Opinião
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7 de dezembro de 2021
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08:53

Como vai a cobertura sobre a biodiversidade? (por Eliege Fante)

Orla do Guaíba, em Belém Novo, uma das áreas cobiçadas, hoje, pelo setor imobiliário. (Foto: Luiza Castro/Sul21)
Orla do Guaíba, em Belém Novo, uma das áreas cobiçadas, hoje, pelo setor imobiliário. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Eliege Fante (*)

Tramita, desde o primeiro semestre de 2021, no Conselho Municipal de Meio Ambiente de Porto Alegre (Comam), um processo sobre a pertinência de o município estabelecer um instrumento legal que promova a gestão, efetivamente, responsável da biodiversidade. Estamos falando da proposta de Minuta de Resolução que reconhece a “Lista de Espécies Ameaçadas de Extinção e Raras da Flora do Município de Porto Alegre com ocorrências reconhecidas cientificamente”.

A pesquisa, o documento e a proposta decorrem de um trabalho voluntário, realizado desde 2015, por especialistas renomados de entidades ambientalistas, de órgãos ambientais do Rio Grande do Sul e de universidades. A Câmara Técnica de Áreas Naturais e Paisagem Urbana (CT ANPUR) do Comam aprovou a proposta que foi apresentada em detalhe na reunião do Conselho em 30 de setembro de 2021. Já a Câmara Técnica de Legislação e Educação Ambiental (CT LEAMB) ainda não tem posição definida sobre o instrumento legal mais adequado.

A dúvida, por parte de alguns integrantes nessa CT, paira sobre como atender esta necessidade sem descuidar os demais interesses socioeconômicos, baseados nos conceitos de desenvolvimento sustentável, economia verde e retomada da economia. Há quem considere o suficiente a Smam seguir utilizando a Lista constante no decreto 52.109/2014 que “Declara as espécies da flora nativa ameaçadas de extinção no Estado do Rio Grande do Sul”, a qual não tem previsão de ser atualizada porque este trabalho era feito pela Fundação Zoobotânica (FZB), extinta em 2018 pelo governo José Ivo Sartori (MDB) através do decreto 54.268. Portanto, a FZB assim como as outras fundações extintas não eram “armários desnecessários da administração” (CP, 7 ago. 2015) como Sartori declarou.

Reprodução

De fato, o reconhecimento dessa biodiversidade, rara e ameaçada, autóctone em Porto Alegre, implica considerar a existência dessas espécies da flora no caminho de megaprojetos que tentam obter licenças ambientais. Um dos casos é o da proposta de alteração no regime urbanístico da Fazenda do Arado Velho com o projeto de lei complementar (PLC) na Câmara de Vereadores, cuja tramitação foi suspensa pela Justiça, na semana passada (03/12), até que se elaborem “todos os estudos, diagnósticos técnicos e debates”. A Fazenda fica na zona sul, onde estão os remanescentes dos dois biomas constituintes deste território: Mata Atlântica e Pampa. Vestígios ainda podem ser encontrados nas demais zonas na forma de áreas verdes cuja redução gradativa, causa efeitos perniciosos sobre a qualidade do ar, da água, dos solos e, por conseguinte, da saúde dos habitantes embora essas relações não sejam abordadas pela imprensa.

A imprensa não costuma aprofundar os temas através do acompanhamento dos trâmites nos conselhos e outros fóruns públicos, tampouco através do incentivo à formação complementar em áreas das ciências naturais. Ao menos, não na mesma medida que incentiva a formação para a cobertura econômica e de futebol. Uma consequência é a dificuldade generalizada no reconhecimento do papel da biodiversidade preservada para o equilíbrio climático, por exemplo. Tanto que a imprensa não questionou quando Porto Alegre, através da Smam, assumiu o compromisso de reduzir as emissões dos gases de efeito estufa durante a COP 26, na Escócia, sem citar medidas que contemplassem a biodiversidade.

A cobertura temática com enfoque apenas econômico é opção simplificadora e exacerba os riscos em tempos de emergência climática. Pois, ainda que tenha sido divulgada a precariedade do estudo e relatório de impacto ambiental do empreendedor que ambiciona construir condomínios na Fazenda do Arado, uma comparação entre as espécies da flora descritas nesse documento com as espécies da Lista que está no Comam, mostra que ao menos quatro espécies estão ameaçadas também em Porto Alegre: Regnellidium diphyllum (samambaia de duas folhas, que ocorre em áreas úmidas); Cattleya tigrina (orquídea-de-natal); Solanum arenarium (arbusto parente da jurubeba que ocorre em restingas); Urera nitida (urtigão-da-praia). Ou seja, estão em risco de extinção no Estado e na capital.

Devemos lembrar que o Artigo 245 da Lei Orgânica de Porto Alegre considera Área de Preservação Permanente (APP) ambientes que abrigam espécies ameaçadas e raras de flora e de fauna, cabendo ao órgão ambiental do município, definir medidas para a sua proteção. Neste sentido, foi encaminhada uma proposta de Resolução que reconhece as listas da flora ameaçada e rara no município, pela Câmara Técnica de Áreas Naturais e Paisagem Urbana (CT ANPUR) e que está sob análise na CT LEAMB do Comam.

Observamos que a imprensa prefere ouvir as fontes oficiais esquecendo-se que as fontes técnicas, ou seja, os servidores dos órgãos dos governos e dos poderes instituídos são igualmente fontes oficiais e, com a vantagem, entre outras, da visão de longo prazo e histórica dos temas em disputa na sociedade. Ou saberia, por exemplo, que há apoio de técnicos da Smam às Listas e, à respectiva Minuta de Resolução citada anteriormente. Não só isso: há uma recomendação para que este trabalho seja publicado e acessado por toda a população. Assim como, recentemente, acessamos o Guia de Plantas Campestres dos Aparados da Serra, lançado na Feira do Livro deste ano e apresentado em São Francisco de Paula e Cambará do Sul como um reconhecido instrumento para a gestão municipal.

Evitar que a temperatura global ultrapasse 1,5º C requer mudanças de paradigmas igualmente da imprensa. Coberturas efetivamente responsáveis contemplam também a biodiversidade, quanto ao estado de conservação bem como das políticas protetivas, e às pautas nos espaços além dos oficiais. Sem esquecer do exercício que pode representar para a cobertura da COP 15 em 2022, a Conferência das Partes sobre a Biodiversidade, que vai definir a “nova Estratégia Global de Biodiversidade Pós-2020” no contexto da extrema perda de espécies da flora e da fauna em todo o mundo.

(*) Eliege Fante é jornalista, mestra e doutora em Comunicação e Informação pelo PPGCOM-UFRGS, integra o Grupo de Pesquisa Jornalismo Ambiental CNPq-UFRGS e representa a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) na CT LEAMB do COMAM. Artigo publicado originalmente no Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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