Política
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30 de dezembro de 2022
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09:14

2022: o início da reconstrução do Brasil, a privatização do RS e uma lição de Vandana Shiva

Por
Marco Weissheimer
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2022 foi um ano ainda de muita destruição, mas chega ao fim embalado pela esperança. (Foto: Luiza Castro/Sul21)
2022 foi um ano ainda de muita destruição, mas chega ao fim embalado pela esperança. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

2022 foi o ano em que o mundo começou a sair da pandemia ou, ao menos, do regime de lockdown e distanciamento social vividos nos dois anos anteriores. Ao longo da pandemia, muito se falou sobre os possíveis ensinamentos vividos neste período dramático. Chegando ao final de 2022, cabe perguntar: aprendemos algo, de fato, com a pandemia? Ou retomamos, neste ano “pós-pandemia” os nossos hábitos e modus operandi do “pré-pandemia”, como se nada de muito dramático tivesse acontecido em nossas vidas? Ou, de modo alternativo, como se fosse melhor soterrar essa experiência dramática vivida e retomar a “vida normal”. Um rápido olhar sobre o ano de 2022 sugere que os aprendizados podem até ter acontecido individualmente aqui e ali, mas, coletivamente, isso é ainda mais uma esperança do que uma realidade.

Quer as lições tenham sido aprendidas ou não, a pandemia deixou algumas evidências sobre o caráter sistêmico de crises e problemas globais, de como elas podem paralisar o planeta inteiro em poucas semanas e de como elas não podem ser enfrentadas com a agilidade necessária sem a presença articuladora do Estado e de instituições multilaterais, e sem pesados investimentos em ciência, saúde e educação. A covid-19, de certa forma, mostrou os pés de barro do discurso neoliberal que demonizou o Estado e a esfera pública e transformou o mercado numa panaceia para todos os males. O Brasil foi governador por essa religião privatista nos últimos quatro anos e não é coincidência como isso se expressou de forma trágica no número de vítimas da pandemia. 

Pandemia deixou uma série de lições sobre nossa existência como sociedade. Serão aprendidas? (Foto: Luiza Castro/Sul21)

O ano que está se encerrando foi marcado pelo agravamento de crises de caráter global que ameaçam coletivamente a humanidade e outras espécies de seres vivos também. E não há sinal no horizonte de um amadurecimento da percepção da gravidade desses problemas. A guerra na Ucrânia prossegue, com consequências imprevisíveis, pesquisadores e cientistas não cessam de alertar os governos sobre a urgência da crise climática, cujo enfrentamento segue a passos muito mais lentos do que a velocidade dos fenômenos que já nos atingem no cotidiano: extremos de frio e calor, chuvas intensas, enchentes e secas que impactam diretamente os locais de moradia das pessoas e a capacidade de produção de alimentos em várias regiões do mundo.

O último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), instância da Organização das Nações Unidas (ONU), prevê um aquecimento médio global de 1,5º C até 2040. Essa previsão não descreve, na verdade, um cenário futurista de aquecimento, mas uma realidade que já vem sendo vivida em várias regiões do mundo. Segundo levantamento da Comissão Europeia, vários países da Europa enfrentaram em 2022 a pior seca em 500 anos. E essa crise não se limita a mudanças climáticas extremas. Ela vem agravando outro problema igualmente grave que é uma massiva perda de biodiversidade no mundo, com extinção de espécies, rupturas de ecossistemas e perda de diversidade genética.

A destruição do governo Bolsonaro

No caso brasileiro, a confluência dessas crises teve um elemento agravante em 2022 (assim como nos três anos anteriores), a saber, a existência de um governo negacionista da ciência, da democracia e da própria ideia de direitos. Mas o governo Bolsonaro, sempre é bom lembrar, não fez tudo o que fez sem o apoio do agronegócio e do grande capital industrial, comercial e financeiro do país. O discurso do “agro é pop”, que virou peça publicitária e ideológica, andou de mãos dadas com esse negacionismo que custou milhares de vidas durante a pandemia, que praticou uma verdadeira política de extermínio contra os povos indígenas e deixou um rastro de destruição sem precedentes na Floresta Amazônica. A história do Brasil em 2022 tem essa marca.

Violência contra povos indígenas virou trágica rotina no Brasil. Foto: Relatório Cimi 2020/Divulgação

No dia 24 de maio, a Comissão Arns, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Coalizão Negra por Direitos e a Internacional de Serviços Públicos denunciaram, na 50ª sessão do Tribunal Permanente dos Povos (TPP), uma série de crimes que teriam sido praticados por Jair Bolsonaro nos últimos dois anos, ao longo da pandemia da covid-19. O TPP é um tribunal de opinião dedicado aos direitos dos povos, com sede em Roma, na Itália. Foi criado em 1979 e é herdeiro do Tribunal Russell, constituído em 1966 para investigar crimes e atrocidades cometidos na guerra do Vietnã.

