Economia
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20 de agosto de 2021
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13:07

Xi Jinping e os ricos (por André Moreira Cunha e Andrés Ferrari)

Xi Jinping, presidente da República Popular da China (Xinhua)
Xi Jinping, presidente da República Popular da China (Xinhua)

André Moreira Cunha e Andrés Ferrari (*)

“Pobreza não é socialismo. Enriquecer é glorioso”
Deng Xiaoping

No mais recente encontro do Comitê Central de Assuntos Econômicos e Financeiros do Partido Comunista da China (PCC), presidido por Xi, discutiu-se a necessidade de “… regular as rendas excessivamente altas e encorajar as grandes empresas a darem maior retorno à sociedade”. Em alusão à uma das frases célebres de Deng Xiaoping, se no início das reformas pró-mercado aceitava-se que “alguns ficarão ricos primeiro”, agora há uma nova diretriz: “prosperidade para todos”.

É crescente a pressão do governo chinês sobre os ricos e, em especial, os titãs das empresas de alta tecnologia. No final do ano passado, o polêmico e midiático Jack Ma, dono da Alibaba e da fintech Ant Group, passou a criticar a regulação financeira chinesa, considerada “excessiva” por ele. A reação governamental foi imediata e incisiva: suspendeu-se a oferta pública inicial de ações da Ant Group, uma operação que estimava arrecadar US$ 37 bilhões. 

Em julho de 2021, as duas maiores empresas chinesas de tecnologia, Alibaba e Tencent, entraram na mira da autoridade chinesa antimonopólio e estão sob estrita auditoria. Da mesma forma, empresas privadas do setor educacional, que administram serviços online, foram proibidas de captar recursos nos mercados de capitais. A Didi Chuxing, que controla o Uber chinês, dentre outros serviços, sofreu sanções por insistir no processo de abertura de capital na Bolsa de Nova Iorque em um momento onde há sinais de que os conflitos geopolíticos estão atrapalhando a atuação das empresas chinesas no mercado de capitais dos Estados Unidos (EUA). 

No final do governo Trump foi introduzida uma nova legislação (Holding Foreign Companies Accountable Act) que obriga as empresas listadas em bolsas de valores estadunidenses a se submeterem a processos mais estritos de auditoria. Aparentemente, as empresas chinesas eram os seus alvos principais. Em maio de 2021, havia 248 empresas listadas no mercado de capitais dos EUA (NASDAQ, New York Stock Exchange e NYSE American) com uma capitalização de US$ 2,1 trilhões. Do ponto de vista do PCC, essa legislação permitiria acesso dos reguladores estadunidenses aos dados estratégicos das suas grandes corporações. Para os chineses tal regra extrapola os limites usuais da verificação da situação contábil, patrimonial e dos eventuais riscos do negócio.

Os investidores estrangeiros reagiram fortemente às tensões geopolíticas entre EUA e China e às novas medidas regulatórias. Nas últimas semanas o movimento de venda de ações de empresas chinesas listadas nos EUA se intensificou. Por exemplo, o NASDAQ Golden Dragon China Index já acumula queda de 30% desde fevereiro. No auge das tensões, em julho, este índice, que agrega as 98 maiores empresas de tecnologia listadas, apresentou queda de 15% em um par de dias, no maior movimento baixista desde a crise financeira de 2008. Ao longo de 2021, uma perda no valor de mercado das empresas chinesas estimada em US$ 1 trilhão. Todavia, a queda no valor nocional da riqueza mobiliária não se traduz, necessariamente, em mais renda e patrimônio para os cidadãos comuns. A “prosperidade para todos” não se produzirá sem que mecanismos fiscais mais robustos sejam utilizados.

O “Global Wealth Report 2021” do Credit Suisse nos informa que, nos últimos 20 anos, a participação dos 1% mais ricos na riqueza chinesa passou de 21% para 31%. Em termos de distribuição do número de milionários no mundo, a China responde por 11% deste universo, ficando atrás apenas dos EUA (40%). Esta proporção se reproduz em outra base de informações: a lista da Forbes dos 1000 bilionários do mundo, onde o gigante asiático aparece com 142 bilionários, ante os 358 dos EUA. 

A maior tributação dos ricos e a redistribuição destes recursos em serviços públicos e, também, por mecanismo diretos de transferência de renda, são políticas historicamente utilizadas para atenuar os desequilíbrios distributivos. Há sinais de que o governo avançará em áreas como o aumento nos impostos corporativos de setores de tecnologia – dos atuais 10% para os 25% usuais aos demais setores – e a tributação do patrimônio imobiliário. A introdução de impostos fortemente progressivos neste segmento poderia conter parte da especulação altista no valor dos imóveis, além de gerar receitas adicionais para financiar as políticas públicas de inclusão.

