Opinião
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21 de setembro de 2021
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09:26

O telefonema e os submarinos: Biden e as ilusões liberais (por André Moreira Cunha e Andrés Ferrari)

Joe Biden dá sinais claros de que está disposto a levar adiante a estratégia de contenção da China. (Foto: Kevin P. Coughlin / Gabinete do Governador/NY)
Joe Biden dá sinais claros de que está disposto a levar adiante a estratégia de contenção da China. (Foto: Kevin P. Coughlin / Gabinete do Governador/NY)

André Moreira Cunha e Andrés Ferrari (*)

 

AUKUS: um novo acrônimo, um velho dilema

O presidente Joe Biden dá sinais claros de que está disposto a levar adiante a estratégia de contenção da China. Recentemente, sua longa conversa telefônica com o líder chinês, Xi Jinping, foi cordial, mas clara: ambos concordaram em discordar sobre os principais temas sensíveis a cada país. Em seus aspectos substantivos, repetiu-se o enredo de março, quando as delegações dos dois países se encontram no Alaska. Nesta ocasião, o Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, e o Conselheiro de Segurança Nacional, Jake Sullivan, elevaram o tom das discussões em temas como direitos humanos, democracia e ataques cibernéticos; ao passo que o Ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, e seu assessor sênior, Yang Jiechi, reagiram criticando a pressão dos EUA contra os interesses da China, particularmente em temas securitários e econômicos. 

O establishment estadunidense convenceu-se de que deve conter a China, tanto no seu entorno regional, quanto no plano global. Um passo concreto nesta contenção foi anunciado no dia 15 de setembro: o acordo com Austrália e Reino Unido, por meio do qual os três aliados pretendem reforçar os laços em “segurança e defesa”, e compartilhar “informações e tecnologias”. Para promover a segurança na região Indo-Pacífica, os EUA e o Reino Unido irão ajudar a Austrália a construir uma frota de submarinos com propulsão nuclear. 

No plano retórico, a parceria AUKUS foi justificada para promover os valores comuns e a defesa da democracia e do multilateralismo. Na prática, envolverá o esforço de constranger o poder naval chinês e limitar que as empresas do gigante asiático avancem em áreas da fronteira tecnológica, especialmente em áreas onde aquelas têm um uso dual, vale dizer, servem para usos civis e militares. Portanto, a trilateral promoverá competências nas áreas “… cibernética, inteligência artificial, tecnologias quânticas e capacidades submarinas adicionais”. 

A união das democracias para preservar ‘valores universais” está no centro da agenda internacional de Biden. Por isso mesmo, o seu governo promoverá a “Cúpula para a Democracia” em dezembro deste ano. Pretende reunir líderes governamentais e da sociedade civil para discutir as ameaças à democracia e aos direitos humanos advindos das novas tendências autoritárias. Ou seja: conter a China em seu processo de consolidação como poder global e reduzir a influência da Rússia. Biden sabe que a construção de uma aliança em defesa da “democracia” envolve mais do que palavras. Em seu discurso durante Conferência de Segurança de Munique, em fevereiro passado, ele afirmou que a “… democracia não acontece por acidente. É preciso defendê-la, lutar por ela, fortalecê-la e renová-la”. Com a AUKUS, sua administração mostra que não ficará apenas na retórica: transferirá tecnologia e recursos financeiros para a alegria dos complexos industrial-militar dos EUA e do Reino Unido, que já comemoram os futuros contratos bilionários. 

A contundência desta inciativa dos EUA não incomodou apenas aos chineses. A reação contrária mais intensa veio de outro aliado, ainda mais antigo, e que lutou ao seu lado para promover a sua independência: a França. Ao saber dos termos concretos da AUKUS, o Ministro das Relações Exteriores do país, Jean-Yves Le Drian, afirmou estar “furioso” e que a atitude estadunidense é algo que “não se faz entre aliados”. E acrescentou: “É uma facada nas costas … essa decisão unilateral, brutal e imprevisível era o tipo de coisa que o Sr. Trump costumava fazer.”. 

Não é todo o dia que se perde um contrato de US$ 65 bilhões. A nota conjunta do Ministério da Defesa e do Ministério das Relações Exteriores foi particularmente dura: “A escolha americana de excluir um aliado e parceiro europeu de uma relação estruturante com a Austrália, num momento em que enfrentamos desafios sem precedentes na região Indo-Pacífico, seja em termos de nossos valores, seja em termos de respeito ao multilateralismo baseado na regra da lei, mostra uma falta de coerência que a França só pode notar com pesar.” 

A AUKUS coloca por terra a parceria entre franceses e australianos para o fornecimento de doze submarinos nucleares. Macron, o líder francês, e o primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, encontraram-se em Paris, há três meses, para celebrar o contrato negociado desde 2016. Durante a visita de Morrison ao Élysée Palace, Macron comemorou e disse que a venda seria um “pilar [da] parceria e da relação de confiança entre [os] dois países. Esse programa é baseado na transferência de know-how e tecnologia e nos unirá nas próximas décadas.”. Após a “facada pelas costas” de Biden, Macron chamou seus embaixadores na Austrália e nos EUA para pedir explicações, o que é uma sinalização clara de contrariedade. A União Europeia também não foi consultada e o principal diplomata da entidade, Josep Borrell, só recebeu informações detalhadas sobre a AUKUS após seu anúncio. 