As acusações se referem aos crimes cometidos pelo contra povos indígenas, população negra e profissionais de saúde durante a pandemia e também ao caráter autoritário da condução do governo federal ao longo da crise dos últimos anos. As entidades citadas acusaram Bolsonaro de ter, no uso de suas atribuições, “propagado intencionalmente a pandemia de Covid-19 no Brasil, gerando a morte e o adoecimento evitáveis de milhares de pessoas, numa escalada autoritária que suprimiu direitos e erodiu a democracia”.

Além disso, as medidas (ou desmedidas) do governo Bolsonaro na área ambiental tornaram o Brasil um pária internacional no debate sobre a crise climática e da perda de biodiversidade. O avanço do desmatamento, da mineração, garimpo ilegal e grandes monoculturas na Amazônia e na região do Pantanal foi protegido e mesmo incentivado por medidas e omissões do governo federal. Uma série de negociações internacionais envolvendo o Brasil – como as envolvendo o Mercosul e a União Europeia, por exemplo – foram paralisadas ou congeladas em função da conduta do governo Bolsonaro. 

A reconstrução do Brasil

Os acontecimentos políticos e sociais de 2022, por outro lado, apontam para o fim de um ciclo. A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, para a presidência da República, derrotando Jair Bolsonaro, abriu um novo horizonte para o país. Em sua primeira fala após a vitória, Lula falou do desafio de “reconstruir a alma do Brasil”. “Reconstrução” foi uma das palavras mais utilizadas nos dois meses de trabalho do governo de transição, em Brasília. Em um artigo publicado no Sul21, Flavio Fligenspan, professor aposentado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), chamou a atenção para o fato de que a destruição nos anos Bolsonaro foi tamanha, que esse trabalho de reconstrução perpassa “todos os campos da vida em sociedade, desde o afastamento do clima de ódio e a volta de padrões mínimos de civilidade e respeito até a reorganização das instituições de Estado”.

O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, e o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O afastamento do clima de ódio, como se viu especialmente neste final de 2022, poderá não ser uma tarefa simples. Um setor da base social bolsonarista não se conformou com o resultado da derrota eleitoral e deu início a uma série de protestos que envolveram bloqueio de estradas, acampamentos em frente a quarteis pedindo golpe e intervenção militar e atos terroristas incluindo o uso de bombas. Em entrevista ao Sul21, a antropóloga e cientista social Rosana Pinheiro-Machado afirmou que “o impacto de uma figura como Bolsonaro num país com a história do Brasil, forjada em séculos de escravidão e muita violência, se difere completamente do que representa a extrema direita nos Estados Unidos ou na Europa. O contexto é outro. E o contexto muda tudo”.

Se a gente pensar que o Bolsonaro é um ‘Trump dos Trópicos’, a gente não está pensando nas consequências, no Brasil, onde a democracia é muito mais frágil. As consequências de uma extrema direita aqui são muito mais violentas. O que acontece no Brasil em termos de gênero, perseguição de professores, o que está acontecendo na Amazônia, é incomparável. Talvez o Brasil seja o caso mais radical hoje da extrema direita no mundo”, acrescentou Rosana. Lidar com esse clima ancestral de racismo, colonialismo e violência será uma das dimensões mais desafiadoras do trabalho de reconstrução do país.

Ele se dará praticamente em todas as áreas de governo. Uma delas, diretamente relacionada ao que aconteceu no país durante o período mais crítico da pandemia (2020-2022), é a saúde. Em uma entrevista coletiva concedida dia 29 de dezembro, com a presença dos coordenadores do Grupo de Trabalho da Saúde do Gabinete de Transição, o vice-presidente da República eleito, Geraldo Alckmin (PSB) definiu como uma “tragédia social” o “legado” deixado pelo governo de Jair Bolsonaro. Segundo Alckmin, a área social no país “andou pra trás” em educação, desenvolvimento social, combate a fome, meio ambiente e outros setores. Para Alckmin, o maior prejuízo foi mesmo para a saúde pública. “Eu diria que o retrocesso maior foi na saúde. Até no programa de imunização, em que o Brasil era exemplo para o mundo, tivemos enorme perda, a ponto de termos hoje perto de 50% das crianças sem o reforço da poliomielite”, resumiu.

A futura ministra da Saúde, Nísia Trindade, a história da saúde e do SUS no país será “retomada no que tem de mais profundo e estruturante”. O desafiou nesta área, acrescentou a ex-presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), é agravado pelo fato de o Brasil ter enfrentado a pandemia de covid-19 com um governo que permitiu dados trágicos. Com 2,7% da população do planeta, o país registrou até aqui 11% das mortes do mundo. No final deste mês de dezembro, o Brasil contabiliza quase 694 mil mortos na pandemia, isso segundo os dados oficiais do governo Bolsonaro, sem levar em conta as subnotificações.

