Cultura
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27 de março de 2022
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09:02

Jornal Boca de Rua vira história de cinema no filme ‘De Olhos Abertos’

Por
Luciano Velleda
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Produção independente, filme aborda questões como  injustiças, violência e preconceito nas ruas de Porto Alegre. Foto: Paulo Aguas/Divulgação
Produção independente, filme aborda questões como injustiças, violência e preconceito nas ruas de Porto Alegre. Foto: Paulo Aguas/Divulgação

Quem mora em Porto Alegre, em algum momento já foi abordado por uma pessoa vendendo exemplares do jornal Boca de Rua. O jornal circula na Capital há 21 anos, resultado de um projeto único: da elaboração da pauta, passando pelas reportagens, redação até as fases finais da publicação, tudo é feito por pessoas em situação de rua.

Como costuma dizer a equipe do “Boca”, é um jornal que escuta o povo da rua e outros movimentos. “As pessoas também nos escutam quando compram nosso jornal, a universidade nos escuta quando nos chama para falar do nosso trabalho. O outro lado da cidade nos vê porque nos escuta e nos lê. Ver, falar e escutar. É assim que a comunicação é feita”, explica o editorial no site do veículo.

Depois de duas décadas ouvindo e falando com os porto-alegrenses, a história do Boca de Rua agora ganha as telas do cinema no longa-metragem “De Olhos Abertos”, de Charlotte Dafol. O filme apresenta entrevistas de integrantes do jornal e aborda questões como injustiças, violência, drogas, saúde pública e preconceito nas ruas de Porto Alegre.

“De Olhos Abertos” entra em cartaz no próximo dia 7 de abril, na Cinemateca Paulo Amorim, na Casa de Cultura Mário Quintana. Um dia antes, haverá exibição na Sala Redenção da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e, logo depois, no dia 8 de abril, sessão-debate no SESC de Canoas.

O longa-metragem ganhou o prêmio de Melhor Documentário no Festival Inffinito de Cinema Brasileiro, realizado nos Estados Unidos, e prêmio de Júri Popular no XII Festival de Cinema da Fronteira – Mostra de Longas, em Bagé.

Nessa entrevista ao Sul21, a cineasta Charlotte Dafol fala sobre a experiência de realizar o filme sobre uma história tão particular, além dos desafios de distribuir e exibir uma obra politicamente posicionada. Uma história que ela conhece bem por já ter atuado como voluntária no Boca de Rua. Nascida em Paris em 1987 e fixada no Brasil desde 2013, Charlotte dirigiu na França sete curtas-metragens de ficção entre 2009 e 2012, junto com estudantes de cinema. “De olhos abertos” é o seu primeiro documentário longa-metragem.

“A distribuição é muito difícil, mesmo com esse filme que circulou bastante em festivais, foi premiado, teve um retorno bom do público e da crítica, mas mesmo assim a gente não vai estar no Netflix, nem no cinema do shopping, na Globo, em nada disso”, diz a cineasta.

As dificuldades, ainda que cientes, não parecem abalar a cineasta. Tal como o jornal impresso, o filme vai encontrando seus caminhos. “É importante dimensionar que o Boca tem uma coisa muito forte que é o vínculo de afeto entre todos os participantes, também os voluntários do jornal. O filme também se baseia muito nisso. Uma amizade de muitos anos que eu já tinha com a maioria, uma relação de confiança, não era uma pessoa de fora, tinha essa relação de intimidade com eles”, destaca Charlotte.

Sul21: Como surgiu a ideia do filme?

Charlotte Dafol: O envolvimento com o projeto do Boca começou bem antes do filme. Eu conheci o Boca em 2008, comecei a participar como voluntária pra ajudar na coordenação, e foi durante as reuniões que o próprio pessoal do Boca veio com essa ideia de fazer um filme. Acho que em 2014, em 2015, começou-se a falar mais sério sobre isso. Então, passei alguns anos tentando financiamento, montei um projeto, mas não deu. No final de 2018, pensei: ‘Não vou deixar isso sempre pra depois, vamos fazer com o que tiver’. Fiz uma vaquinha online e daí começou.

Sul21: Tu és francesa, como começou o envolvimento com o Boca de Rua em 2008?

Charlotte Dafol: Nasci e cresci na França, e com 20 anos vim fazer um intercâmbio. Era um trabalho social. Como já entrei um pouco nesse circuito, ouvi falar de vários intercâmbios e projetos. Fora o meu compromisso no intercâmbio, comecei a participar do Boca também.

Sul21: Uma característica marcante do projeto sempre foi o caráter “mão na massa” dos participantes. Como foi fazer o filme com eles, teve palpite de roteiro?

