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23 de maio de 2023
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15:06

Em ano eleitoral, formação e autonomia ainda são desafios no Conselho Tutelar

Por
Fernanda Nascimento
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A formação dos conselheiros é ponto central na discussão sobre a qualificação da instituição. Foto: Joel Vargas/PMPA
A formação dos conselheiros é ponto central na discussão sobre a qualificação da instituição. Foto: Joel Vargas/PMPA

Em outubro, cerca de 30 mil conselheiros serão eleitos em todo o país para um mandato de quatro anos. Essenciais na garantia dos direitos de crianças e adolescentes, os membros dos Conselhos Tutelares (CT) têm o desafio de atuar em casos de violências cometidas pelas famílias, comunidade e Estado. Com realidades diferentes em cada localidade, os conselhos ainda enfrentam dificuldades para se tornar um órgão, de fato, independente e autônomo, que não reproduza novas violências.

A formação dos conselheiros é ponto central na discussão sobre a qualificação da instituição. No ECA, os requisitos mínimos exigidos são reconhecida idoneidade moral, idade superior à 21 anos e residência no município. Exigências complementares ficam a cargo de cada município. Para o professor Humberto Miranda, coordenador da Escola de Conselhos de Pernambuco, e um dos responsáveis pela formação de conselheiros em todo Brasil, o país precisa de uma política nacional de formação. “Muitos municípios fazem o processo de eleição sem uma seleção que leve em conta a formação, a trajetória profissional no campo dos direitos da criança e do adolescente e aí você acaba tendo um conselheiro sem nenhuma relação com o campo”, afirma. 

Outro problema é a garantia da autonomia, especialmente na relação com o poder público. Para Jeferson Leon, presidente da Associação dos Conselheiros e Ex-Conselheiros Tutelares do Rio Grande do Sul (ACONTURS-RS), os conselhos precisam ter órgãos fiscalizadores desvinculados dos municípios. “Existe uma dificuldade de representar contra o Estado porque o conselheiro fica refém do município. E em alguns casos, os conselheiros deixam de cumprir o seu papel porque as corregedorias [dos conselhos] são compostas por pessoas indicadas da prefeitura”, defende. 

A capacidade de enfrentar o Estado e cobrar soluções relacionadas à ausência de políticas públicas é uma necessidade. Para Luciano Botelho, conselheiro tutelar de Porto Alegre, ter uma visão macro dos problemas é fundamental. “O conselheiro tutelar precisa entender que não é só a família negligenciando. Muitas vezes, as violações ocorrem pelo Estado. E isso precisa ser entendido também pelo Judiciário, que muitas vezes atua de forma diferenciada, sendo duro apenas com as famílias”.

Nesta reportagem especial, o Sul21 traça um panorama da instituição no Brasil e as dificuldades de proteção da infância e adolescência em um país marcado pelas desigualdades.  

Em todo o Brasil, existem 5.956 Conselhos Tutelares para atender 5.568 municípios. A discrepância entre os números acontece porque o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê que cada município e o Distrito Federal devem ter, no mínimo, um Conselho Tutelar. Em função das cidades com grande número populacional, uma resolução de 2014 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) recomenda que os municípios criem e mantenham, preferencialmente, a proporção mínima de um Conselho Tutelar a cada 100 mil habitantes. A decisão sobre a quantidade necessária de instituições é de cada cidade. Em Porto Alegre, por exemplo, os 1,4 milhão de habitantes são atendidos por 10 conselhos tutelares, com atuação dividida por microrregiões da cidade. O ECA também prevê que cada conselho deve ter cinco membros titulares e cinco suplentes. 

Apesar da atuação dos conselhos tutelares ter sido prevista na criação do ECA, em 1990, o processo de escolha unificado começou somente em 2015. Antes disso, cada município definia o formato e a data de realização da escolha. Em alguns locais, os conselheiros eram nomeados como cargos comissionados e eram diretamente ligados aos políticos que comandavam as cidades. Em outras localidades, os conselheiros eram definidos por meio de voto indireto de entidades ligadas à defesa dos direitos da infância e adolescência. 

