Economia
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1 de outubro de 2021
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08:41

O caldo de Bolsonaro entornou de vez (por Flavio Fligenspan)

jair Bolsonaro em almoço com empresários de Minas Gerais. (Foto: Isac Nóbrega/PR)
jair Bolsonaro em almoço com empresários de Minas Gerais. (Foto: Isac Nóbrega/PR)

Flavio Fligenspan (*)

O sucesso ou o fracasso de uma empresa ou de uma sociedade dependem de muitos fatores, mas uma combinação de competência e oportunidade (sorte/azar) ajuda muito a explicar o resultado. A competência é uma variável que depende da instituição – das pessoas que a compõem –, mas a oportunidade funciona como variável exógena, sobre a qual não se tem controle direto. Sociedades competentes, bem preparadas tecnicamente, terão melhores ou piores resultados diante do que seu ambiente externo lhe proporcionar no tempo em que se está investigando. Sociedades não tão bem preparadas podem até produzir bons resultados, se as variáveis exógenas se combinarem de forma virtuosa em determinado momento. Aí é questão de sorte mesmo.

Fernando Henrique se declarou um homem de azar quando, nos primeiros dias de seu segundo mandato, em janeiro de 1999, o Plano Real ruiu. Era uma frase de efeito, pois no segundo semestre de 1998, em plena campanha eleitoral, o Real já estava quebrado por influência de seus próprios problemas e da moratória russa. Na época, Fernando Henrique pediu socorro aos Estados Unidos, ao FMI e ao sistema financeiro internacional e levantou rapidamente um pacote de US$ 42 bilhões para segurar o Plano e sua reeleição. A resposta positiva dos financiadores correspondia ao temor de, uma vez desencadeada a crise naquele momento, Lula ganhar a eleição. Fernando Henrique, portanto, não era na verdade um homem de azar, mas bem pelo contrário, de muita sorte, e de amigos poderosos que lhe socorreram na hora mais difícil.

Lula se mostrou um homem de sorte. Logo início do seu Governo a economia internacional lhe brindou com um novo ciclo de alta de preços de commodities. O Brasil, como exportador dessas mercadorias, se beneficiou, arrumando suas contas externas e recebendo os efeitos positivos domésticos deste movimento sobre o qual não tínhamos controle. Contudo, é injusto com o Governo Lula dizer que seus bons resultados se deveram somente ao ciclo das commodities. Sorte é importante, mas a combinação com competência é decisiva. As várias ações no sentido da expansão da demanda interna, com destaque para as ações de redistribuição de renda – elevação do salário mínimo e Bolsa Família – cumpriram um excelente papel, inclusive ajudando a criar milhões de novos empregos.

No meio do segundo mandato, Lula não teve tanta sorte, pois o mundo viveu um solavanco com a crise do sistema financeiro, que comprometeu o crescimento brasileiro de 2009. Porém, à custa de muito incentivo e muito discurso otimista, 2010 foi um ano de expansão que levou à eleição de sua sucessora.

Bolsonaro nunca demonstrou estar preparado para o cargo que ocupa. Seu histórico político não deixava margem a dúvidas. A esperança de quem tinha capacidade de análise e mesmo assim o apoiou era de que seu entorno conduziria o Governo, sejam os militares de seu círculo mais próximo, seja o super Ministro da Economia. Logo se viu o óbvio, que as coisas não tinham como funcionar. Além de não ter a competência mínima requerida para organizar o governo, Bolsonaro também teve azar, e não foi pouco. Ninguém previa uma pandemia em escala mundial justamente no segundo ano de mandato. E de lá para cá, do ponto de vista da economia, o ambiente interno e externo só piorou.

A sucessão de fatos negativos impressiona. No front externo: desorganização de diversas cadeias produtivas, com destaque para semicondutores; aumento dos preços do petróleo; encarecimento das tarifas de transporte marítimo; projeção de redução do crescimento da China; previsão de alta dos juros americanos e de valorização do dólar; iminência de crise no fornecimento de energia no Oriente e na Europa.

Estes fatores externos, associados aos fatores negativos domésticos, muito agravados pela incapacidade de planejamento e de organização do Governo, têm causado pioras em sequência, semana após semana, nas previsões para o PIB, para os juros e para a inflação, comprometendo a imagem de Bolsonaro justamente nas vésperas do ano eleitoral de 2022. A taxa de câmbio em alta, em combinação com preços internacionais de algumas matérias primas, tem causado uma inflação não só elevada, como também disseminada por todos os grupos do índice de preços de referência (IPCA). Este é um dos pontos mais delicados da atual conjuntura, visto que mexe diretamente com a péssima situação de vida da população mais carente, a que mais sofre com uma pandemia que se arrasta como consequência da ação tardia e ainda contida do Estado. 

Mas não para aí a lista de problemas: crise hídrica e energética; desorganização política e institucional; desarticulação política no Congresso; ameaças frequentes à democracia; clima de constante conflito na sociedade; queda de confiança de empresários e das famílias; investimentos nacionais e estrangeiros travados à espera de estabilidade; desemprego elevado; aumento da informalidade e da subocupação; redução do rendimento médio real; taxa de juros em rota de alta. Enfim, a lista não acaba.

É interessante observar que, há poucos meses, tanto o Governo como a oposição projetavam um clima mais favorável a Bolsonaro no fim de 2021 e no ano de 2022, com um controle maior da pandemia e uma recuperação da economia. Estas projeções começaram a mudar mais ou menos entre julho e agosto e o caminho de piora se consolidou em setembro, pela combinação de fatores externos e domésticos negativos. Se os externos funcionam como variáveis exógenas que fogem ao nosso controle, os domésticos deveriam ser administrados por um governo que fosse minimamente organizado e que vivesse menos de alimentar dogmas e preconceitos. Não é o caso. O caldo entornou de vez e deixará um legado pesado para o futuro imediato.  

(*) Professor do Departamento de Economia e de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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