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22 de julho de 2017
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10:30

O culto (irracional?) ao Tim Maia Racional

Por
Sul 21
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O culto (irracional?) ao Tim Maia Racional
O culto (irracional?) ao Tim Maia Racional

zeca azevedo

Alguém aí lembra de um filme dos anos oitenta chamado Eddie & The Cruisers? Estrelado por Tom Berenger, o filme trata de um grupo de rock da década de sessenta cujo cantor e compositor principal, o tal Eddie, vagamente inspirado em Jim Morrison, é um “poeta” rebelde e romântico do rock. A trama do filme gira em torno da procura pela fita master de um álbum “revolucionário” e “experimental” que o grupo teria gravado antes da (suposta) morte do Eddie.

Com o passar dos anos, Eddie vira um “mito” e o disco perdido, que não havia sido lançado comercialmente, torna-se legendário. Não vou contar o filme todo aqui, uma vez que o propósito da citação é ilustrar o culto aos álbuns “perdidos” do rock e do pop, capaz de motivar até a produção de um filminho sobre o assunto.

Eu poderia ter citado o álbum Smile, dos Beach Boys, aí em cima também. Todo fã de rock conhece o barulho conceitual que cercou esse projeto durante mais de trinta anos. Como escreve Dave Marsh em The Rolling Stone Record Guide, livro publicado em 1979, o blá-blá-blá em torno do Smile foi (e é) “um exercício de construção de um mito quase sem paralelos no show business”. Marsh completa a observação dizendo: “(Brian) Wilson tornou-se um artista maior por fazer música que ninguém ouviu”. Claro que este último juízo não corresponde à realidade, uma vez que os discos lançados pelos Beach Boys antes do malfadado Smile (não só o Pet Sounds) já bastavam para garantir a eles a glória eterna.

De todo modo, o que interessa aqui é o falar sobre o processo de construção de lendas ou legendas ou mitos (como queiram) do pop. Quem cria essas lendas? Quem precisa delas. Quem? A imprensa especializada, que precisa engajar os leitores em grandes narrativas para vender revistas, jornais e outros produtos; os fãs, que gostam de deter aquela informação “que ninguém mais tem”; a indústria musical, que vê no aumento do valor de uso de um produto uma oportunidade para inflacionar o valor de troca dele; e os próprios músicos, que costumam colher benefícios, inclusive financeiros, com a aura de “mártires da arte” que lhes é atribuída de vez em quando.

Como a imprensa pop brasileira costuma copiar os modelos (e as opiniões) dos gringos, a necessidade de encontrar os álbuns “perdidos” da música nacional cresceu e apareceu. O A e o Z, dos Mutantes, disco “perdido” por muitos anos, deu o que falar até que foi lançado em 1992, quando se descobriu que não era lá essas maravilhas. Outros discos “perdidos” e largamente cultuados são os dois volumes de Tim Maia Racional, lançados pelo mestre da soul music brasileira em esquema independente em 1975 e 1976.

Um fato curioso sobre os discos “perdidos” é que eles costumam destoar do conjunto da obra do artista, quase sempre são mais experimentais, estranhos e menos comerciais que os outros álbuns do mesmo autor. Esse fato ajuda a explicar parcialmente o fascínio exercido pelos discos “perdidos” sobre o público e sobre a imprensa especializada.

Os volumes 1 e 2 de Tim Maia Racional são os estranhos no ninho da discografia do Tim Maia. Resumindo a história da gestação dos dois LPs: em meados dos anos setenta, Tim Maia descobriu o livro Universo em Desencanto, ficou entusiasmado com os “ensinamentos” contidos nele (que não passam de uma versão amalucada e mal redigida do platonismo) e decidiu entrar para o grupo esotérico que o livro promove, chamado Cultura Racional.

Por que motivo Tim Maia decidiu dar essa guinada radical na própria vida? Não posso responder por ele, ninguém pode, mas interpreto o fato como um esforço feito pelo cantor para regrar-se e abandonar a agitada vida de astro da música popular que levava então, movida a drogas de todos os tipos, festas e outras loucuras. Por que a saída espiritual? O rigor da fé e das práticas religiosas oferece uma direção segura e conhecida para as ações de todo dia e ergue um manto que encobre a vida pregressa. Ainda que não saibamos as motivações profundas que o levaram a aderir à Cultura Racional, podemos dizer que a conversão demonstra que ele, Tim Maia, não estava satisfeito consigo mesmo e estava à procura de estabilidade emocional e existencial.

Pois bem, depois de encontrar uma âncora emocional e espiritual no livro Universo em Desencanto, o que Tim Maia decidiu fazer? Espalhar as palavras confusas da Cultura Racional por todo o Brasil, divulgando sua nova fé através da música. É um gesto previsível: quem acredita que foi salvo se sente em dívida com o salvador e procura retribuir com devoção e divulgação (não é assim que costuma acontecer com alguns evangélicos que você conhece? Eles estão sempre querendo cooptar os outros para a Igreja a que pertencem).

