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27 de novembro de 2023
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14:20

‘Na Capital gaúcha não se dorme sem ouvir ao fundo o barulho dos tambores do batuque’

Por
Duda Romagna
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Terreiro Ile Bara Ajelu Santo Antonio e Cabocla Jurema, no bairro Medianeira. Foto: Luiza Castro/Sul21
Terreiro Ile Bara Ajelu Santo Antonio e Cabocla Jurema, no bairro Medianeira. Foto: Luiza Castro/Sul21

No Censo de 2010*, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), quase 600 mil pessoas disseram seguir religiões de matriz africana no Brasil – 407 mil praticantes de umbanda, 167 mil do candomblé e 14 mil de outras religiões, entre elas o batuque. Dos 407.332 brasileiros que se declararam umbandistas, 140.315 estavam no RS, ou 34,45% do total. 

A população gaúcha, segundo dados de 2019 do Departamento de Economia e Estatística (DEE) da Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão (SPGG), é composta por 79% de pessoas brancas e 21% de negras, o segundo menor percentual de pessoas negras no Brasil. Apesar da predominância branca, o Rio Grande do Sul tem, proporcionalmente, a maior parcela de fiéis de religiões de matriz africana entre os estados brasileiros.

No estado, 1,48% da população declara ser do candomblé, umbanda e de outras religiões afro-brasileiras. As outras quatro Unidades Federativas no topo da lista são Rio de Janeiro (0,89%), São Paulo e Bahia (ambos com 0,34%) e o Distrito Federal (0,22%). O estado tem as 14 cidades com o maior número de pessoas autodeclaradas seguidoras de cultos de origem africana. Em Cidreira, no litoral norte, 5,9% da população se declara adepta, o que faz desta cidade do litoral gaúcho o município com maior proporção de seguidores de religiões afro-brasileiras do País.

“Na Capital gaúcha não se dorme sem ouvir ao fundo o barulho dos tambores do batuque, da umbanda ou da quimbanda”, afirma Baba Diba de Iyemonja, Babalorixá no Ilê Asé Iyemonjá Omi Olodô, sanitarista, ativista social e presidente do Conselho do Povo de Terreiro do Rio Grande do Sul.

 

Baba Diba é um dos líderes do ativismo das religiões de matriz africana no RS. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Números apresentados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2017, mostraram que Porto Alegre era a cidade com maior desigualdade entre negros e brancos no Brasil. O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) da população negra na Capital totalizava 0,705, o da população branca era de 0,833 – diferença de 18,2%, enquanto a média nacional era 14,42%.

Número de casas de religião africana por bairro em Porto Alegre. Fonte: Casas de religião de matriz africana em Porto Alegre/Tiago Bassani Rech (2012)

Territorialmente, Porto Alegre também é desigual. Se no passado regiões como o bairro Cidade Baixa tinham moradores majoritariamente negros, um processo de desterritorialização, assim chamado por ativistas, embranqueceu as áreas centrais. “Os terreiros estão em todos os bairros da cidade, com maior concentração nos bairros periféricos como Partenon, Bom Jesus, Restinga, Lomba do Pinheiro, Morro Santana, Mário Quintana, Medianeira, Vila Cruzeiro e por aí vai”, explica Baba Diba. 

Essa migração data dos anos 1960 e, hoje, se vive um movimento de reivindicação dos territórios negros na cidade. “Desde o início da cidade o povo negro foi trazido para trabalho escravo e, com eles, sua cultura e seu sagrado que incorporaram-se ao cotidiano e à linguagem. Esse povo teve sua mão de obra nas edificações, agricultura e trabalhos domésticos, influindo na gastronomia e na culinária também”, relata o Babalorixá. 

Ele conta, ainda, que nunca houve um mapeamento sério das casas de religião afro-brasileiras em Porto Alegre, mas que elas estão presentes em grande número. Em todo o Rio Grande do Sul, dados de 2010 apontam que há pelo menos 60 mil terreiros.