A pressão do governo chinês sobre as empresas de alta tecnologia não é um fato isolado. Recentemente, o presidente dos EUA manifestou seu desconforto com o excesso de poder das Big Tech. Para além de palavras ele deu dois passos claros nesta direção: nomeou Lina Khan, professora da Columbia Law School e crítica dos grandes monopólios, para chefiar a agência federal de proteção dos consumidores (Federal Trade Commission); encaminhou uma medida que reduz o poder das grandes empresas em reter seus funcionários mais qualificados por meio de cláusulas contratuais restritivas; e aprovou um decreto que visa estimular a competição e, assim, restringir práticas monopólicas. Adicionalmente, a administração Trump propôs o aumento de impostos para as empresas e as pessoas de alta renda. Na Europa, as companhias da Gig Economy também têm sido forçadas a pagar mais impostos nos mercados de destino da prestação de serviços, bem como são alvos de medidas antimonopólio.   

Na China, o desafio regulatório que se impõe ao Partido Comunista e suas lideranças é o de manter firmes a estabilidade e o controle de quatro pilares estratégicos: o sistema bancário, a regulação antimonopólio, a segurança dos dados e a equidade social. Diferentemente do que se passa nas demais potências ocidentais, o poder econômico não define, em última instância, os rumos políticos do país. Ao contrário, ele se subordina aos ditames emanados pelo PCC. A China consegue ser uma economia dinâmica e internacionalizada, que se consolidou como um poder global nos marcos do capitalismo. Todavia, ela não se enquadra nos moldes ocidentais da política liberal ou das relações entre empresas e governos.

Empresários bilionários que comandam conglomerados internacionalizados, como Jack Ma, podem ter se esquecido das lições históricas do processo de modernização da China. Por isso mesmo, o PCC de Xi está relembrando os limites toleráveis para o ativismo social e político dos ricos. Ao mimetizarem seus congêneres ocidentais, ostentando sua riqueza e propagando ideias libertárias, os titãs chineses da alta tecnologia ultrapassaram uma barreira considerada inaceitável pelos líderes comunistas. Desde que Deng Xiaoping assumiu o leme dos destinos da nação, o pragmatismo do PCC foi particularmente generoso no estimulo à livre iniciativa dos empreendedores privados. Porém, em nenhum momento flertou seriamente com o apoio às liberdades políticas e individuais ou com a quebra do seu monopólio de poder.

Deng Xiaoping foi o principal líder da segunda revolução chinesa. A primeira, conduzida por Mao Zedong, permitiu a chegada dos comunistas ao poder. A retomada da soberania do país, após o “século de humilhações”, tornou-se um legado político recorrentemente celebrado. Ao proclamar que o “povo chinês se levantou”, Mao criou o slogan síntese para o longo esforço da China em retomar o controle do seu território e, mais importante, do seu destino. Mais controversos foram os resultados econômicos do processo de coletivização forçada, dos impulsos centralizadores e estatizantes, e do fervor revolucionário derivado da sua Revolução Cultural.

A era Mao permitiu à China tornar-se uma potência nuclear e, ademais, estabeleceu fundamentos sociais e produtivos que contribuíram para o posterior embarque no mais dinâmico processo de modernização já realizado na história contemporânea. Porém, ela também dificultou o avanço em áreas estratégicas, particularmente na incorporação de práticas gerenciais e de inovações tecnológicas capazes de dar sustentação a trajetórias mais robustas de crescimento econômico. Para superar o atraso relativo do país e os conflitos políticos exacerbados, Deng promoveu as “Quatro Grandes Modernizações” (agricultura, indústria, defesa, ciência e tecnologia), estabilizou o processo interno de governança e de sucessão de poder no PCC e abraçou a globalização.  

O sucesso econômico da China é inequívoco. Nas últimas quatro décadas, a sua renda per capita cresceu, em média, 8,5% a.a., bem acima dos 4,6% a.a. registrados entre 1950 e 1979. O país tornou-se a maior economia global em paridade poder de compra, e a segunda maior em dólares correntes. O gigante asiático é o principal player no comércio internacional, o segundo maior investidor em pesquisa e inovação e possui o maior estoque de capital do mundo, vale dizer, o valor monetário estimado de sua infraestrutura física (prédios comerciais e residenciais, fábricas, estradas, portos, aeroportos etc.). Sob o comando do PCC, o “Império do Meio” consolidou-se como uma potência militar e espacial e tem uma estratégia ativa de internacionalização de sua moeda, de suas empresas e de seus investimentos. A “Nova Rota da Seda” (Belt and Road Initiative) é a sua mais recente iniciativa para a construção de bases materiais e institucionais que a consolidem como a potência líder do continente euroasiático e, possivelmente, um poder global capaz de se ombrear os EUA.

