Opinião
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14 de dezembro de 2021
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07:15

Meu tio dos ‘Anos de chumbo’ (Coluna da APPOA)

"Anos de Chumbo e Outros Contos", de Chico Buarque (Reprodução)

Lucia Serrano Pereira (*)

“Meu tio veio me buscar em casa com seu carro novo”. Com pressa vai pegar a sobrinha, que narra a história. O pai, como sempre nessas situações, finge que está dormindo. A mãe oferece de tudo, beijinhos, água, café, pão de queijo, mas a chegada já é a saída, e eles vão. Ele reclama do elevador ruim e, ali temos o primeiro estranhamento, quando ela diz que até o final do ano o tio “pretendia nos mudar para um apartamento melhor, num bairro melhor.” Que a mãe, irmã dele faria certa manha mas aceitaria, e o pai nunca iria recusar um upgrade. Entram no carro esporte que o tio havia estacionado ocupando a calçada inteira, o trajeto para a praia do  Grumari a 140km por hora e na chegada o camionetão fica largado ali, espaçoso, justo no lugar da saída dos carros dos outros. 

O mal-estar instalado no leitor, acompanhamos esse tio de carro blindado, que meio que atropela o ambulante que cruza a rua, e que distribui dinheiro e gorjetas aos “serviçais”. Na praia ela entra no mar (com o biquini amarelo presenteado pelo tio), enquanto ele fica na cerveja e nas ostras. Quando ela sai do mar ele diz “que sentiu vontade de comer o meu rabinho”. Nova onda de estranhamento do nosso lado. E quando ele na saída da praia, envereda por uma rua “muito desigual” ja estamos totalmente desacomodados pois antevemos o brutal que pode acontecer ali mais direto ainda. Nesse ponto entra o jogo não linear da escrita de Chico Buarque, e que nesta  incursão pelos contos vai se apresentar. Não, na rua desigual ele vai parar na obra, abrir o porta-malas cheio de dinheiro, pagar os peões que desciam perto do buteco, saídos da obra. E depois segue o rumo para o motel. De quebra, faz um motoqueiro capotar no trajeto, empurrando para fora da pista. Quem mandou o moleque  afrontá-lo no trânsito?

Parada na farmácia para que ela compre o Viagra. E vamos entendendo que o motel e o comer o rabinho ja fazia parte do roteiro, jacuzzi, coca-cola, cheeseburger. Ela aproveita que o tio dormiu para passar do pornô da TV da Suíte Premium para uma série americana que não lembrava bem. Ele só acorda no tempo do terceiro episódio, no susto e berrando com ela que vai ter problemas em casa. Paga a conta com as muitas notas de cem, quando sai da garagem raspa na parede, e larga ela na avenida com dinheiro a mais para o taxi. 

De volta em casa, de novo perdemos o fôlego, quando a mãe abre a bolsa da jovem para conferir se usou ou não a Jontex, que está fechada – e a bronca da mãe vem pelo medo de que ela possa engravidar dele, pois afinal ele não vai se separar da mulher. Já o pai acha que seria até bom para o tio se livrar da piranha da sua mulher. E o conto vai finalizando com o banal das opiniões de se filhos de parentes próximos não dão, as vezes, em filhos degenerados. A mãe tem essa hipótese, o pai acha que não é bem assim…

E  de repente, terminada a leitura, a violência que atravessou tudo desaba sobre nós. Por todos os lados da narrativa que vem com aparência de “tudo bem”, afinal não estão todos de acordo? Crueza e horror da cena miliciana que já está integrada no funcionamento, do início ao fim, e normalizada nas relações. 

O efeito brutal do conto me fez  lembrar a proposição de Ricardo Piglia, o escritor argentino que tanto trabalhou sobre as Formas breves, sobre a estrutura do conto. Qual a hipótese de Piglia? A de que um conto conta duas histórias – trabalhando uma linha de tensão entre elas, sem nunca resolvê-la. Há uma história que vem por cima, podemos dizer, vem explícita, e outra que pode ser lida nas entrelinhas, e que vai retroagir sobre a primeira, mas sempre tecida junto ao leitor. Isso no simples, a produção de Piglia é rica e permite muitas incursões, mesmo perguntas sobre este tecido que não necessariamente precisaria ser pensado no binário. Mas o que importa aqui é pensar que as histórias que vem nas entrelinhas não são propriamente histórias com um sentido oculto, e sim histórias contadas de uma outra maneira, de modo enigmático. Que se desdobram no como se diz, que não são propriamente conteúdo.

Histórias cifradas que mesmo assim ( e justamente por isso, podemos pensar)  incidem sobre nós, para além do que se poderia pretender como um deciframento ponto a ponto. Histórias cifradas que incidem sobre os sujeitos estabelecendo fixações, repetições, alienações.

Microcosmo de Meu tio, com o gozo escrachado da violência que submete sem que isso seja sequer reconhecido, e que atravessa este impressionante Anos de chumbo e outros contos de Chico Buarque, que diz tanto do Brasil de ontem e hoje.      

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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