Opinião
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1 de novembro de 2021
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13:45

Combater inflação de oferta com alta de juros? E a que custo? (por Flavio Fligenspan)

Estimativa para 2024 está acima do centro da meta de inflação que deve ser perseguida pelo Banco Central. Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Estimativa para 2024 está acima do centro da meta de inflação que deve ser perseguida pelo Banco Central. Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Flavio Fligenspan (*)

Na reunião da semana passada, o Comitê de Política Monetária do Banco Central (COPOM) elevou a taxa de juros básica da economia em 1,5 ponto percentual, passando a Selic de 6,25% ao ano para 7,75% ao ano. Foi uma puxada forte, mas prevista pelos operadores do mercado financeiro, diante de uma inflação que se eleva e sai do controle. E mais que isso, além desta alta já se prevê uma nova, talvez de mesma amplitude para daqui a 45 dias, na próxima reunião.

Como já discuti tantas vezes neste espaço, o sistema de metas de inflação, que adotamos desde 1999, é bastante limitado em vários aspectos, mas o principal é o fato de prescrever sempre uma alta dos juros nas situações em que a inflação ameaça ficar acima da meta pré definida. Qual é o problema? Elevações de juros para conter preços se mostram racionais, se a inflação é causada por um excesso de demanda, já que a alta dos juros contém as intenções de compra das famílias e os investimentos das empresas, diminuindo o espaço para alta dos preços.

Contudo, se a inflação é causada por alta de custos, ou seja, se é uma inflação de oferta, elevar juros é um remédio errado e vai produzir efeitos colaterais indesejados. Até pode segurar os preços, numa segunda ordem de efeitos (indiretos), mas como todo tratamento equivocado, vai causar muito mais dor do que resultados. Concordam com isto os presidentes dos quatro principais bancos centrais do mundo – dos Estados Unidos, da Europa, da Inglaterra e do Japão – reunidos em seminário promovido pelo Banco Central Europeu no final de setembro deste ano. Segundo o Presidente do Banco da Inglaterra, Andrew Bailey: “A política monetária não pode resolver problemas de choques de oferta […] A política monetária age sobre a demanda. Ela não pode aumentar a produção de chips ou o número de caminhões disponíveis”.

No mesmo seminário, mostrando-se preocupado com uma possível permanência da inflação, além de choques transitórios, o Presidente do FED (EUA), Jerome Powell, admitiu que neste caso, a inflação pode alimentar expectativas e se tornar realmente um problema que exija alta dos juros. Mas, sublinhe-se, apenas nos casos de pressões além das consideradas transitórias, que ele dizia não reconhecer neste momento.

Quais as causas nitidamente identificadas da inflação brasileira nesse momento? Alta de preços internacionais de commodities, escassez de componentes industriais em todo mundo, elevação de preços de transportes marítimos, crise hídrica e alta da taxa de câmbio, repercutindo em todas as cadeias produtivas domésticas que exijam matérias primas importadas, ou seja, quase todas. Observa-se que os três primeiros fatores vêm de fora do Brasil, portanto, não estão sob nosso controle, e que todos os aspectos relacionados referem-se aos custos de produzir e distribuir bens e serviços no Brasil; nenhum deles tem qualquer vínculo com excesso de demanda na economia brasileira.

Nem poderia, a sequência dos últimos anos é a pior possível: primeiro enfrentamos a recessão de 2015-2016, depois três anos de crescimento pouco acima de 1% e a seguir a pandemia que produziu mais uma recessão em 2020 com recuperação apenas parcial em 2021. Neste momento nosso PIB ainda é inferior ao do início de 2014, antes de começar a sequência trágica. Com um mercado de trabalho que só piorou neste período, tanto institucionalmente como conjunturalmente, a demanda é fraca, muito fraca, incapaz de gerar forças consistentes de aumentos de preços. Não há renda, não há poder de compra nem perspectiva de mudança no curto prazo. Um ou outro mercado específico pode passar por uma pressão localizada de demanda, mas nada parecido com uma pressão generalizada a explicar a taxa de inflação.

A inflação brasileira neste momento é claramente de oferta, em parte produzida pela desorganização do Governo, que muito ajuda a explicar o aumento da incerteza, a fuga de divisas e a elevação da taxa de câmbio. No entanto, o sistema de metas manda subir os juros e o Banco Central cumpre o que o manual manda, ajudando a retrair pequenos estímulos de crescimento em função de um crédito que rapidamente fica mais caro. É constrangedor verificar que o modelo e os economistas que o defendem não têm o que dizer sobre a contradição que vivemos – estagnação associada à alta dos juros –, a não ser explicações vagas sobre a necessidade de controlar expectativas, não oferecer estímulos de segunda ordem nas cadeias produtivas (propagação de preços) e um medo enorme da nossa história de indexação.

Curiosamente, na sexta feira passada (29/10), logo após o aumento da Selic, o Banco Central divulgou uma nova estimativa das elasticidades da dívida pública. E a conta mostra que a cada ponto percentual de variação da taxa básica de juros, se ela persistir por 12 meses, há uma variação de dívida de pouco mais de R$ 30 bilhões, quase um orçamento anual do Programa Bolsa Família. Pois bem, num intervalo de aproximadamente 90 dias, podemos produzir cerca de três pontos percentuais de alta da Selic, movimento que certamente vai demorar para retroceder. E tudo isto para “combater” uma inflação de oferta.

(*) Professor do Departamento de Economia e de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21

 


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