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16 de abril de 2024
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17:26

‘Bagunça’: Falta de planejamento para patinetes em Porto Alegre causa desordem e afasta startup local

Por
Bettina Gehm
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Decreto proíbe estacionar patinetes no meio da calçada. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Decreto proíbe estacionar patinetes no meio da calçada. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Com o início da operação da empresa Jet, no último dia 6 de abril, as patinetes elétricas agora são 1,1 mil em Porto Alegre. Embora esses equipamentos tenham o uso regulamentado por um decreto assinado pelo ex-prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB) em 2019, tem se tornado comum ver as regras da época serem ignoradas pelas ruas da Capital. De acordo com o documento, as patinetes não podem ser pilotadas compartilhando espaço com os carros; também é proibido andar com acompanhante no veículo e estacionar a patinete de maneira que obstrua a passagem de pedestres nas calçadas.

“A princípio as patinetes elétricas não são ruins, pois ampliam as opções de transporte e favorecem quem não pode caminhar ou não sabe andar de bicicleta”, avalia o urbanista Julio Celso Borello, professor da UFRGS. No entanto, segundo ele, falta em Porto Alegre uma política de mobilidade urbana para fazer dar certo a iniciativa das patinetes. “É um vale-tudo com favorecimento do automóvel, não tem nenhuma iniciativa para diminuir o tráfego de veículos privados. Por outro lado, o transporte público falido, e isso é associado a uma vantagem liberal privatista”, diz. “O governo não estabelece políticas, não planeja, ele apenas gerencia interesses privados. É para ganhar dinheiro, não para resolver um problema de mobilidade. Com isso, o resultado é quase caótico. E fiscalizar, punir, é muito difícil depois que o caos está instalado”.

Foi por causa dessa “bagunça” que a Adventure, startup porto-alegrense que operava na Capital, encerrou o serviço no município. “Já tem duas marcas operando, e num modelo que nós não compactuamos”, afirma o diretor de operações Kenedy Galdino. “No começo, com o decreto de 2019, era partindo do princípio da organização da cidade, coisa que não existe mais. Está muito bagunçado, diversos acidentes já aconteceram. Eram equipamentos espalhados e desorganizados. Acaba causando mais acidentes, porque fica muita gente utilizando [as patinetes] sem ter um entendimento. A gente trabalha com estações em locais estratégicos que não atrapalham a locomoção nas calçadas, guia tátil ou rampas para cadeirantes”, explica.

Galdino também critica a permissibilidade da Prefeitura e a parca fiscalização, além da falta de incentivo para a startup local. “Estamos em mais de 20 cidades pelo Brasil e, aqui, nunca aumentamos o número de equipamentos disponíveis. Mas esperamos que as coisas se organizem e que mais adiante possamos voltar a operar em Porto Alegre”, conclui.

 

Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Só em 2024, o Hospital de Pronto Socorro (HPS) registrou 34 acidentes envolvendo patinetes elétricas. O número pode ser subestimado, já que o HPS não é o único local que atende esses casos. A Secretaria Municipal de Saúde (SMS) informou que, durante todo o ano de 2023, foram 10 acidentes encaminhados para o HPS – o que representa um aumento em 240% já nos primeiros quatro meses deste ano. Ao Sul21, a SMS contestou o número que a própria Secretaria havia informado à Matinal, de 63 acidentes em 2023. A confusão com os dados teria acontecido em uma planilha do sistema interno da SMS.

Para evitar acidentes, a regra de uso das patinetes é que elas não ultrapassem os 6 km/h em áreas de circulação de pedestres e 20 km/h em ciclovias. Os equipamentos da Jet limitam, por GPS, a velocidade e a área de tráfego. A empresa também promete multar quem não estacionar corretamente o veículo por mais de uma vez – para estacionar a patinete, o usuário precisa fotografar o veículo para o aplicativo identificar que ele está na base. Dez funcionários também se revezam pela cidade para ordenar os equipamentos nos respectivos pontos de estacionamento. A Prefeitura afirma que a operação está de acordo com as normas do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) e que o limite de velocidade na Orla do Guaíba é de 10 km/h.

 

Patinetes e pedestres compartilham calçada próxima ao Mercado Público. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

O uso e o tráfego das patinetes elétricas devem ser fiscalizados pelas próprias empresas e pelos agentes de trânsito da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC). As empresas podem identificar os usuários pelos números únicos de identificação das patinetes. Quando uma situação irregular é identificada, o usuário pode ser banido da plataforma, no caso da Whoosh, ou punido com uma cobrança de R$ 150, no caso da Jet.

A Prefeitura diz que a chegada de mais uma operação de patinetes elétricas faz parte de um “projeto de qualificação urbana de Porto Alegre”, a fim de complementar o sistema de transporte. Já a empresa recém-chegada à Capital aponta, como razões para investir na cidade, a grande área plana e os 86 km de malha cicloviária – além do potencial de mercado no segmento, visto que a Capital tem 1,3 milhão de habitantes.

