Opinião
|
23 de junho de 2019
|
20:07

Onde Cristo e o Estado não chegam (por Franklin Cunha)

Por
Sul 21
[email protected]
Onde Cristo e o Estado não chegam (por Franklin Cunha)
Onde Cristo e o Estado não chegam (por Franklin Cunha)
(Foto: Nelson Jr./STF)

Franklin Cunha (*)

Diante dos infindáveis  debates sobre a permanência  ou retirada  dos crucifixos nas repartições públicas e diante de tão eruditos personagens a dela participar, atrevo-me, modestamente,  às seguintes reflexões.

Em pleno regime fascista, ano de 1935, Carlo Levi, intelectual judeu-italiano para fugir do regime de terror homicida do norte do país, resolve se refugiar num pobre e perdido vilarejo do sul. Lá, ele se vê diante de uma gente simples que luta arduamente para sobreviver. Convivendo com esses habitantes, Carlo passa a apreciar a sabedoria peculiar desse povo do campo e escreve um livro chamado Cristo Parou em Eboli, no qual se baseou o filme. Reproduzo uma parte do livro: “Passaram-se muitos anos repletos de guerra e daquilo a que é costume chamar História. É-me grato regressar em imaginação a esse mundo diferente, escondido na dor e na tradição, ignorado pela história e pelo Estado, eternamente passivo.

Para os camponeses o Estado é mais distante que o céu e também mais temível porque nunca está ao seu lado.  Cristo desceu ao inferno subterrâneo do moralismo hebraico para lhe abrir as portas no tempo e marcá-las para toda a eternidade. Mas naquela terra obscura, sem pecado e sem redenção, onde o mal não é de origem ética mas sim uma dor terrena que está embutida sempre nas coisas, Cristo não desceu. Cristo parou em Eboli. ”

Quando os redatores da Constituição da União Européia a estavam elaborando, a Igreja Católica os pressionou para que mencionassem explicitamente “as raízes cristãs” dessa comunidade. Os constitucionalistas, no entanto, decidiram suprimir qualquer identificação filosófica ou religiosa que certamente causaria conflitos e exclusões. Além do mais, a raiz básica do Ocidente não é cristã,  já que o cristianismo tem raízes na religião judaica e na filosofia helênica. Assim , em rigor, a Igreja deveria ter se referido às raízes pagãs e judias da civilização ocidental. Cristo, um judeu, nunca se propôs a criar o cristianismo, mas reformar a religião hebraica.

Na realidade, o que define o Ocidente é a modernidade, a qual se construiu em oposição ao cristianismo e à Igreja Católica. Os acontecimentos que originaram o mundo moderno, a ciência e a técnica, a cultura urbana, a liberdade de expressão e de cultos, a extinção da escravidão, a emancipação da mulher, a queda dos tabus sexuais, a democracia política foram obras da ilustração e do livre pensamento, alheios à religião e condenados pela Igreja.

Diante dessas reflexões históricas, fica difícil acreditar que, simplesmente, um crucifixo pendurado nas supostamente austeras paredes dos tribunais, viria colaborar para a  prática de uma justiça mais dedicada, equânime  e realmente a serviço  da proteção e da defesa das marginalizadas e pobres populações de nosso país, para as quais  nem as religiões e  nem o Estado nelas ainda  chegaram.

(*) Médico, membro da Academia Rio-Grandense de Letras

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora