Geral
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3 de maio de 2022
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15:57

‘Continuamos a cometer os mesmos erros do incêndio da boate Kiss’

Por
Luís Gomes
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Professor João Paulo Correia Rodrigues foi um dos principais palestrantes em evento promovido pelo Senge-RS sobre segurança contra incêndios | Foto: Divulgação
Professor João Paulo Correia Rodrigues foi um dos principais palestrantes em evento promovido pelo Senge-RS sobre segurança contra incêndios | Foto: Divulgação

Tramita na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul um projeto de lei que, se aprovado, permitirá que técnicos industriais realizem projetos técnicos de Plano de Prevenção Contra Incêndios (PPCI). A tramitação do projeto, que pode ser votado nesta terça-feira (3), motivou forte reação contrária das entidades representativas das classes de engenheiros e arquitetos no Estado, que têm se mobilizado pela sua retirada da pauta, alegando que o projeto representa uma precarização da Lei Kiss e enfraquecerá a segurança contra incêndios no Rio Grande do Sul.

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O tema foi debatido na semana passada durante o 2º Encontro Riograndense de Segurança Contra Incêndio, promovido pelo Sindicato dos Engenheiros (Senge-RS). Um dos principais palestrantes do evento, João Paulo Correia Rodrigues, professor da Universidade de Coimbra (Portugal) e professor convidado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), conversou com o Sul21 sobre a situação geral da segurança contra incêndios no Rio Grande do Sul e sobre o que os governos aprenderam ou deixaram de aprender sobre o tema com a tragédia da boate Kiss, em janeiro de 2013, que deixou 242 pessoas mortas e 636 feridos.

Sul21 – Como o senhor vê o cenário hoje da prevenção de incêndios já passados quase 10 ano da tragédia da Kiss?

João Paulo Correia Rodrigues: O cenário que a gente tem hoje é que os sinistros continuam a ocorrer após o incêndio na boate Kiss. Em termos de regulamentação estadual, eu não posso dizer que ela seja má. Infelizmente, tem alguns estados no Brasil onde ainda hoje alguns projetistas vão para fazer um projeto e dizem a ele: ‘olha, a nossa regulamentação é deficiente, use a regulamentação de São Paulo’. Isto não faz sentido, não é? Portanto, as autoridades em vez de melhorarem a regulamentação, mandam usar a regulamentação de São Paulo, que é uma boa regulamentação, mas me parece um contrassenso.

Agora o principal problema que eu acho na segurança contra incêndio não é que os projetos estejam maus ou que a regulamentação seja má. Eu acho que tem a ver com a organização e gestão da segurança. Tem a ver com, durante a vida de um edifício, como é que é feita a gestão da segurança contra incêndios, em termos de formação das imobiliárias, em termos de formação dos brigadistas, em termos de manutenção dos equipamentos de segurança contra incêndios, mantendo-os operacionais, em termos, por exemplo, da realização de simulados. Os simulados não são feitos ou raramente são feitos e eles são importantes em termos de segurança contra incêndios. Portanto, são todos aspectos que falham e que são muito importantes na segurança contra incêndios, porque não me interessa que um edifício esteja muito bem projetado, tenha todos os meios implementados de última geração, se depois eles não funcionarem, ou se não estiverem mantidos de forma a que funcionem de maneira perfeita, ou as pessoas ou os usuários, que no fundo são os primeiros a terem contato com o incêndio e a combaterem o incêndio, não souberem usar esses meios. Portanto, eu acho que o que falha é gestão de segurança.

Você pergunta: como é que isto poderia ser melhorado? Eu acho que isto tem que ser melhorado através de fiscalização. A fiscalização deve ser feita pelas autoridades, neste caso, pelos bombeiros. Aí você pode dizer que os bombeiros não têm pessoal suficiente para fiscalizar todos os edifícios. Aqui em Porto Alegre, a situação pode não ser tão dramática, mas São Paulo não tem tanto pessoal para que os bombeiros consigam vistoriar e fiscalizar aqueles edifícios todos. Inclusive, eu conheço alguns bombeiros do estado de São Paulo que dizem que chegam a fazer, cada um deles, de vinte a trinta vistorias por dia. É verdadeiramente uma loucura. Isso poderia melhorar como? Na forma como as medidas de autoproteção e as formações que são dadas aos usuários e aos brigadistas, a manutenção dos equipamentos, tudo isto ficasse em registros de segurança e os registros de segurança pudessem ser acessados remotamente pelos bombeiros e pelas autoridades. Eu acho que isso obviamente não substituiria totalmente uma inspeção presencial, mas melhoraria muito, porque obrigaria as pessoas a terem tudo em dia para que a segurança contra incêndios não falhe na hora que ela for necessária.

Sul21: Professor, a gente teve uma comoção aqui no Brasil depois da tragédia da Kiss, tivemos novas legislações, tivemos reforço da fiscalização, mas parece que esse momento já passou. Tu achas que já esquecemos um pouco das lições daquele caso e, quanto mais passa o tempo, mais o poder público passa a se despreocupar com a questão da segurança contra incêndios?

