Meio Ambiente
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23 de setembro de 2021
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17:55

Bioma mais degradado do País, Pampa tem preservação judicializada

Por
Luciano Velleda
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A pecuária, que permite produzir e ao mesmo tempo conservar a natureza, tem sido substituída pela lavoura de soja, que extingue os campos nativos. Foto: Guilherme Santos/Sul21
A pecuária, que permite produzir e ao mesmo tempo conservar a natureza, tem sido substituída pela lavoura de soja, que extingue os campos nativos. Foto: Guilherme Santos/Sul21

O futuro e o presente do bioma Pampa parecem estar nas mãos da Justiça. Um dos seis biomas do Brasil junto com Amazônia, Pantanal, Mata Atlântica, Cerrado e Caatinga, o Pampa só existe no Rio Grande do Sul e, talvez por isso, a perda constante de sua vegetação nativa não receba os holofotes da imprensa e dos ambientalistas dispensados a outras regiões do País.

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O bioma típico do Rio Grande do Sul é o que tem sofrido a maior remoção da vegetação nativa dentre todos os biomas brasileiros. Em 2019, a área total mapeada no Pampa pelo IBGE foi de 19,3 milhões de hectares. Deste total, os remanescentes de vegetação nativa campestre ocupavam, em 2018, 33,6% do território do bioma, ou 6,5 milhões de hectares.

Atualmente, a agricultura é o tipo de uso do solo predominante no Pampa, ocupando 38,3% do seu território. A soja tem sido o principal cultivo a ocupar as áreas originalmente constituídas de vegetação nativa campestre. Entre 2000 e 2015, a área plantada com soja no Pampa cresceu 188,5%. As florestas nativas cobrem 13,2% do bioma e a silvicultura 2,4%, sobretudo com eucalipto e pinus, enquanto que os corpos d’água representam 9,6%.

Em 2012, a Lei 12.651, conhecida como Lei de Proteção da Vegetação Nativa, estabeleceu que 20% de cada propriedade rural deve ser preservada como “reserva legal”. Três anos depois, em 2015, a lei foi regulamentada no RS por decreto do governo estadual, à época comandado por José Ivo Sartori (MDB). Ali começou uma disputa judicial ainda não resolvida e cujo impasse, segundo Diego Melo Pereira, diretor de Biodiversidade da Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema), tem trancado as principais ações de preservação e conservação do Pampa.

Entidades ambientalistas ingressaram na Justiça contra trechos do decreto e, em 2016, obtiveram liminar favorável. A principal disputa envolve a permissão que o decreto estadual havia dado para que os proprietários de imóveis rurais declarassem como “área rural consolidada por supressão de vegetação nativa” aquelas áreas usadas para atividades pastoris (criação de gado, por exemplo). Tal permissão faria com que muitas propriedades rurais ficassem desobrigadas de cumprir a exigência de 20% de reserva legal.

Na liminar, a juíza acatou os argumentos dos ambientalistas de que a atividade pastoril não descaracteriza o Pampa e, portanto, não pode ser declarada no Cadastro Ambiental Rural (CAR) como área rural consolidada, ficando então passível de constituir os 20% de reserva legal. Cinco anos depois da liminar, ambientalistas acusam a Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema) de não exigir o percentual mínimo de reserva legal estabelecido na lei e também de não implementar o Programa de Recuperação Ambiental (PRA) nos imóveis rurais sem os 20% de reserva legal.

Em sua defesa, a Sema argumenta que não pode agir enquanto a Justiça não tomar uma decisão definitiva. Ao lembrar a recente aprovação, em 2020, do novo Código Estadual do Meio Ambiente, que incorporou conceitos do decreto de 2015, o diretor da Secretaria pondera que a liminar pode, inclusive, ter perdido seu objeto.

