Opinião
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6 de maio de 2024
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12:19

Há duzentos anos… (por Maria da Glória Lopes Kopp)

Foto: Ricardo Stuckert/PR
Foto: Ricardo Stuckert/PR

Maria da Glória Lopes Kopp (*) 

As terras que agora desabam dramaticamente no Sul do Brasil, levada pelas chuvas  torrenciais, foram integradas ao sistema capitalista de produção para o mercado  internacional há 200 anos. Não por coincidência, o mapa da enchente é o mesmo da região originária das matas de araucária. A intensa atividade econômica exploratória,  conhecida como “política de colonização”, foi iniciada com a vinda da Corte Portuguesa  (1808-1821) para o Brasil. Com as novas demandas da monarquia lusitana, associada  aos interesses do capitalismo industrial inglês, houve um avanço no modelo de  latifúndio escravizador para as terras altas de florestas, desde São Paulo até o Rio  Grande do Sul. Ali existia um magnífico território com águas abundantes, vegetação  milenar exuberante e fauna diversificada que incluía variedade de aves, peixes e  mamíferos. Essas terras eram ocupadas, pelo menos há seis mil anos, por populações de  origem linguística jê. 

A extensa formação do Planalto Meridional, que engloba os três estados do Sul e São  Paulo, é um “bloco” geológico de derrame basáltico, onde terras e argilas se fixaram  dando vida a uma estupenda floresta subtropical, que finda na escarpa do Rio Grande do  Sul. Essa borda do planalto se estende em morros e serras de geomorfologia frágil e  instabilidade evidente. Uma região com força natural gigantesca expressa na vida  vegetal ali criada: florestas de pinheiros de araucárias com árvores de acácias, angicos,  canelas, canjeranas, cedros, erva-mate, espinilhos, louros, palmeiras, taquaras e umbus. Território tradicional de ocupação das famílias de etnia jê. Os originários ficaram  conhecidos pelos “colonizadores” como botocudos, bugres, coroados, guainás e guaianases, hoje são chamados de terenas, kaingangs, xoclengues entre outros. 

Historicamente, populações guaranis também desfrutavam da generosa natureza nas  partes baixas, nos vales do rios. 

Para beneficiar a nobreza portuguesa, fugitiva das revoluções liberais burguesas da  Europa, o príncipe regente governante, dom João VI, declarou guerra aos indígenas  botocudos, senhores das matas de araucária. As forças lusitanas trataram de matar os homens das nações nativas e escravizar as mulheres e as crianças, como bem retratou o pintor Jean-Batiste Debret [1], artista francês exilado no Brasil (1816-1831). 

No início, o desmatamento florestal atingiu as terras de São Paulo, para a produção e  exportação de café, privilegiando os barões, a nobreza titulada lusitana aportada em  terras tropicais. Foi a “independência” do Brasil – articulada pelo herdeiro da coroa  portuguesa, dom Pedro I, e sua esposa, dona Leopoldina, a defensora dos interesses da  Áustria na América do Sul – que pautou a constituição de um Exército de enfrentamento  às forças liberais europeias, que ampliou o avanço sobre as milenares florestas de  araucárias. As terras dos botocudos foram doadas pelo Império brasileiro aos mercenários europeus, especialmente de origem alemã, como forma de pagamento por  serviços militares. Uma política de “colonização‟ que ocultava a cooptação de  profissionais das armas como colonos-soldados, questão apontada por cientistas sociais  e historiadores sul-rio-grandenses. 

Assim, em 1824, há 200 anos, foi aberto um ciclo de acomodação de agricultores  europeus por companhias de colonização estrangeiras. Empresas capitalistas,  beneficiadas por terras arranjadas junto à monarquia brasileira, gerenciaram um abate  florestal, em escala industrial ferroviária, sem precedentes. Regiões do interior da  América do Sul se internacionalizaram nas mãos do herdeiro Bragança, dom Pedro II, o  mais duradouro governante do Brasil (1831 a 1889), que reinou por 58 anos, atendendo  a interesses bastante “globalizados‟. No seu comando, a indústria madeireira e o  assentamento de mão de obra estrangeira, para a produção agrícola e a criação de  animais, puderam contar com imigrantes de diversas nacionalidades. Entre miseráveis  sobreviventes de guerras europeias, deserdados da terra de diferentes regiões do planeta,  e os mais ilustrados técnicos a serviço do capital internacional, estavam milhares de  alemães, árabes, belgas, espanhóis, franceses, holandeses, ingleses, italianos, japoneses,  judeus, luxemburgueses, portugueses, turcos, russos, suíços e sul-americanos.  Derrubada a floresta, o produto era exportado pelo porto de Rio Grande, e „colonos‟  eram assentados.  

As frágeis regiões dos vales de rios, encosta da serra e terras altas do planalto, foram  transformadas em campo de cultivo intensivo de grãos e criação de animais, criando a  imagem do Rio Grande do Sul como o “celeiro do Brasil” com produção de alimentos para o mercado externo. O projeto ferroviário, de capital inglês, precedido pelos norte americanos, rasgou a região na Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande. Carregando toras de cedros e pinheiros, os trens levariam também os alimentos e o tabaco. A  construção dessa incrível malha ferroviária, provocou grande devastação ambiental em  toda a região do Planalto Meridional. Mas, não sem resistência. A Guerra do  Contestado (1912-1916), com mais de 10 mil mortos, é um exemplo da resistência dos  nativos da terra à grande espoliação das terras florestais. 