Com a eleição unificada, também foram estabelecidas normativas que garantiram direitos sociais aos conselheiros – como a cobertura previdenciária, direito a férias, licenças e gratificação natalina -, além da previsão orçamentária de remuneração, que não era obrigatória. Assim como nas eleições majoritárias e proporcionais, os candidatos estão proibidos de fazerem doações ou oferecerem vantagens para obtenção de votos. A lei deixa a cargo do município a escolha por formas complementares ao voto direto. 

“Antes das eleições unificadas havia uma dificuldade, inclusive, de realizar formações. Você fazia uma formação e meses depois o conselheiro estava saindo. Essa unificação melhorou muito, mas é preciso também que esse candidato tenha uma seleção prévia, uma análise de currículo e uma prova. Eles são agentes públicos que têm uma responsabilidade enorme junto à sociedade”, afirma Miranda.

Em Porto Alegre, além dos requisitos mínimos previstos pelo ECA, é preciso ter ensino médio completo, atuação em entidades ligadas aos direitos da infância e adolescência e comprovação de participação em  cursos de formação. Além disso, os postulantes ao cargo também realizam uma prova objetiva. 

O conselheiro Botelho afirma que a formação ainda é uma fragilidade, mesmo sendo um requisito mínimo para participar do processo eleitoral. “A nossa lei tem a garantia de formação continuada para quem já é conselheiro, mas praticamente não tivemos formação. E, agora, estamos tendo formações às pressas e às vésperas da eleição. Como o edital prevê que os candidatos tenham formação na área  parece que esses cursos servem mais para legitimar algumas candidaturas do que para capacitar as pessoas”, critica Botelho. 

Outras cidades como Caxias do Sul também realizam avaliação psicológica ou psicossocial do candidato antes do voto direto. Apesar da tentativa de qualificar a escolha, nas eleições de 2015 e 2019, candidaturas em vários municípios foram impugnadas por abuso de poder econômico, com compra de votos e propaganda irregular. Em Bagé, por exemplo, quatro dos cinco eleitos no último pleito foram impugnados. 

Para Miranda, a fiscalização e qualificação dos processos de escolha são fundamentais. “O conselheiro tutelar não deve ser escolhido por ser uma liderança comunitária, uma liderança partidária ou uma liderança religiosa. Ele pode ser uma liderança comunitária, partidária ou religiosa, mas desde que atue com crianças e adolescentes. Essa não pode ser uma escolha aleatória. E o candidato não pode chegar ao processo por outro fim, por uma condição de emprego ou por ser ligado a um partido, porque isso é um desserviço para a população”.

 

Em Porto Alegre, por exemplo, os 1,4 milhão de habitantes são atendidos por 10 conselhos tutelares. Foto: Câmara Municipal de Novo Hamburgo

Os conselheiros têm entre suas atribuições atender crianças e adolescentes, intermediando a resolução de problemas oriundos tanto da família e comunidade quanto do Estado. Em uma sociedade em que a omissão e negligência do poder público com a infância são históricas, essa não é uma tarefa simples. 

Em fevereiro, a reportagem “150 dias de desespero: a luta de uma mãe contra o Estado para recuperar a filha”, publicada pelo Sul21, contou a saga de uma mãe para recuperar a guarda da filha em um processo marcado por preconceitos e estigmas relacionados ao ideal de maternidade e modelo de família. Entre os órgãos cuja atuação foi criticada pelos pesquisadores ouvidos na reportagem estava o Conselho Tutelar. 

Já o texto “Omissão e preconceito: a vulnerabilidade social como motivação para o acolhimento” demonstrou como a pobreza tem motivado decisões de acolhimento institucional – contrariando o ECA, que determina que a separação familiar seja uma medida provisória e excepcional. Novamente, o olhar do Conselho Tutelar foi citado como fundamental para não criminalizar a pobreza.  