Essa ação (na Justiça) cria efeitos sobre um decreto. E agora temos a lei estadual que absorveu esses conceitos. Então hoje, com a lei de 2020 publicada, ela torna sem efeito aquilo que determinou a ação civil pública, o efeito dessa ação perde objeto. Mas isso vai ter que ser discutido, há que se ter uma determinação judicial pra isso. Só que a liminar está em vigor”, afirma o diretor de Biodiversidade.

Confira a entrevista completa:

Sul21: Como a Secretaria avalia o atual estágio de preservação do bioma Pampa?

Diego Pereira: É importante contextualizar o histórica da legislação associada às áreas de campo. O Pampa é um bioma predominantemente campestre. Aqui no Rio Grande do Sul temos uma situação peculiar. Ele é quase 70% do nosso território em termos de bioma, mas em característica de vegetação falamos em torno de 50%, porque temos todas as vegetações pioneiras que descem até Santa Vitória do Palmar, e aquilo tudo é bioma Pampa, mas são formações de restingas campestre, arbórea e herbácea, formações que temos nas regiões litorâneas e no entorno de lagoas, e essa vegetação tem regime especial de proteção. Temos a serra do sudeste, que tem uma formação arbórea bastante expressiva e que na verdade é bioma Pampa, mas há uma série de tipos vegetacionais em que a gente tem que implementar a Lei da Mata Atlântica.

Então diria que mais de 50% do Pampa são formações campestres, e a formação campestre seguiu uma linha na legislação bastante preconceituosa, porque a legislação ambiental está num processo de evolução. A legislação associada à vegetação nativa, nos últimos anos, discutiu a proteção dos ambientes florestais, que são aqueles que, impactados, o dano é naturalmente observado e a reparação é muito longa, o que não acontece nos campos.

É claro que temos nos campos uma situação de difícil reparação, em alguns casos principalmente pela indisponibilidade de sementes no mercado, não está estabelecido um processo comercial sobre a possibilidade de uma pessoa querer restaurar uma área em que ela fez um dano ambiental, ou mesmo uma conversão autorizada e quer por vontade própria retornar para um campo nativo.

Sul21: Mas qual a avaliação da Secretaria sobre a situação do Pampa?

Diego Pereira: Em termos de conservação, temos que pensar o quanto é incipiente a legislação. Temos somente em 2012 um cenário claro de que toda e qualquer conversão de campo nativo deveria dispor de autorização prévia. Somente em 2015 se estabeleceu o Decreto 52.431 que criou o regramento de como vamos autorizar a conversão. Então tivemos de 2012 a 2015 sem o regramento e, mais do que isso, a lei anterior 12.651 estabelece como crime ambiental quem converteu vegetação nativa sem autorização.

Por isso se estabeleceu o marco de 22 de julho de 2008 como data para consolidar ou não o espaço em que aquela conversão é caracterizada como crime. Tem a lei em 2012 com a necessidade de autorização e em 2015 vem, de fato, o regramento. Diante desse regramento tivemos uma série de embates, de discussões, principalmente em função da interpretação da lei federal a ser aplicada em remanescentes de vegetação nativa campestre no Pampa. Os dados de conservação estão no nosso inventário florestal nacional, feito no Rio Grande do Sul. No estado inteiro temos 15% de vegetação natural considerada preservada, incluindo unidades de conservação, áreas de proteção permanente e as reservas legais também. Pra separar o conjunto do Pampa, neste contexto, teria que adicionar todos os percentuais de vegetação natural preservada nos municípios que afetam o bioma.

Sul21: Há estudos que indicam 33% de campos nativos preservados. Esses dados conferem pra Secretaria, é com eles que vocês trabalham?

Diego Pereira: O MapBiomas é um ferramenta impressionante, inclusive utilizamos uma ferramenta disponibilizada chamada Sistema de Alerta, que são as conversões efetivadas, e se elas são ou não autorizadas aí cabe um procedimento administrativo de avaliação, mas é um resultado bastante responsável. Não há como não dizer que não houve conversão no bioma Pampa nos últimos anos. O fato de ser autorizada ou não, é uma análise ambiental. Anualmente a Secretaria e a Fepam fazem operações no Pampa.