No início do século XX, as lavouras “coloniais‟ do Rio Grande do Sul já contribuíam de  forma determinante com erva-mate, grãos, tabaco, couros e carnes para as guerras europeias. Em 1938, na região de Soledade e Sobradinho, do grande rio Jacuí,  agricultores se rebelaram contra a exploração capitalista internacional existente na  região. O movimento ficou conhecido como os Monges Barbudos, destacando o aspecto  religioso e ocultando os fatores econômicos e políticos do conflito. A superexploração dos pequenos proprietários de terras “coloniais‟ envolvidos com a produção para a  sustentação das nações europeias em conflito, motivado pela crise capitalista e pela  ascensão do nazi-fascismo, foi denunciada pelos camponeses e indígenas – guaranis e  kaingangs – como causadora de injustiças sociais e devastação ambiental. A denúncia  do desastre que se seguiria foi vista como messianismo: um velho monge dizia que tudo  iria acabar. João Maria avisou. Não se pode descartar que a recorrentemente lembrada enchente de 1941 já tenha sido uma consequência da rápida e radical mudança da  paisagem dessa grande região. 

Com os novos arranjos internacionais no pós-Segunda Guerra Mundial, o Rio Grande  do Sul foi sendo reorientado para a produção de soja visando o mercado asiático,  substituindo a produção norte-americana. Uma cultura intensiva, com o uso de  tecnologia mecanizada, hoje informatizada, produtos químicos sem controle, reduzida  mão de obra, foi monopolizando a produção para a exportação. Lavouras gigantescas  em latifúndios sem medida, financiados com recursos públicos anuais, acabaram por  matar a diversidade biológica e degradar os solos de forma irremediável. Transgênicos,  pesticidas proibidos nos locais de origem, ocupação de áreas ribeirinhas, eliminação de  quase 100% da floresta originária, deixam seu legado de destruição e mortes. Existem  responsáveis por essa tragédia anunciada. 

Denúncias de ambientalistas, pesquisadores e cientistas locais [2] não foram consideradas  pelo ciclo de poder vigente no Estado e em prefeituras. A Região Metropolitana de Porto Alegre acolhe cinco grandes rios interiores do território sul-rio-grandense. O lago  Guaíba reúne as águas e também a lama e os dejetos: tudo que foi carregado pela enchente chegará ao grande lago de sedimentação que é o Guaíba. Nossa tragédia não se  resume às águas da chuva que transbordam, os rios estão sendo mortos pelo assoreamento. São terras desabadas que não voltam mais.  

Medidas urgentes precisam ser tomadas, especialmente nesse momento em que,  tradicionalmente, os capitais internacionais se deslocam deixando o passivo de destruição para as populações locais. Mas, não se trata das “medidas emergenciais”  tradicionais nas mãos de autoridades corruptas, despreparadas e gananciosas. O neoliberalismo, associado ao neofascismo, já deixou sua marca em definitivo neste solo. A contraposição ao projeto excludente e nefasto é a democracia participativa. As  populações precisam ser chamadas para o debate público. A instrução sobre a  fragilidade da região que habitamos deve fazer parte da proposta de recomposição  ambiental.  

Atitudes duras de enfrentamento à mineração de carvão, areia e rochas e ao grande  latifúndio da soja, do arroz e do tabaco são necessárias. O momento exige reparação, por parte daqueles que lucram com a devastação, e apontamento das autoridades públicas negligentes. O comprometimento com a recuperação da degradação ambiental  causada deve ser ponto de honra para as populações sul-rio-grandenses. Quem causou a  tragédia que pague por ela. Os capitais que devastam regiões periféricas coloniais são  monopolistas e estão nas mãos das mesmas famílias há centenas de anos.  

Por outro lado, é vital que seja retomado o interesse social da propriedade da terra para efetivação de ações de longo prazo, com reforma agrária, para que a cidadania  comprometida com o futuro possa recuperar as margens dos rios e riachos, promovendo cultivos regenerativos. É premente “renacionalizar” a produção agrícola e a propriedade  da terra no Sul do Brasil. O Brasil é vanguarda na tecnologia agroflorestal sustentável. A hora é de solidariedade, responsabilização, reparação e participação popular na  definição de medidas presentes para a esperança futura. 

Notas

[1] BANDEIRA, Júlio e LAGO, Pedro Corrêa. Debret e o Brasil. Obra completa. (1816-1831) 3ª ed. Rev. e ampl. Rio  de Janeiro: Capivara Editora LTDA, 2013.

[2] MENEGAT, Rualdo, coord. Atlas Ambiental de Porto Alegre (1998), UFRGS/PMPOA/INPE. A publicação  apresenta em detalhes a pesquisa sobre o território sulino realizada em décadas de estudos acadêmicos  e do poder público municipal.

(*) Historiadora, doutora em Ciências Sociais.  Autora de A chave do céu e a porta do inferno: os monges barbudos de Soledade e  Sobradinho (2014), dissertação de mestrado, e A floresta, o curandeiro, o juiz e o  capitalista: resistência mestiça em Soledade e Sobradinho (2019), tese de doutorado.

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