Leon defende que a formação dos conselheiros é fundamental para a compreensão das atribuições do Estado e das famílias e, consequentemente, das responsabilidades de cada um na preservação dos direitos da infância e adolescência. “Se tu for procurar os números, a família vai aparecer como a maior violadora de direitos da infância. Mas, muitas vezes, a família é violadora por omissão do Estado. Se uma criança está sozinha em casa, isso não significa que a mãe é omissa, mas que ela precisa trabalhar por situações como: o pai que não paga pensão ou o Estado que não garante a creche. Essa mulher vai fazer o quê?”, questiona. 

Inês Barcelos, conselheira tutelar de Porto Alegre e assistente social, enfatiza que baliza seu trabalho na compreensão de que acolhimentos institucionais são a última medida a ser adotada. “Retirar uma criança e adolescente do seio familiar é o que de mais doloroso pode acontecer. E isso só pode acontecer em caso de necessidade extrema, em caso de esgotamento total das possibilidades de atendimento da rede. Em situação de pobreza, você pode reverter com assistência. Casos de saúde podem ter acompanhamento. A minha interpretação é que o conselheiro precisa ter um olhar diferenciado para essas questões”, disse.

Botelho endossa essa perspectiva. “É importante o conselheiro ter o entendimento de que pobreza não é caso para acolhimento. As situações de vulnerabilidade social aumentaram muito por falta de políticas públicas”, afirma. O conselheiro relata uma situação na qual acredita que a ausência do Estado foi responsável pela separação de uma mãe e três filhos. O CT foi acionado porque a mãe havia saído de casa e deixado os filhos com familiares, durante três dias. As crianças foram acolhidas institucionalmente em caráter emergencial. Mas o que parecia ser um caso de abandono acabou se revelando um problema de saúde mental. 

“Ela tem um problema de saúde mental, entrou em crise e, de fato, sumiu por três dias. Mas ela vinha procurando atendimento médico e não conseguia. Nós encaminhamos ela para a rede de saúde, que não conseguiu atender. As crianças foram separadas e uma delas foi para uma família acolhedora, que recebia [um salário mínimo] para cuidar dessa criança. Se o Estado investisse esse dinheiro na saúde mental da genitora, seria suficiente para ela conseguir o tratamento e não precisaria de acolhimento, que é também uma violação”, relata. De acordo com Botelho, a situação se arrasta há mais de dois anos e, agora, as crianças estão em uma instituição de acolhimento, recebendo visitas regulares da mãe. 

Miranda acredita que apenas uma formação baseada na “ética e na autonomia” pode ser capaz de fazer com que o olhar dos conselheiros não seja perpassado por preconceitos: “para que ele também não cometa uma nova violação de direitos ao negligenciar o atendimento”. Para o professor, ainda que a realidade dos Estados e municípios seja distinta, é necessário que os conselhos tenham conhecimento pleno das legislações que embasam suas atividades. “O conselheiro tutelar precisa ter um processo formativo comprometido com o ECA e com a legalidade para que não reproduza em sua atuação lógicas conservadoras, ideários de moral e bons costumes como referência”, disse Miranda. 

Acompanhando diferentes realidades pelo Estado, Leon afirma que as demandas dos conselheiros das cidades do interior e da Capital e região metropolitana, têm como grande diferença a maneira de enfrentamento. Ainda que o número de violações seja proporcional, a agilidade nas respostas é um diferencial. “Nas pequenas cidades se consegue ter uma resolução mais rápida, porque a rede se conhece”, afirma. Mesmo assim, um dos grandes desafios, é compreender qual o papel do conselheiro: “o conselheiro não faz parte da segurança pública, ele não vai abordar adolescentes na rua, ele tem outro papel, bem mais amplo”, disse. 

Além do atendimento direto de demandas de violência, os conselheiros tutelares também têm como responsabilidade assessorar o Executivo na elaboração de planos e políticas de atendimento aos direitos da criança e do adolescente. Miranda lamenta que essa atribuição também seja pouco efetivada pelos conselheiros. “O conselheiro precisa participar da elaboração de política de educação, de saúde, de assistência social, de forma embasada, levando os dados da realidade que ele conhece. Mas isso, infelizmente, não vem acontecendo. Essa cobrança técnica e propositiva ainda é muito rara”.


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