Temos pego em torno de 30 mil hectares de área em autuações administrativas já efetivadas. Até se caracterizar o dano e conseguirmos fazer uma autuação responsável há toda uma medida de avaliação técnica pra ser implementada. Digo isso porque trabalhando exclusivamente com ferramentas de geoprocessamento, podemos incorrer em erros, primeiro pela escala da imagem utilizada, e segundo pela característica da vegetação, porque poderia ser uma pastagem cultivada. Por ferramentas exclusivamente de georeferenciamento é muito difícil ter assertividade e classificar o uso do solo como sendo de campo nativo com alguns outros tipos de usos. Não estou dizendo que o dado do MapBiomas está equivocado, estou dizendo que ele tem um grau de erro, e esse grau de erro está nos relatórios dos levantamentos que eles nos apresentam.

Mas sim, houve conversão no Pampa nos últimos anos e a Secretaria e a Fapam têm alguns instrumentos pra promover a reparação. Um deles é a fiscalização, que acontece anualmente em operações. E ainda sobre a legislação, quando ela é implementada, ela tem um certo tempo pra se difundir que aquilo é uma necessidade. Um exemplo é o CAR (Cadastro Ambiental Rural). A gente já sabia desde 1965 que áreas de preservação permanente não podem ser impactadas. Veio o CAR em 2012 pra dizer: ‘nós sabemos que vocês estão convertendo vegetação, inclusive em áreas de proteção permanente e reserva legal, mas livro vocês de sanção administrativa de tudo o que foi convertido até 22 de julho de 2008, desde que você faça adesão ao CAR e ao Programa de Regularização Ambiental (PRA), que vai te livrar da sanção administrativa caso tu faça um projeto de recomposição dessa vegetação’.

Isso é uma janela de décadas de tempo. Chegou a lei em 2012 e até que as pessoas tivessem ciência…há o tempo natural de uma legislação ser implementada. Em 2015 a gente teve o procedimento regrado, que está judicializado. Hoje já se sabe que campo não se pode converter sem autorização. E a Sema e a Fepam estão atuando.

Sul21: E qual a consequência das autuações feitas pela Secretaria e pela Fepam?

Diego Pereira: Toda autuação culmina num projeto de recuperação de área degradada. Tem gerado em torno de 250 a 300 hectares de área que a Secretaria aprova em projetos de recuperação de área campestre. As ações de fiscalização estão acontecendo, claro que com a velocidade que a gente consegue implementar. A análise do CAR vai ser fundamental, porque aí vamos conseguir pegar a janela temporal inteira pra conseguir caracterizar se uma determinada intervenção foi autorizada ou não.

Sul21: Ambientalistas dizem que os proprietários não estão preenchendo os campos nativos como remanescentes de vegetação nativa no CAR. O que diz a Secretaria?

Diego Pereira: Tenho que desdobrar a resposta em dois pontos. Um deles é preenchimento de CAR, a outra é autorização de conversão para uso alternativo do solo. O cadastramento e a regra imposta pela legislação tem impacto sobre reserva legal, mas não tem impacto sobre autorização pra conversão de uso alternativo, porque independentemente do cadastramento, ele precisa ter autorização pra converter campo. O CAR vai descrever o uso do solo, e as conversões não autorizadas, pós 2008, se são em áreas protegidas ou não, gera uma sanção administrativa. Quando é antes (de 2008), ele fica livre de sanção administrativa caso faça adesão ao PRA. Pela legislação federal, atividades agrosilvipastoris pré-existentes a 22 de julho de 2008 são consideradas consolidadas.