João Paulo Correia Rodrigues: O incêndio da boate Kiss trouxe coisas positivas, já alterou muita coisa. Trouxe a lei estadual no Rio Grande do Sul, além da criação da Lei Kiss federal, que não está sendo implementada integralmente. O incêndio da boate Kiss foi um incêndio dramático, que comoveu as pessoas, que levou a um conjunto de medidas, nomeadamente aqui na criação de regulamentação e legislação, mas isto está se desfazendo, por assim dizer. Após o incêndio da Kiss, houve outros incêndios, não é? Nomeadamente o do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em que não morreram pessoas, mas perdeu-se um património incalculável em escala mundial. Por exemplo, um incêndio grande em um hospital no Rio de Janeiro, o incêndio da Secretaria de Segurança Pública aqui de Porto Alegre. Portanto, isto nos leva a crer que parece que o incêndio da boate Kiss não nos ensinou tudo, continuamos a cometer os mesmos erros. Eu acho que os responsáveis têm que ser responsabilizados, como foi no caso da boate Kiss, mas antes dele já havia ocorrido um incêndio em Belo Horizonte, o incêndio do Canecão Mineiro [em 24 de novembro de 2001, deixando sete mortos e 197 feridos], que é absolutamente igual ao da boate Kiss. E, por acaso, o da boate Kiss foi julgado mais rapidamente. Por acaso, há pouco mais de uma semana o processo [do incêndio mineiro] teve andamento. Também morreram pessoas. Portanto, tínhamos que ter apreendido com o incêndio no Canecão Mineiro para que não tivesse ocorrido o incêndio da boate Kiss, mas não aprendemos. Mas mesmo depois da Kiss parece que as coisas continuam a ocorrer. E, volto a dizer, o que falha é a gestão da segurança, é a formação dos brigadistas, é a verificação das medidas de segurança, se os equipamentos estão em bom estado, se as pessoas sabem o que devem fazer em situação de pânico. No caso da boate Kiss, há relatos de que as pessoas que estavam no palco, na hora que começou o incêndio, se deram conta do incêndio, mas o resto das pessoas perceberam só mais tarde. Isto é uma falha grave em termos de gestão de segurança. Por exemplo, os brigadistas não deixaram as pessoas saírem, isso é uma falha grave. Este tipo de coisas é que falham e, ao meu ver, o que falha é a gestão da segurança.

Sul21 – Professor, toda vez que um projeto chega à Assembleia Legislativa para alterar a Lei Kiss, ele vem com a defesa de que a lei burocratizou muito e de que é precido desburocratizar para promover o desenvolvimento econômico do Estado. Como o senhor vê essa discussão da desburocratização? São questões contraditórias ou daria para desburocratizar sem prejudicar a segurança?

João Paulo Correia Rodrigues: Eu não sou político, eu sou técnico. E os políticos às vezes têm interpretação destas leis que vão para um lado até contra aspectos da técnica. Eu não vou comentar esse caso concreto, vou comentar no geral. Agora, eu como técnico interpreto que uma lei, para além do aspecto rígido e regulamentar, é imprescindível o aspecto benéfico. O que isso quer dizer? Nós temos que interpretar qual é o espírito da lei e não é preciso que ela esteja aprovada ou que ela esteja regulamentada para que ela pudesse ser implementada.

A lei Kiss federal diz que os cursos de Engenharia e Arquitetura devem ter conteúdos, não diz disciplinas, e eu acho que deveria ser mais clara e dizer disciplinas, mas o fato é que as as universidades, neste momento, arrastam-se desde que a lei foi criada. Diziam que a lei ainda não estava regulamentada e, como ela não estava regulamentada, diziam vamos ver quando vamos introduzir esses conteúdos e criar essas disciplinas. Quando, eu volto a dizer, a segurança contra incêndio é um problema de educação das pessoas e a educação dá-se aos jovens nas universidades. Se não der aos jovens nas universidades, mais tarde é muito difícil ensinar. Portanto, as universidades têm papel muito importante nisso e já tinham que ter todas as universidades federais, estaduais e até as privadas pelo Brasil instituído a segurança contra incêndios. Tivemos várias discussões sobre termos uma cadeira de segurança contra incêndio na grade curricular, mas sempre volta a mesma pergunta: ‘qual disciplina vai sair?’ ‘Ah, mas esta aqui é muito importante, eu fiz doutorado nisso e, portanto, não pode sair’. E andamos nessa discussão. Eu volto a dizer, a segurança contra incêndios é um problema de educação e educação dá-se aos jovens nas universidades.

O Brasil é um mau exemplo internacional na segurança contra incêndios, os números mostram que o país é um dos piores países do mundo na questão. Nesta fase, em que a área está de certa forma conturbada, eu acho que esta disciplina tem que ser obrigatória nas universidades para dar a formação necessária. Mais tarde, quando a sociedade já estiver num nível bastante grande de segurança, ela já não precisa de ser obrigatória. Esse é um exemplo. As universidades têm, de certa forma, negligenciado e é rara a universidade que tem conteúdos nas disciplinas da graduação em relação à segurança contra incêndios. Falta todo esse o caminho.


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