Praticamente todas as letras das canções “racionais” (incluindo as do compacto duplo “de carnaval” lançado em 1975) repetem a instrução “Leia o livro Universo em Desencanto“. O ouvinte sente (ou devia sentir) que está sendo vítima de um esforço de programação mental: leia, leia, creia. A grande maioria dos fãs atuais dos dois volumes de Tim Maia Racional, contudo, costuma encarar com ironia o conteúdo programático das letras e valorizar a música, o som, o groove.

Para muitas pessoas, convertidas ou não, o volume 1 e o volume 2 de Tim Maia Racional são o melhor da produção musical do grão-mestre varonil da soul music made in Brazil. Mas será que os álbuns da fase Racional são mesmo superiores musicalmente aos outros que Tim Maia lançou? Não creio. Não questiono as qualidades musicais evidentes dos discos Racionais de Tim Maia, mas a verdade é que, quando comparados aos quatro álbuns que o cantor gravou antes, os dois volumes de Tim Maia Racional não se revelam assim tão inovadores e poderosos do ponto de vista estético, que dirá lírico.

Os primeiros quatro discos lançados por Tim Maia fornecem a base sólida sobre a qual ele construiu sua carreira e desenvolveu a sua música. Essa base ainda serve de sustentação para boa parte da música pop feita no Brasil hoje. Com esses quatro álbuns, Tim Maia fez mais do que abrasileirar a soul music ou americanizar a MPB, ele criou o seu próprio som, sua própria fusão, sua identidade musical, pessoal e intransferível. Quando os primeiros LPs do Tim Maia apareceram, não havia nada parecido nem no cenário nacional, que já desenvolvia uma incipiente cena de música soul, nem no cenário internacional. O homem era mesmo original.

A desvantagem dos discos Racionais de Tim Maia em relação aos quatro LPs que ele gravou antes (e a todos os discos que ele gravou depois, para ser sincero) está na supressão da irreverência e do romantismo próprios da música e da personalidade de Tim Maia em favor do discurso “sério” da Cultura Racional. Nada de canções sobre dores-de-corno ou sobre pianistas que agitam festas de casamento em Bodocó, o negócio é repetir ad nauseam a ladainha “leia o livro, leia o livro”. Os dois volumes de Tim Maia Racional não oferecem um retrato abrangente da mente e da alma de Sebastião Rodrigues Maia, o homem, apenas registram uma fase da vida dele — uma fase bem curta, que não durou dois anos.

Depois de deixar a Cultura Racional, Tim Maia publicou em 1976 um LP estupendo, no qual celebra a dança e a música como manifestações vitais (“Dance Enquanto É Tempo”), incita o povo negro à luta política (“Rodésia”) e recobra a irreverência para criticar duramente o caráter mistificador da religião (“Nobody Can Live Forever”, “Brother, Father, Sister And Mother”). Foi uma volta triunfal à forma, ainda que o LP não tenha feito muito sucesso à época do lançamento. O álbum de 1976 representa mais o homem do que os discos da fase Racional, que são corretamente admirados por suas qualidades musicais e excessivamente estimados por conta de fatores extramusicais.

Que fatores, você pergunta? As anedotas relativas à conversão de Tim Maia à Cultura Racional, as curiosidades sobre a gravação dos álbuns (os instrumentos pintados de branco, etc.), o fato dos discos terem sido renegados pelo cantor depois que ele deixou de acreditar na seita, a raridade e o preço abusivo das edições de Tim Maia Racional em vinil e as letras birutas. Tudo isso gerou o hype em torno dos LPs da fase Racional, alimentado por fãs de última hora de Tim Maia e por parte substancial da imprensa pop brasileira.

Parceiro musical e amigo de longa data de Tim Maia, o cantor e compositor Hyldon declarou em entrevista que não aprova o relançamento dos discos da fase Racional de Tim Maia. Segundo Hyldon, Tim Maia não ficaria nem um pouco satisfeito com a reedição de discos que celebram a doutrina da seita criada por um vigarista. Embora discorde da opinião de Hyldon, pois acredito que toda a produção de Tim Maia deve encontrar o consumidor interessado por ela, entendo a preocupação dele. Quando estive em São Paulo pela última vez, há pouco mais de quatro anos, vi no centro da cidade uma grande barraca da Cultura Racional. A seita ainda existe e segue desencaminhando pessoas. Os discos da fase Racional de Tim Maia ainda são os produtos relacionados à seita que possuem maior trânsito pela mídia e certamente ajudam a Cultura Racional a amealhar novos fiéis, fato que não deixaria Tim Maia satisfeito.

Acredito que as pessoas que dizem preferir a fase Racional do Tim Maia às outras da carreira dele insistem em julgar o todo por uma pequena parte e ficam sem entender por completo o homem e o rico legado musical que ele deixou para todos nós.

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zeca azevedo é produtor cultural e colecionador de discos.


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