Aqui pro Pampa, na perspectiva de pensar que manejo pecuário é uma atividade antrópica e pastoril, se entendeu que ela efetivamente promovia um processo de consolidação do solo, que aí culmina no impacto da existência ou não de reserva legal neste imóvel rural. Só que esse decreto previu que, independentemente de ser consolidada ou ser remanescente de vegetação nativa, diz que remanescente de vegetação nativa também é campestre desde que a atividade antrópica se insira sobre os campos pós 22 de julho de 2008. Mas a gente sabe que isso não existe porque os campos dependem da presença do gado ou de algum nível de antropização, como manejo do fogo ou roçadas mecânicas.

Só que quando se coloca o gado antes de 22 de julho de 2008, significa que se está antropizando essa vegetação, então antropizar, para fins de CAR, você cadastra como uso consolidado para atividade pastoris.

Sul21: Como saber, no processo de fiscalização, se o gado foi colocado antes ou depois de 22 de julho de 2008?

Diego Pereira: Temos imagens de satélite. Então pelas características de solo e características do local, que naturalmente tirando o gado vira uma sucessão florestal, a gente sabe que havendo campo antes de 22 de julho de 2008, há uma antropização, com exceção de alguns tipos de ambientes que não seriam o caso, principalmente nos cerros do Pampa e afloramentos de rocha. Então tem condição da gente efetivar uma análise técnica de que o proprietário está nos informando uma condição que é de fato aquela associada.

Sul21: E essa análise tem sido feita?

Diego Pereira: A análise é outro ponto, é uma etapa subsequente ao cadastramento. Estamos ainda superando as questões de cadastramento porque estamos submersos em ações judiciais nos dois biomas, tanto no Pampa quanto na Mata Atlântica, cada um com a sua justificativa. No Pampa, justamente esse critério de classificação de uso consolidado com atividades pastoris, que vem de uma interpretação da lei federal, que culminou numa ação civil pública. Porque se o proprietário cadastra desse jeito não precisa demarcar reserva legal. Quando que é exigida reserva legal no bioma Pampa? Temos essa exigência a partir de 2001 pela Medida Provisória 2166-67, que exige para todos os biomas os 20%, incluindo os ‘campos gerais’ de todo o território nacional, porque até então reserva legal era interpretada somente para ambientes florestais.

Então o que acontece é que se há uma consolidação do espaço do imóvel rural antes de 2001, que significa campo nativo com pecuária antes de 22 de julho de 2008 e antes também de 2001, ou uso alternativo de fato, como lavouras, quando a gente interpreta junto com o Artigo 68 (da Lei de Proteção da Vegetação Nativa) que diz: ‘Todo proprietário estará dispensado de recompor vegetação nativa à título de reserva legal’. Então no momento que nós assumirmos a postura jurídica de que pecuária sobre campo nativo tem o efeito de consolidação desse espaço e isso foi feito antes de 2001, não haverá reserva legal. E se foi feito entre 2001 e 2008, essa ‘janela’ de tempo a gente consegue buscar um pouco de reserva legal, mas ela pode ser inferior a 20%. Porque quando a gente traz o Artigo 67 (da mesma lei) pra interpretação, os imóveis abaixo de quatro módulos podem ter menos de 20%. Toda essa ressalva está no Artigo 12 (também da Lei de Proteção da Vegetação Nativa), quando coloca ‘eu quero 20% em todos os imóveis, exceto os casos previstos no Artigo 68’.

Quando ela faz isso, ela diz que quem respeitou os percentuais à época, que no caso pro Pampa era 2001, está dispensado. Significa que essa interpretação jurídica tem o efeito cascata da não exigência de reserva legal. E isso culminou numa ação civil pública que o Estado está respondendo e numa liminar em que o juiz determinou que o Estado devesse exigir mudança nos cadastros, exigindo retificação, que a gente deveria substituir para remanescente de vegetação nativa no caso dos campos que foram declarados como consolidados, e exigir sem exceção 20% em todos os imóveis, independentemente da previsão do Artigo 67. A própria liminar está com efeito acima da legislação.

Sul21: E a decisão da liminar está sendo cumprida?

