2011. 

Freud, S. Luto e melancolia. In: ______. Neurose, psicose, perversão. 1 ed. 6 reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.

Mbembe, A. Políticas da inimizade. São Paulo: N-1 edições, 2020. 

(*) Lucas Donhauser, professor substituto de psicologia da Universidade Federal Fluminense, e por Danichi Mizoguchi, também professor do curso de psicologia e da pós-graduação da Universidade Federal Fluminense. 

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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