Economia
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1 de dezembro de 2021
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08:32

Núcleos de inflação como aperfeiçoamento do sistema de metas (por Flavio Fligenspan)

Estimativa para 2024 está acima do centro da meta de inflação que deve ser perseguida pelo Banco Central. Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Estimativa para 2024 está acima do centro da meta de inflação que deve ser perseguida pelo Banco Central. Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Flavio Fligenspan (*)

Tenho insistido, reiteradamente neste espaço de debate, o quanto nosso sistema de metas de inflação é limitado, por contar somente com um instrumento de ação, a elevação da taxa de juros de curto prazo, especialmente nas situações em que a inflação é causada por problemas de oferta (ou custos) e não de demanda. Este é o caso presente no Brasil, em que uma inflação nitidamente de oferta – decorrente de fatores nacionais e internacionais – faz com que o Banco Central eleve os juros em plena estagnação da economia. A despeito de uma taxa de desocupação muito alta, informalidade na faixa dos 40%, empresas descapitalizadas e taxa de investimento das mais baixas da história, os juros sobem, desestimulando o consumo das famílias e os investimentos das empresas. Trata-se de um enorme contrassenso.

O sistema de metas tem sido adotado por um número crescente de países desde os anos 1990. O Brasil o adotou em 1999, depois da crise que quase custou a reeleição de Fernando Henrique, na metade de 1998. Ali morria o primeiro ato da política econômica do Real, aquele que tinha o dólar barato como âncora. O sistema de metas de inflação é tosco, mas é tanto pior se usado na sua forma mais pura. Há pelo menos dois aperfeiçoamentos passíveis de serem usados para suavizar seus efeitos negativos, mas até hoje não conseguimos sequer fazer uma boa discussão sobre eles no Brasil. Imagino que, em parte, isso se deve ao temor de que esses aperfeiçoamentos pudessem parecer tentativas de manipulação da equipe econômica. Nossa tradição de mau trato das questões políticas e econômicas pesa aqui para evitar melhorias.

Como já discuti em outras Colunas, os dois aperfeiçoamentos se referem à forma de verificar o cumprimento da meta. Um deles é utilizar os núcleos de inflação em lugar do índice cheio ou completo (IPCA) e o outro é usar períodos mais longos do que apenas os 12 meses do calendário gregoriano. Faço uso do gráfico para discutir o primeiro ponto.

Todo índice de inflação é composto por uma cesta ampla de produtos e serviços, muitos deles com preços bastante voláteis, como os hortifrutigranjeiros e os de energia (derivados de petróleo e energia elétrica). A volatilidade deriva de sua própria natureza e/ou de variações de preços internacionais que têm reflexo no Brasil. Isso vale para os efeitos das crises hídricas, os problemas com safras agrícolas e os preços internacionais do petróleo, por exemplo. A oscilação destes preços aparece nos índices, para cima e para baixo, influenciando as mais diversas decisões dos agentes econômicos. E, claro, tais oscilações trazem intranquilidade e incerteza, com perdas e ganhos por vezes expressivas, prejudicando o funcionamento de vários mercados.

Uma forma reconhecida de diminuir estas variações abruptas é se calcular o núcleo dos índices, retirando-se da conta – ou diminuindo seu peso – os preços mais voláteis. O gráfico com informações do Banco Central nos mostra três curvas com diferentes tipos de núcleos do IPCA desde dezembro de 2016, sempre acumulando os últimos 12 meses. Há várias formas de calcular o núcleo, mas trago aqui somente três, para simplificar. Observe-se que os núcleos mostram uma elevação da inflação desde setembro do ano passado, chegando-se no presente a taxas próximas de 6% ao ano. A linha tracejada mostra o IPCA cheio, com todos os produtos e serviços, voláteis ou não. O IPCA cheio começou a crescer desde o meio de 2020, mas o importante é que ele se “descola” dos seus núcleos e hoje já está acima de 10% ao ano.

 

Ora, o Banco Central usa o IPCA cheio para verificar o cumprimento da meta, e não seus núcleos. Diante de uma inflação reconhecida pela própria autoridade monetária como causada por problemas de oferta, a resposta do sistema de metas é aumentar os juros para debelar uma inflação de 10% e não de 6% ao ano. Obviamente, uma inflação mais alta exige juros mais altos, na visão do Banco Central. Se temos que seguir um sistema nitidamente limitado, pelo menos valeria a pena incluirmos um mínimo de aperfeiçoamento nele, com o uso de núcleos dos índices.

Cabe reparar outro ponto do gráfico, entre o segundo e o último trimestres de 2017, em que os núcleos ficaram acima do IPCA cheio. Situações como esta também são possíveis e levariam a ações do Banco Central condizentes com esta relação, sempre que necessário, ou seja, quando a inflação projetada para o final do ano estivesse além da meta pré estabelecida. Assim, a eventual adoção dos núcleos como guia da política monetária deveria valer “para o bem e para o mal”, afastando-se qualquer suspeita de manipulação.

Observe-se, não se trata de “esconder” o índice cheio, que continuaria sendo corretamente calculado e divulgado pelo IBGE, e utilizado para diversos outros fins, como negociações salariais. É que os núcleos permitiriam um ônus menor para a sociedade brasileira, tanto em termos de estímulo à atividade como de custo de rolagem da dívida pública; afinal o governo paga a taxa de juros aos detentores dos papéis da dívida.

(*) Professor do Departamento de Economia e de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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