Diego Pereira: A liminar tem um ponto fundamental em que incide essa determinação quando o Estado fizer as análises de cadastro. E nessa janela temporal, tanto o serviço florestal brasileiro quanto alguns estados ainda estavam desenvolvendo os módulos de análise, a gente não tinha a ferramenta propriamente dita pra exigir notificações. Quando isso foi disponível, toda a legislação estadual foi rediscutida, o código ambiental já estava em processo de discussão e agora todos os efeitos que a gente tem sobre a judicialização de um decreto estão hoje conceituados no Código do Meio Ambiente. Então justamente um dos princípios de inconstitucionalidade desse decreto foi dizer o seguinte: como a lei federal não determinava uma aplicação clara de como deveriam ser feitas as determinações de campo nativo, especialmente os do Pampa, porque a Mata Atlântica tem regra própria, o Estado poderia legislar sobre o tema.

Mas ele não poderia fazer por decreto, deveria fazer por uma lei. E isso se sanou agora com o Código do Meio Ambiente. E o Código do Meio Ambiente além de englobar a questão do campo como consolidado, ele diferenciou o que é remanescente de vegetação nativa e o que é uso consolidado, pela atividade antrópica. Essa é a diferença. É antrópico ou não é antrópico? E aí a gente diz se é remanescente de vegetação nativa ou uso consolidado com atividades agrosilvipastoris. Essa é a diferença. Tem uso do homem ou não? Só que a gente sabe que, se esse conceito seguir sendo implementado, a gente tem um efeito cascata na implementação de reserva legal ou não.

Então porque o estado não exige os 20%? Porque em alguns casos não vai ser necessário pela legislação, dada a interpretação (dos artigos) 67, 68 e mais o Artigo 12 (da Lei de Proteção da Vegetação Nativa). E esse são os efeitos da judicialização dessa interpretação. Então por que o Estado não implementa de fato a análise? Porque a gente não vai desenvolver isso com insegurança jurídica. Precisamos que essa ação civil pública determine, dê ganho de causa a uma determinada interpretação ou outra.

Sul21: Enquanto esse impasse não é resolvido, o Pampa segue perdendo vegetação nativa. Ao mesmo tempo já foi dito, até por uma questão de falta de sementes, que a recuperação é difícil. Não podemos estar diante de uma situação sem volta?

Diego Pereira: Toda conversão de campo precisa de autorização, independente do conceito com que ela entra no CAR. Temos feito fiscalizações anuais junto com a Brigada Militar e o IBAMA. A sociedade está pressionando e os órgãos públicos de controle estão fazendo seu trabalho de fiscalização. É claro que talvez a conversão possa estar em níveis em que a nossa eficiência seja inferior às taxas de conversão.

Com as tecnologias (pra restauração), existem uma série de pesquisadores desenvolvendo linhas de pesquisa nesse sentido. A Embrapa está desenvolvendo protocolos de restauração junto conosco. A fiscalização que a gente faz, culmina na aprovação de um projeto de recuperação de área degradada e o responsável técnico tem que nos apresentar uma proposta eficiente. Se é caro ou não, pra nós não importa. Então tem tecnologias de fenação, que faz transposição de feno e carrega semente, mas pra isso não pode perder campo, sem campo não tem a origem da semente. E a Embrapa Bagé está desenvolvendo alguns estudos, uma linha de pesquisa com espécies nativas. O professor Miguel Dall’Agnol, da UFRGS, trabalha especificamente com desenvolvimento de sementes de espécies forrageiras nativas. A ciência existe, se é caro ou não, é outro contexto.

Sul21: Há críticas de que a Secretaria ainda não definiu os critérios e diretrizes técnicas pra autorizar a supressão de vegetação nativa e a conversão do uso do solo pra outra atividade. O que acontece?