 

“Na Capital Gaúcha não se dorme sem ouvir ao fundo o barulho dos tambores do batuque, da umbanda ou da quimbanda”, afirma Baba Diba. Foto: Luiza Castro/Sul21

“A cultura de matriz africana, e dentro dela as religiosidades que são eixos fundantes para a cultura, são e estão na cultura de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul. Por óbvio não somos povos originários, fomos povos sequestrados da África. As casas de religião de matriz africana têm um problema territorial importante e que faz parte também do racismo fazer com que elas nunca estejam seguras, fixas e protegidas onde elas se estabelecem. É importante dizer que faz parte da tradição consagrar os espaços onde se trabalha a religiosidade. Uma vez consagrada na nossa tradição, é um crime nos retirar deles”, afirma a cientista social, mestra e doutoranda em Sociologia, Nina Fola, que também é parte do povo de terreiro. 

O Mercado Público é um dos poucos locais que resistiu ao processo e permanece até hoje como referência para as religiões. Na origem de Porto Alegre, ali viviam os escravos que trabalhavam no porto. No início do século XX, Osuanlele Okizi Erupê, o príncipe de Ajudá, no Golfo da Guiné, que no Brasil adotou o nome José Custódio Joaquim de Almeida e ficou conhecido como Príncipe Custódio, um famoso líder religioso da Capital na virada do século, instalou no local o Bará, orixá que representa o movimento, a mudança, a virilidade e a sexualidade.

 

O príncipe africano viveu na Capital nas primeiras décadas do século 20, transitou na alta sociedade e consolidou as religiões africanas no RS. Foto: Autor desconhecido

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Porém, o cenário de apagamento pode mudar. Um Projeto de Lei aprovado no final de setembro pela Câmara de Vereadores da Capital criou o Censo de Inclusão das Religiões de Matriz Africana no município, que tem entre seus objetivos: identificar a quantidade e o perfil socioeconômico das pessoas que frequentam e praticam as religiões de matriz africana, criar o mapeamento das casas de religião de matriz africana e praticar políticas públicas que sejam direcionadas a religiões de qualquer credo. 

Pela proposta, de autoria do vereador Cláudio Janta (Solidariedade), serão realizados censos para a obtenção de dados e para a quantificação, qualificação e localização das pessoas que frequentam e praticam as religiões. O primeiro censo deve acontecer em 2024, e os seguintes deverão ser realizados a cada cinco anos. “Com este projeto, buscamos ter as informações necessárias para aplicar as políticas públicas e direcioná-las aos povos das religiões de matrizes africanas, tornando mais igualitários os recursos municipais destinados às religiões”, explicou o vereador. 

Nina nasceu e cresceu nas religiões de matriz africana e é iniciada na casa de Baba Diba. Foto: Arquivo pessoal

Nina Fola afirma ainda a necessidade de se debater o racismo religioso como parte intrínseca do preconceito sofrido por pessoas negras no País. “O debate sobre os terreiros, o povo de matriz africana, para mim, é um caminho para fazer o debate sobre o racismo no Brasil. A gente não entende que o Brasil tem intolerância religiosa, a gente entende que o Brasil é racista antinegro e, por conta de nós carregarmos o mais denso da cultura africana no Brasil, a gente sofre o racismo religioso duramente. Geralmente com a constante vulnerabilização dos nossos territórios, com a constante diminuição dos nossos valores civilizatórios, com a constante ridicularização das nossas formas de experimentar e viver o mundo”, relata. “Isso foi secularmente sendo trabalhado e agora é renovado pelas lógicas neoliberais e neopentecostais que têm se elaborado e se constituído na política, na mídia e na comunicação, regida pelos pastores e pastoras”, completa.

*Os números sobre religiões do censo mais recente, de 2022, ainda não estão disponíveis.


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