Conforme o decreto municipal de 2019, uma das condições para que as empresas de patinetes elétricas prestem o serviço em Porto Alegre é que realizem programas direcionados a comunidades de baixa renda, concedendo descontos na tarifa de uso, valores diferentes ou isenções para determinado público. Na época, Marchezan salientou que, ao encaminhar o pedido de credenciamento, as empresas teriam de informar de que maneira iriam atender à população com dificuldade de alcance aos equipamentos por morarem em bairros mais afastados ou por questões financeiras.

As duas empresas credenciadas atualmente em Porto Alegre, a cazaquistanesa Jet e a russa Whoosh, operam praticamente nos mesmos bairros: Rio Branco, Cidade Baixa, Bom Fim, Centro Histórico, Menino Deus, Cristal, Floresta, Praia de Belas e, no caso da Whoosh, Moinhos de Vento e Floresta.

 

Capturas de tela dos aplicativos mostram áreas de circulação das patinetes de cada empresa

A Jet informou que escolheu a região para operar por ter maior fluxo de trânsito e pessoas, incluindo o Terminal Parobé, e já contar com a devida infraestrutura cicloviária. A empresa diz que, a médio prazo, pretende expandir a área de abrangência para bairros como Floresta, Moinhos de Vento, Petrópolis, Três Figueiras e São João.

“É pura e simples viabilidade comercial”, avalia Borello. “Eles colocam a patinete onde tem público e onde vai vender o produto. A Cidade Baixa, por exemplo, não é lugar de gente rica, mas tem muita gente se deslocando, tem demanda. O Moinhos, além de ter demanda, tem moradores com poder aquisitivo”, explica. “Não há uma estratégia de colocar em alguns lugares que precisa, para ajudar as pessoas como parte de uma política de mobilidade. É uma integração de modais proposta pelo negócio, não pela mobilidade, e que acaba se essas empresas forem embora”.

A SMMU alega que as patinetes, assim como as bicicletas compartilhadas, são equipamentos importantes para a micromobilidade e podem ser usados em distâncias curtas como complemento ao transporte coletivo para a chamada “última milha”. Trata-se da distância que a pessoa percorre, por exemplo, do terminal de ônibus até a residência. “Incentivamos a colocação das estações de bicicleta e as estações virtuais de patinetes próximo a terminais de ônibus”, informa a pasta.

A Jet diz que está “empenhada em tornar o seu serviço mais acessível à população”. Em nota, argumenta que faz isso viabilizando a recarga de saldos via Pix e oferecendo uma assinatura mensal de R$ 9,99 em que há gratuidade na taxa de ativação do veículo (no início de cada viagem), acrescido somente o valor do uso por minuto.

A taxa para ativação do veículo é de R$ 1,90, acrescentada da tarifa dinâmica de uso por minuto: dias de semana a R$ 0,59, à noite por R$ 0,79, e aos fins de semana, entre R$ 0,79 e R$ 0,89. Em dias úteis, das 6h às 10h, a tarifa é de R$ 0,39 por minuto.

As patinetes voltaram a Porto Alegre em outubro do ano passado, após um período sem nenhuma empresa operando na Capital. A Grow – fusão das startups Yellow e Grin – encerrou o serviço ainda em 2020. Em outros países, a discussão sobre patinetes é mais antiga. Elas foram proibidas em Paris, por exemplo, pela dificuldade em regular o setor.

Ainda em 2019, um estudo elaborado nos EUA mostrou que as patinetes não são a melhor solução para despoluir as cidades. Desde a fabricação, o envio e o transporte dos equipamentos (no caso dos que precisam ser retirados de circulação para a recarga), ocorre a emissão de CO2. A pesquisa conclui que o aumento da vida útil dos veículos, a redução da distância de recolha e distribuição e a utilização de estratégias de carregamento menos frequentes podem reduzir significativamente os impactos ambientais adversos.

 

Estacionamento de patinetes próximo ao Terminal Parobé, no Centro Histórico. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

“As patinetes não tiram os carros da rua. Quem utiliza não é o motorista”, afirma Borello. “As viagens são curtas, complementares, pequenas distâncias. É mais um veículo para as pessoas não se moverem de forma ativa, principalmente caminhando, o que tem impacto sobre a saúde coletiva. Nesse ponto tem um certo prejuízo, mas se fosse melhor pensado, essa alternativa para a última milha seria boa para pessoas com dificuldade motora”, reforça.

A Jet estima que a frota possa ser renovada de três a, no máximo, cinco anos. “Buscamos reutilizar os componentes dos veículos, por exemplo, na reposição dos materiais sobressalentes. Em caso de peças com defeitos, entregamos para empresas especializadas a fim do descarte ecologicamente adequado, e de acordo com as normas ambientais”, diz a nota. A empresa informou ainda que a equipe substitui apenas as baterias das patinetes “geralmente nos principais pontos de estacionamento”. A Whoosh opera da mesma forma, substituindo as baterias ao invés de recolher as patinetes para recarga.


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