Diego Pereira: Voltamos pra legislação: “incipiente pra campos”. É uma legislação que está sendo fundamentada. O que o Código do Meio Ambiente fez? Agora em 2020 tivemos a inclusão do Artigo 203, que trata da perspectiva de regulamentar os princípios de uso e de conservação. Significa dizer que está vindo aí uma legislação que vai regrar todos esses princípios. Precisávamos desenvolver algo semelhante ao que tem na Mata Atlântica, a definição de estágios sucessionais, porque se cria o nível de proteção em diferentes escalas daquele ecossistema: estágio médio, avançado, inicial e uma vegetação primária. Cada uma tem uma perspectiva. O Pampa é tudo uma coisa só, tudo é vegetação nativa.

Quando a gente estabelece esses princípios sucessionais, a gente sabe quais são aqueles campos conservados há muitos anos e que tem uma diversidade florística mais acentuada que campos em regeneração. Significa dizer que um campo convertido ontem, que vai entrar em regeneração, tem muito menos diversidade do que um campo conservado há 20 anos. Então é possível criar distintos processos de classificação dessa vegetação. E depois os processos de sucessão, porque temos preocupação com os ambientes florestais do Pampa. A gente precisa estabelecer critérios, pontos onde podemos permitir ou não determinada intervenção classificando esse ambiente.

Sul21: E o que falta pra isso? Se ainda existe indefinição de critérios, como a Sema está autorizando ou negando a supressão de vegetação e a consequente conversão?

Diego Pereira: A competência da conversão é da Fepam, não é da Secretaria. A Secretaria atua com os projetos de recuperação e recomposição de uma supressão. Mas enfim…é importante entender que nenhuma legislação pode ser analisada de forma independente, a gente faz um somatório de interpretações pra chegar num entendimento. Então temos a lei federal, as resoluções do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), resoluções do Conselho Estadual do Meio Ambiente, mais decretos e em alguns casos até legislações municipais. Somando isso tudo, a gente cria uma regra.

Mas pra simplificar a conversão de campo, hoje, primeiro a pessoa tem que ter cadastrado o CAR, isso nos dá como o uso do solo está caracterizado. De posse das determinações da liminar, que exigiu que a gente considerasse esse campo nativo todo como remanescente de vegetação nativa, e exigisse 20% de reserva legal em todos os imóveis, a gente tem feito isso. Então quando a pessoa vai pedir autorização, pelo efeito da liminar a gente exige os 20%. Sobra o resto, que é todo o uso do solo que tem campo passível de conversão. O que sai dessa conversão são as áreas de preservação permanente.

Quando a pessoa cadastra o CAR e a sua reserva legal em cima de APP (Área de Preservação Permanente), tem um impedimento na legislação que veda novas conversões. Então de posse dessas informações, liminar, mais as regras, o imóvel (rural) vai ter que ter campo nativo, com 20% de reserva legal, mais as APPs preservadas, e o resto da vegetação vamos discutir, porque tem as limitações do Código Florestal Federal e do Estadual, presença de espécies ameaçadas, raras e endêmicas limitam a conversão. O resto do campo que sobrou na propriedade, vamos fazer a análise. Essa é a regra geral que está posta hoje.

Sul21: A análise do CAR está sendo feita plenamente?

Diego Pereira: A análise já funciona, temos o módulo de análise em operação e fazemos também por exigência da liminar, mas a gente não vai até a etapa fim, chamada ‘validação do imóvel’. Por questões judiciais. Enquanto não for determinado qual caminho a ser dado, o Estado não vai perder o tempo administrativo implementado nessas análises para dar fim e dar regularidade ambiental ao imóvel, porque tudo pode mudar. Então já existe, já funciona, mas tem um ponto fundamental que é o seguinte: o proprietário declarou o imóvel, quando eu ‘puxar’ esse imóvel pra análise, pra autorizar conversões, o proprietário não pode mais retificar. Como só estamos autorizando conversão de campo, em face da liminar, e com a presença da reserva legal e das APPs protegidas, esses territórios ficam preservados e ressalvados num imóvel em que a gente só está aguardando questões judiciais finalizarem. Quando der ok, a gente manda quase 400 imóveis que já receberam autorização pra conversão de campo pra uma análise que já está feita. Então não depende da Secretaria, depende de questões judiciais.