A privatização do RS

Enquanto, em nível nacional, o final de 2022 foi marcado pelo início de uma série de reconstruções de espaços e políticas públicas, no Rio Grande do Sul o caminho é o oposto. O Estado e a sua capital Porto Alegre vivem um processo massivo de privatização de empresas, espaços públicos e serviços estratégicos como o abastecimento de água e de energia.

A situação de isolamento causada pela pandemia favoreceu que o slogan formulado pelo governo Bolsonaro de “passar a boiada” fosse adotado em diversos estados, como aconteceu aqui no RS com o governo Eduardo Leite. A privatização da CEEE-G (braço de geração da Companhia Estadual de Energia Elétrica), no final de julho, e da Corsan, no final do ano, foram dois capítulos centrais desse processo de atropelo da boiada no Estado.

Porto Alegre, refém do “extrativismo predatório neocolonial” (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Em Porto Alegre, a gestão de Sebastião Melo (MDB) avançou inclusive sobre espaços públicos clássicos da cidade como os parques da Redenção e Marinha. Em setembro, a Prefeitura da capital apresentou, em São Paulo, o cronograma para a concessão da gestão dos parques Farroupilha (Redenção) e Marinha do Brasil e de diversos trechos da Orla do Guaíba para a iniciativa privada. A Prefeitura pretende oferecer a construção e exploração de um estacionamento subterrâneo como atrativo para a concessão do Parque da Redenção. Os editais de concessão deverão ser lançados em 2023. A intenção de privatizar esses espaços gerou uma forte mobilização da comunidade da cidade que deve prosseguir em 2023, anunciando uma luta que coloca em questão qual modelo de cidade será construído neste período de confluência de crises em todo o mundo.

Porto Alegre comemorou seus 250 anos neste 2022. Coordenador do Atlas Ambiental de Porto Alegre, o geólogo Rualdo Menegat, professor da UFRGS, disse que a capital gaúcha “é hoje uma cidade ambientalmente abandonada”, que se encontra refém de um “extrativismo predatório neocolonial”. Menegat alertou para os impactos da especulação imobiliária sobre a orla do Guaíba e outros territórios e para a crescente deterioração dos serviços ecossistêmicos, em especial aqueles oferecidos pela água. E acrescentou:

“Há uma deterioração crescente dos serviços ecossistêmicos, em especial aqueles oferecidos pela água. Nossos arroios tornaram-se valões e, alguns deles, não acumulam apenas resíduos sólidos e esgotos, mas também metais pesados. As nascentes não estão sendo protegidas e, com isso, todo o sistema fica comprometido. Agora veja: em um contexto de mudanças climáticas, a ausência de programas ambientais também significa dificuldades para enfrentar os novos desafios. Se não fizemos o tema de casa elementar, como enfrentar as grandes mudanças em curso no presente século?”

A filósofa e ativista ecofeminista indiana Vandana Shiva (Foto: Common Dreams.org)

Esse questionamento final pode resumir o legado do ano de 2022 e os desafios que ele deixa para 2023: as grandes crises globais, como a climática e a ambiental de um mundo mais geral, não são mais abstrações ou coisas que assistimos passivamente nos noticiários. Ao contrário, elas passaram a fazer parte do nosso dia-a-dia e a omissão da sociedade, perante essa realidade, custará muito caro, não para as próximas gerações, mas para as atuais gerações, nós todos que navegamos neste planeta. “Navegamos” talvez não seja a palavra mais adequada para definir a nossa relação com o planeta no momento. Para buscar essa percepção mais adequada, essa rápida crônica sobre 2022 encerra com essas palavras de Vandana Shiva, física, filósofa e ativista ecofeminista indiana:

“O sistema político e econômico, que tem mais de duzentos anos de história, o capitalismo patriarcal, se baseia na guerra contra a Terra, guerra contra as mulheres, guerra contra a vida. O capitalismo patriarcal é a convergência da cobiça, da acumulação e do extrativismo, como também é o medo a tudo o que está vivo e livre. É uma ordem de guerra contra a Terra, contra o corpo das mulheres, contra as economias locais e contra a democracia. Temos que entender as conexões destas formas de violência”.

Os atuais governantes do Rio Grande do Sul, de Porto Alegre e do Brasil, até o último dia desse 2022, e os setores econômicos que os apoiam, são a expressão mais crua, ignorante e tacanha desse capitalismo patriarcal. Mas eles foram eleitos pelo voto popular. Assim, cabe à população escolher se seguirá apoiando esse caminho. A esperança para 2023 é que, em nível nacional, essa caminhada comece, finalmente, a mudar de direção. O mundo inteiro está precisando dessa guinada.


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