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5 de agosto de 2017
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10:30

Luiz Melodia

Por
Sul 21
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Luiz Melodia
Luiz Melodia

zeca azevedo

Quando um grande artista morre, muitos dizem: foi-se o homem, fica a obra. No caso de Luiz Melodia, o homem era a obra. Em dois versos de “Juventude Transviada”, Luiz Melodia definiu a si mesmo de forma precisa: “Eu entendo a juventude transviada/E o auxílio luxuoso de um pandeiro”. A passagem de um verso para o outro pode ter sobre o ouvinte efeito semelhante ao da célebre transição de imagens do filme 2001 — Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick,  na qual o osso lançado ao ar pelo hominídeo primitivo se transforma, em um corte brusco de imagem, em uma estação espacial. A distância entre a juventude transviada, signo de inconformidade e de novidade, e o pandeiro, instrumento musical associado à tradição do samba, parece ser de milhares de anos-luz, mas a via expressa que liga os dois é Luiz Melodia, o homem que transformou a ressignificação do passado e do presente em música.

O cantor e compositor nascido no bairro Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, histórico reduto do samba, não foi, como alguns dizem, um pós-tropicalista, pois ele sempre esteve aquém e além de rótulos. No livro Uma História da Música Popular Brasileira, publicado em 2008 pela Editora 34, Jairo Severiano afirma que Melodia pertence à “corrente soul brasileira”. O jeito próprio de cantar, associado à belíssima voz de tenor, aproximou Luiz Melodia dos melhores cantores do gênero musical inaugurado por Ray Charles, mas o artista não cabia em nenhum escaninho. Em Luiz Melodia, o samba encontrou-se com o blues, com o jazz, com a soul music, com o chá-chá-chá e com outras músicas de extração negra para gerar um som que não teve similar no Brasil e no mundo. Tomando de empréstimo palavras do escritor Affonso Romano de Sant’Anna (extraídas do livro Música Popular e Moderna Poesia Brasileira), podemos dizer que a obra de Luiz Melodia fez “oposição à objetividade das vanguardas formalistas” da música popular brasileira sem deixar de promover mudanças profundas no cenário musical do país. A fusão natural de diferentes estilos musicais e as letras incomuns e intuitivas das composições de Luiz Melodia informaram muitos cantores e compositores, entre eles Djavan. O sucesso que Luiz Melodia fez nos anos setenta mostrou aos demais artistas da música popular do país que eles podiam conquistar o público em seus próprios termos. Luiz Melodia foi um estandarte da liberdade de criação artística no campo da música popular.

A discografia de Luiz Melodia é relativamente pequena. Um clichê corrente sobre os discos de Melodia diz que o melhor deles é o primeiro, Pérola Negra, de 1973. Sim, Pérola Negra é um álbum extraordinário, mas sugerir que depois dele a música do cantor e compositor não voltou a atingir o mesmo nível de excelência é demonstração de desconhecimento do legado  fonográfico do autor de “Magrelinha”. Álbuns como Maravilhas Contemporâneas, de 1976 (relançado há pouco em CD pela Som Livre), Mico de Circo, de 1978, Nós, de 1980, Felino, de 1983, e Claro, de 1987, são indispensáveis para a compreensão e para a fruição total da arte e da alma de Luiz Melodia. Como o cantor e compositor publicou álbuns por muitas gravadoras, a discografia dele em formato físico não está completa nas prateleiras de lojas de discos, mas ela está disponível em sites de streaming e no YouTube.

De todas as versões de composições de Luiz Melodia feitas por outros cantores, a mais conhecida e talvez a mais bem-sucedida seja a de “Pérola Negra” que Gal Costa incluiu no LP duplo Fa-Tal — Gal a Todo Vapor, de 1971. Foi a gravação de Gal que fez com que Luiz Melodia despontasse como compositor em âmbito nacional. Por mais bela que seja, a versão extrovertida da super cantora baiana para “Pérola Negra” não supera o registro do compositor publicado em 1973, que revela ao ouvinte o caráter introspectivo e delicado da canção.

Embora tenha compartilhado nos anos setenta a pecha de “maldito” com outros cantores e compositores brasileiros menos alinhados às demandas do mercado, Luiz Melodia nunca deixou de fazer música bonita e acessível. As letras escritas por Melodia podiam ser, muitas vezes, difíceis de compreender, mas a música sempre foi melíflua e suingada. Quando cantou composições alheias, Luiz Melodia geralmente entregou interpretações definitivas. O exemplo mais conhecido é “Codinome Beija-Flor”, de 1991, que varreu para baixo do tapete a gravação original de Cazuza.  “Negro Gato”, composição de Getúlio Côrtes lançada por Roberto Carlos em 1966, também foi apropriada com grande sucesso por Melodia em 1980.

Luiz Melodia continuava na ativa, com a voz inteira, gravando discos e DVDs e fazendo shows por todo o país. Morto aos sessenta e seis anos de idade, Luiz Melodia vai fazer muita falta, especialmente nessa era de trevas por que passa o Brasil. Ficamos com os discos e com os vídeos, mas a obra mais original e mais valiosa do artista, ele mesmo, não está mais conosco.

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zeca azevedo é produtor cultural e colecionador de discos.


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