Essa ação (na Justiça) cria efeitos sobre um decreto. E agora temos a lei estadual que absorveu esses conceitos. Então hoje, com a lei de 2020 publicada, ela torna sem efeito aquilo que determinou a ação civil pública, o efeito dessa ação perde objeto. Mas isso vai ter que ser discutido, há que se ter uma determinação judicial pra isso. Só que a liminar está em vigor. A Procuradoria Geral pode fazer, e não estou dizendo que vai fazer, mas pode interpor isso dentro do processo judicial e requisitar uma anulação dos efeitos da ação. E aí vamos ter que ter uma regra. O Pampa precisa de uma legislação própria, esse talvez seja o lema que solucionará o encaminhamento de tudo isso.

Sul21: Em agosto, o Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais denunciou no Ministério Público a não implementação do Programa de Regularização Ambiental. Qual a posição da Secretaria?

Diego Pereira: A resposta é muito simples. A legislação federal estabelece que os estados devem implementar seus programas de regularização ambiental, que são as regras que compõem as peculiaridades territoriais, e ela dava um prazo pra isso, que já se encerrou. Só que ela diz que os Estados que não implementaram, passam a seguir as determinações da lei federal. Isso significa dizer que nós temos, sim, um Programa de Regularização Ambiental implementado. E qual é? O previsto na legislação federal. Todas as regras e disposições transitórias estão claras. Só que é importante nós termos as nossas peculiaridades territoriais.

Diante disso, desde 2017 temos um grupo técnico que desenvolveu a minuta do programa de regularização ambiental. E por que a gente não pode colocar ele na rua? A resposta sempre é a mesma, da análise do PRA (Programa de Regularização Ambiental). Se as questões judicias mudarem as suas determinações, a regra muda. Então como vamos colocar um programa de regularização ambiental na rua pra ser implementado, sem saber a consequência jurídica do processo? É criar regras, difundir regras, fomentar regras que não vão ser implementadas. Então temos o texto consolidado, praticamente tudo pronto, são realmente as amarras judicias que estão aí envolvidas que nos impedem.

Por que estamos falando de PRA se o CAR (Cadastro Ambiental Rural) não foi analisado? O PRA é a etapa subsequente em que o Estado analisa o imóvel, desenvolve os critérios de uso e ocupação do solo, e joga esse imóvel no programa de regularização ambiental. E daí propõe uma metodologia de restauração. Está gravado numa reunião do Conselho Estadual do Meio Ambiente uma apresentação que fiz de como vai funcionar o módulo, já antecipei essas informações, está tudo pronto. É realmente uma questão de dar encaminhamento as questões judicias para que a gente tenha segurança jurídica. Sem segurança jurídica, o Estado não vai se movimentar.

Sul21: Então a disputa jurídica impede a análise completa do CAR, e isso impede implementar o Programa de Regularização Ambiental e também impede a cobrança de 20% de reserva legal, tudo depende da Justiça?

Diego Pereira: Falando do Pampa, diria que tem um efeito cascata. Poderia até implementar um PRA somado de uma regra de liminar, mais uma lei que a gente não sabe se vai ser implementada… O decreto de 2015 foi judicializado em parte, alguns dispositivos estão ainda vigorando. Então como vou trabalhar com um decreto parcial, mais liminar, que pode cair a qualquer tempo, e uma ação civil pública que tem o efeito sobre uma lei que já ajustou as coisas, mas não temos uma solução? É realmente uma confusão jurídica. E é importante que se diga que a Secretaria não está se omitindo, pelo contrário, estamos prontos, com as regras ‘semi-prontas’. Temos um texto que, se (a decisão judicial) for pra um lado ou pra outro, a gente opta por uma condição e toca essa regulamentação pra rua.


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