Charlotte Dafol: Sim, é uma característica bem forte mesmo. No caso do jornal, são eles que fazem tudo, o conteúdo de cada matéria, os títulos, tudo. O filme foi inspirado nessa metodologia, mas foi um pouco diferente, porque o filme tem a intervenção de mais gente, principalmente na pós-produção. O roteiro foi meu, a edição, as trilhas, tomei a maioria das escolhas. Mas como já tinha essa relação com o grupo, a vivência do jornal e da metodologia, fiz uma mistura. Depois tudo era conversado no grupo. O próprio roteiro foi totalmente inspirado em conversas que eu já tinha tido com eles. O filme é totalmente guiado pelas entrevistas.

Na verdade, comecei a filmar entrevistas com eles e a partir do que foi dito, comecei a filmar outras cenas que eles estavam vivendo e depois toda a construção do roteiro já foi feita a partir das falas deles. Não tem voz de narração, não tem ninguém explicando como funciona o jornal, como é a vida na rua. A única pessoa que não é da rua e que fala no filme é a Rosina (Duarte), que é a fundadora do jornal. Ela fala mais sobre a estrutura do jornal em si, não fala sobre a vida na rua. Fui me guiando totalmente pelas falas, o que é bem inspirado na metodologia do jornal, que é sempre pegar o que eles falam, o que eles querem dizer. E depois, com o filme pronto, eles foram os primeiros a assistir. Se tivesse alguma coisa que eles não quisessem, a gente ia tirar e cortar. Tudo foi sempre conversado.

É importante dimensionar que o Boca tem uma coisa muito forte que é o vínculo de afeto entre todos os participantes, também os voluntários do jornal. O filme também se baseia muito nisso. Uma amizade de muitos anos que eu já tinha com a maioria, uma relação de confiança, não era uma pessoa de fora, tinha essa relação de intimidade com eles.

Sul21: Como foi a receptividade deles ao se verem na tela, verem a história contada em filme?

Charlotte Dafol: É difícil relatar a reação de um grupo inteiro, mas acho que tem vários momentos. Teve o momento de assistir o filme só com eles, que foi antes da pandemia, em novembro de 2019, porque o filme seria lançado em março de 2020. Daí teve a pandemia e não foi lançado. Foi uma sessão memorável, muito legal, eles descobrirem as imagens todas, brincarem e comentarem em voz alta o tempo todo, foi muito engraçado. Eles gostaram muito e aprovaram.

Depois, agora em janeiro, a gente fez umas sessões públicas na Casa de Cultura (Mário Quintana), no Maracaiá, que é o antigo Comitê Latino-Americano, e uma sessão bem grande no Museu Joaquim Felizardo, ao ar livre, com quase 300 pessoas. E lá realmente se emocionaram muito, porque além de assistir o filme, se ver na tela, eles viam as pessoas assistindo eles, então tinha uma emoção geral em vários momentos.

A francesa Charlotte Dafol foi de voluntária a diretora do filme sobre o Boca de Rua. Foto: Mauro Marques/Divulgação

Sul21: Depois do cinema no Brasil ter um período muito bom, nos últimos anos o cinema, e a cultura em geral, passa por um momento difícil de financiamento e de apoio.  Como está sendo colocar o filme na rua, no circuito comercial?

Charlotte Dafol: O que mais dá trabalho é a distribuição do filme. É realmente, sem comparação, o maior desafio de fazer um filme independente. E sobre essa temática. No meu caso foi pior ainda, porque peguei a pandemia no meio, num momento em que a gente enxergava bastante o cinema como algo presencial. A gente até pode fazer um filme, assim… sem dinheiro, com as tecnologias que têm se faz o filme…estou exagerando, mas é praticamente isso, tem equipamento acessível, tem uma galera super afim. Agora, a distribuição é muito difícil, mesmo com esse filme que circulou bastante em festivais, foi premiado, teve um retorno bom do público e da crítica, mas mesmo assim a gente não vai estar no Netflix, nem no cinema do shopping, na Globo, em nada disso.

Sul21: A temática do filme dificulta entrar no circuito comercial?

Charlotte Dafol: É um filme posicionado politicamente, faz uma crítica à violência policial, à estrutura do Estado, à desigualdade social. Então é um filme que faz um certo questionamento e não tem acesso ao circuito comercial. Essas exibições todas que a gente fez, foi uma produção nossa, independente, e elas foram gratuitas e sempre com parceria dos espaços. A Casa de Cultura (Mário Quintana) vai ser o único lugar onde vai ser pago. Agora também entramos no circuito do SESC, que foi um mega reconhecimento, um grande passo. O filme entrou no circuito do SESC nacional, então pode passar em qualquer SESC do Brasil. Isso é muito bom, uma baita visibilidade. Não tem muito mais que isso, é a boa vontade de pessoas que são diretoras de salas e abrem suas portas. Então são pequenos passos. A distribuição assim é um trabalho muito maior e mais cansativo do que fazer o filme. Eu nem imaginava isso na verdade.


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