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26 de maio de 2023
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16:31

Cimi: Marco Temporal coloca em risco todos os territórios indígenas no Sul, Sudeste e Nordeste

Por
Luís Gomes
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Indígenas protestam contra tese do Marco Temporal |  Foto: Tiago Miotto/Cimi
Indígenas protestam contra tese do Marco Temporal | Foto: Tiago Miotto/Cimi

Após aprovar o regime de urgência para a tramitação do projeto de lei que estabelece a tese do Marco Temporal (PL 490/07) para territórios indígenas, a Câmara dos Deputados deverá votar a matéria em plenário na próxima semana. Caso vire lei, irá restringir a demarcação de terras indígenas àquelas que eram ocupadas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Em conversa com o Sul21, o coordenador do Conselho Indigenista Missionário na região Sul (Cimi Sul), Roberto Liebgott, explica que a medida iria automaticamente suspender a tramitação de todos os processos de demarcação em andamento e permitir ainda a revisão das terras já demarcadas após a Constituição, o que afetaria, segundo ele, quase a totalidade dos territórios demarcados ou reivindicados nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste.

Pelo texto do substitutivo do deputado Arthur Oliveira Maia (União-BA), as novas demarcações ficariam restritas apenas a terras que eram habitadas em caráter permanente por indígenas antes da promulgação da Constituição e, ao mesmo tempo, são usadas para atividades produtivas e necessárias à preservação dos recursos ambientais e à reprodução física e cultural. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), afirmou que irá colocar o PL do Marco Temporal em votação já na próxima semana.

Liebgott pontua que, atualmente, tramitam cerca de 850 processos de demarcação de territórios que seriam afetados pela eventual adoção do Marco Temporal. “Se for implementado o Marco Temporal como uma regra jurídica, ele vai fazer com que, primeiro, todas as demarcações de terra que estão em andamento sejam definitivamente paralisadas para um reestudo, no sentido de identificar se as comunidades que reivindicam essas demarcações estavam ou não em posse delas em 1988. Se não estivessem nelas, que pelo menos estivessem lutando fisicamente ou juridicamente por elas”, diz. “À exceção das reservas indígenas, todas as demais terras serão diretamente impactadas pelo Marco Temporal, tanto aquelas que estão em demarcação, como aquelas que estão sendo reivindicadas ou retomadas. Vai afetar dramaticamente todos os territórios indígenas nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste”, complementa.

O coordenador do Cimi Sul explica que também há a possibilidade de que todas as terras demarcadas pós 1988, desde que não estejam em reservas, tenham os processos reabertos para revisão. “Vai se propor o reestudo delas para comprovar a ocupação ou não indígena em 1988. Corre-se o risco de que, de 85% a 95% das terras sejam impactadas, passem por processos de revisão”, avalia.

Por outro lado, ele destaca que a adoção do Marco Temporal não significaria a perda imediata do direito à terra, uma vez que acabaria se iniciando um processo de análise caso a caso dos territórios. As possibilidades incluiriam a compra da terra pelo governo ou a criação de áreas de reserva. Contudo, mesmo nesses casos em que os indígenas permaneceriam em terras hoje já demarcadas, garantias constitucionais perderiam efeito.

A Constituição determina que territórios demarcadas devem garantir aos povos indígenas áreas suficientes para o usufruto por meio de ocupação tradicional, possibilitando a autossuficiência e espaço adequado para manutenção do meio ambiente e desenvolvimento de atividades culturais e religiosas.

Já as áreas de reservas, apesar de terem em comum o fato de serem de propriedade da União e não poderem ser vendidas, não trazem garantias constitucionais para o usufruto da terra. Liebgott explica que as reservas foram criadas pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), que existiu entre 1910 e 1967, com objetivo de determinar os limites de onde os indígenas poderiam estabelecer os seus territórios. Uma ação que teve o objetivo de remover os indígenas de áreas em disputas e liberá-las para a colonização.

“O território indígena demarcado não se restringe a um espaço delimitado que foi adquirido pelo governo para assentar famílias indígenas, que é o caso das reservas. Por isso que se tem terra com 100 mil hectares, de 1 milhão de hectares no Brasil, porque são terras que, através dos estudos, se comprova que é o território que vai dar as condições adequadas da sobrevivência física e cultural do povo para sempre. Ou seja, tendo um olhar para frente. O direito indígena, além de ser originário, inalienável e indisponível, ele é imprescritível. Ou seja, a terra é demarcada na perspectiva de que ela seja útil e necessária para aquele povo para sempre. A reserva não. A reserva é o seguinte, eu tenho um grupo indígena que está em situação de vulnerabilidade, eu preciso tirar eles dessa situação, então o Estado vai e negocia um espaço de terra para assentar os indígenas, transforma em reserva e delimita para usufruto exclusivo dos indígenas. A demarcação como terra originária não é assim, porque a Constituição diz que, se ela é uma terra originária, ela é anterior ao direito dos que vieram para cá e, portanto, é um bem para usufruto exclusivo dos indígenas e não estabelece um limite de tempo para essa ocupação”, diz.

A tramitação em regime de urgência do PL do Marco Temporal é uma reação do Congresso ao anúncio feito pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de que o julgamento de uma ação judicial que trata do tema será retomado ainda no primeiro semestre. Contudo, caso o PL seja aprovado antes do julgamento no STF, o Supremo ainda poderá ser provocado a analisar se o texto da lei é constitucional ou não.

Também nesta semana, a comissão mista sobre a Medida Provisória 1154/23 aprovou o texto que altera a organização dos ministérios definida pelo presidente Lula. Pelo texto, que agora vai à votação no plenário, o Ministério da Justiça e Segurança Pública voltará a responder pelo reconhecimento e pela demarcação de terras indígenas. A gestão Lula havia alocado essas atribuições no Ministério dos Povos Indígenas, criado em janeiro e ao qual caberá sugerir novas áreas destinadas a povos tradicionais.

O procedimento de demarcação de terras é regulamentado pelo decreto 1.775, de 1996, e pela Portaria 14 da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que estabelecem as condições para estes processos.

O decreto delega à Funai a realização dos estudos circunstanciados de identificação e delimitação da terra. Para analisar cada pedido de demarcação de terras, a Funai cria uma grupo de trabalho com especialistas que vão analisar e fazer um estudo de campo sobre a área a reivindicada.

Comprovada pela Funai o mérito da reivindicação indígena, é publicado um relatório no Diário Oficial da União sobre a área. Na sequência, transcorre um prazo de 90 dias para contestações, o que permite a apresentação de questionamentos por pessoas ou entidades contrárias à demarcação.

Caso nenhuma contestação seja aceita, a Funai encaminha o estudo ao ministério responsável, que passa então a revisar o trabalho da Funai. Em estando de acordo, é publicada a portaria declaratória que demarca a terra e estabelece os seus limites.

Com a criação do Ministério dos Povos Indígenas, a pasta recebeu a atribuição de fazer a revisão dos estudos da Funai. “É a parte mais importante, pois é o poder público dizendo que essa terra é indígena e publicando uma portaria que declara isso”, diz Liebgott. “Agora, se está retirando do Ministério dos Povos Indígenas essa atribuição, que é fundamental para a existência do ministério. Sem essa atribuição, você esvazia o ministério, deixa ele sem atribuição efetiva a não ser pensar e planejar, porque a execução da política indigenista passa pela Funai, pela Sesai [Secretaria de Saúde Indígena] e outros órgãos de governo assistenciais”, complementa, acrescentando ainda que a Sesai, por exemplo, é vinculada ao Ministério da Saúde.


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