O pragmatismo e a capacidade de se adaptar às distintas conjunturas têm sido marcas importantes dos sucessivos líderes chineses da era pós-Mao. Deng Xiaoping foi particularmente prolífico na introdução ideias-força que sintetizam esta perspectiva. Suas analogias e frases simbólicas resistem ao teste do tempo e ainda podem ser utilizadas no esforço de decifrar o enigma chinês. São exemplos neste sentido expressões como: “Não importa se o gato é branco ou preto; enquanto ele caçar o rato será um bom gato”; “Busque a verdade nos fatos”; “Atravesse o rio sentindo as pedras”, “Mantenha a calma e seja discreto. Nunca assuma a liderança – mas tente fazer algo grande”, dentre outras. Como a liderança de Deng e dos sucessores por ele indicados, a ênfase na construção de capacidades tecnológicas e produtivas internas por meio da maior integração com os circuitos mercantis internacionais se deu de forma intensa e contínua. As disputas ideológicas internas ao Partido, e a consequente busca por controle integral das iniciativas individuais, foram colocadas em um plano secundário. Passou-se a estimular a inovação, o progresso material e o uso dos mais distintos mecanismos de mercado para alicerçar o “rejuvenescimento da nação”.

Para a decepção das principais potências ocidentais, a modernização econômica não se traduziu de forma direta ou automática em reconfiguração política doméstica. A China não se transformou em uma democracia liberal e o PCC segue ditando os rumos da ascensão nacional. Ao comemorar seu centenário, os líderes comunistas reafirmaram ser indissolúvel o destino do povo, da nação e do partido. 

Com Xi a musculatura do Estado e do Partido voltou a se fortalecer. Se, nos países avançados do Ocidente, percebe-se o predomínio dos interesses das elites econômicas e políticas em detrimento do bem-estar do conjunto da sociedade, na China, o Partido Comunista não parece disposto a compartilhar o controle sobre as formas de uso da riqueza social ou das informações geradas com as novas tecnologias digitais e a Inteligência Artificial. Os seus líderes não almejam transformar o país em uma democracia liberal ou em uma plutocracia.

Nos últimos meses, o governo chinês tem sido particularmente ativo na regulação de alguns setores econômicos, particularmente os segmentos de alta tecnologia. O sucesso do país permitiu a emergência de grandes conglomerados (estatais ou privados), que já estão entre os maiores do mundo. Em 2020, a China possuía 124 empresas na lista das 500 maiores da Fortune, contra as 10 empresas existentes na lista de 2000. A China já ultrapassou os EUA neste aspecto do ranking. Em termos de participação relativa neste universo de grandes corporações, as chinesas detêm 37% dos ativos e 8% do faturamento; já as estadunidenses possuem 33% e 10%, respectivamente. No caso da China, há o claro predomínio das grandes estatais, com participações superiores a ¾ dos respectivos agregados (número de empresas, ativos e receitas). Tais empresas são governadas por uma lógica que transcende a busca de valorizar o retorno para os acionistas no curto prazo. Elas buscam garantir acesso a matérias-primas estratégicas e mercados consumidores, bem como funcionam como alavancas da política de internacionalização do país. Já no rol das “privadas chinesas” há conglomerados que se transformaram e líderes globais em setores intensivos em tecnologia, como a Alibaba, Baidu, Huawei, Lenovo, Tencent, Xiaomi, dentre outras.

Xi não parece estar disposto a embarcar em uma nova “Revolução Cultural”. Perseguir os ricos e as grandes empresas privadas, particularmente as de alta tecnologia, poderia minar os ganhos de produtividade e, com isso, o sucesso econômico do país. O que se está desenhando é um novo arranjo de convívio entre o Partido e os ricos. Estes deverão entender que não estão autorizados a se envolver na política ou a criticar o Estado. Enriquecer e pagar impostos, inovar e gerar dinamismo, são iniciativas bem-vindas. Bloquear a emergência de novas empresas ou influenciar na definição das políticas públicas não são situações toleráveis. 

Ao invés de perseguir as elites com o intuito de destruir “as velhas ideias, hábitos, culturas e costumes” na linha maoísta (“Esmagar os quatro velhos”), Xi sinaliza que a riqueza privada precisa se justificar socialmente. O Estado (e o Partido) não pretende ter o monopólio sobre a geração da riqueza, mas segue firme com o intuito de manter as rédeas curtas no controle do seu uso e na gestão das informações e do poder. 

 A versão integral deste artigo com as respectivas referências bibliográficas está disponível no Portal da FCE

(*) Professores do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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