Assim como no caso da retirada de tropas do Afeganistão, os EUA de Biden não pedem “com licença” ou “por favor” na hora de atuar na defesa dos seus interesses. A China, o principal alvo da AUKUS, manifestou-se através do porta voz do seu Ministério das Relações Exteriores, Lijian Zhao, para quem essa trilateral: “… mina, severamente, a estabilidade regional e a paz, intensifica a corrida armamentista e enfraquece os esforços internacionais de não proliferação [de armas nucleares]”. Ademais, e afirmou que decisão estadunidense é “…altamente irresponsável e mostra padrões duplos no uso da exportação [de tecnologia] nuclear para seus jogos geopolíticos.”

A produção de armamentos e os gastos militares envolvem interesses geopolíticos, econômicos e tecnológicos. As compras governamentais nestes segmentos não seguem parâmetros concorrenciais comuns e abrigam todas as formas de exceção diante de regramentos internacionais, particularmente os da Organização Mundial do Comércio. Nenhum Estado Nacional minimamente organizado brinca com sua segurança nacional ou compra armamentos de última geração em “mercados livres”. Em 2020, o mercado global de gastos militares atingiu US$ 1,9 trilhão (ou 2,1% do PIB mundial) nas estimativas do SIPRI (Stockholm International Peace Research Institute). EUA (40,3%) e China (13,1%) respondem por mais da metade daquele valor, seguidos de Índia (3,8%), Rússia (3,2%), Reino Unido (3,1%), Arábia Saudita (3,0%), Alemanha (2,7%), França (2,7%), Japão (2,5%), Coreia do Sul (2,4%), Itália (1,5%) e Austrália (1,4%). Assim, a AUKUS sozinha atingiria uma participação relativa de 44,8% deste tipo de dispêndio, mais do que o triplo da capacidade da China ou da União Europeia. 

Dentre os componentes do gasto militar, aqueles associados aos armamentos revelam-se como particularmente estratégicos. Ao longo da história, as principais inovações tecnológicas sempre tiveram sua origem nos esforços de defesa e de promoção das guerras. As empresas fornecedoras de equipamentos militares beneficiam-se destes gastos e conseguem obter mercados cativos que lhes garantem um horizonte estável de receitas. Com isso, conseguem desenvolver avanço passíveis de serem utilizados nas áreas civil e militar-espacial. Ou seja, o assim-chamado complexo militar-industrial está no centro mais dinâmico das indústrias das principais economias avançadas e emergentes.

Em 2019, ano com dados mais recentes na base da SIPRI, as 25 maiores empresas fornecedoras de armamentos faturaram US$ 361 bilhões, montante que correspondeu a 41% de suas vendas totais (US$ 874 bilhões). Nas economias ocidentais, particularmente nos EUA, é mais comum a existência de conglomerados privados que atendem as demandas governamentais e, também, produzem linhas amplas e diversificadas de produtos para o consumo de famílias e de outras empresas. Este é o caso de grandes conglomerados estadunidenses (Lockheed Martin Corp., Boeing, Northrop Grumman Corp., Raytheon, General Dynamics Corp., General Electric etc.) e europeus (BAE Systems, Rolls-Royce, Thales, Dassault Aviation Group, Leonardo e Airbus etc.)

Na Rússia e na Arábia Saudita predominam as empresas estatais, que dependem basicamente da venda de armas e equipamentos militares para seus governos ou outros países a partir da intermediação do poder estatal. Na China, as principais empresas que fornecem armas e equipamentos para as Forças Armadas são estatais, ainda que o peso do faturamento com a venda destes produtos oscile entre 15% e 30% das vendas totais. O uso de tecnologias duais permite com que elas ganhem dinheiro com seu governo e com consumidores privados.

Biden tem justificados suas ações de política externa a partir dos imperativos do interesse nacional, algo típico da perspectiva realista das relações internacionais. Trump já havia assumido claramente essa perspectiva e nunca hesitou em afirmá-la. Biden ainda tenta dar um verniz moralista às suas decisões, particularmente a defesa de princípios do liberalismo internacional, expressos em valores universais e abstratos. Aparentemente, sua postura não consegue convencer aliados e adversários. Todos sabem que os EUA não pretendem recuar da disputa contra a China e a Rússia. 

Biden gosta de falar suave, mas também está disposto a mostrar as suas armas. Como diria o presidente Theodore Roosevelt Jr. (1887 – 1944) em alusão à sua política externa e sob a inspiração de um provérbio africano: “fale com suavidade e tenha à mão um grande porrete”. Ao conversar longamente com Xi, Biden manteve sua postura cordial para demonstrar suas divergências. Com a AUKUS, posicionou o seu “grande porrete” na região Indo-Pacífica.

A versão completa deste artigo está disponível no site da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS.

(*) Professores do Departamento de Economia e Relações Internacionais

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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