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24 de junho de 2017
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10:30

Ouça sem preconceito

Por
Sul 21
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zeca azevedo

Há alguns meses comprei o livro sobre o Kraftwerk escrito pelo inglês David Buckley na esperança de encontrar análise inteligente e livre de clichês sobre a obra do grupo alemão e sobre cultura em geral. Infelizmente, topei com afirmação preconceituosa e insustentável feita pelo autor na página 59 da edição brasileira do livro. Na primeira linha dessa página, David Buckley chama a música country & western dos Estados Unidos de “infinitamente insípida”. O autor nem se dá ao trabalho de elaborar com cuidado juízo negativo sobre um gênero de música popular porque acredita que a “má qualidade” desse gênero é autoevidente. O que é evidente neste caso é a preguiça e o preconceito do biógrafo inglês.

Pessoas como David Buckley tendem a supervalorizar a própria experiência e os próprios valores sociais e estéticos e a acreditar que as amostragens que tiveram de um determinado gênero musical são suficientes para julgá-lo e condená-lo. Como qualquer pessoa, Buckley está autorizado a dizer que não gosta ou não se identifica com um gênero musical específico, mas chamá-lo de “infinitamente insípido” (estou confiando na justeza da tradução) é extrapolação epistemológica. Presunçoso, David Buckley assume perspectiva divina (sub specie aeternitatis, se me lembro bem das minhas aulas de Filosofia) para jogar no lixo a música country e qualquer outro gênero que considere inferior e efêmero. Buckley certamente não ouviu todo o repertório do gênero que condena (embora use a palavra “infinitamente”). A afirmação de David Buckley sobre a música country não é apenas reducionista, é manifestação clara de preconceito estético — que pode revelar preconceito contra o grupo de pessoas que produz e consome essa música.

Existe preconceito de classe social nas críticas aos gêneros mais populares de música, sejam elas feitas por pessoas “comuns” ou por intelectuais de todas as orientações ideológicas. São valores muito fortes, que ainda estão à solta por aí. Praticamente todos os livros que li sobre estética e sobre música reproduzem o discurso que desautoriza expressões da cultura popular com base em conceitos que reforçam uma visão de mundo excludente, baseada em estereótipos sociais.

No ensaio chamado “Sobre a Música Popular”, publicado no Brasil em 1986 pela Editora Ática no volume da coleção Grandes Cientistas Sociais dedicado aos textos de Theodor Adorno, este filósofo alemão fala sobre a rígida padronização da música popular, que busca repetir experiências sonoras familiares ao ouvinte e que é refratária às novidades estéticas. Adorno, para quem a música de real valor era erudita, europeia e escrita por homens brancos, chama a estrutura da música popular de “automatismo musical”. Para Adorno, a música disseminada pelos meios de comunicação de massas substitui a liberdade de criação artística por fórmulas que visam incentivar o consumo e manter os ouvintes em permanente estado de infantilização.  No livro “Apocalípticos e Integrados”, o pensador e escritor italiano Umberto Eco formula o axioma “A fórmula precede a forma” para denunciar o “automatismo” da música popular produzida pela indústria cultural. Apropriando um conceito apresentado por Adorno no livro Berg: O Mestre da Transição Mínima, sobre o compositor austríaco Alban Berg, podemos dizer que o processo composicional na música popular é, para esses intelectuais,  inverso ao da obra de arte, pois se ocupa do resultado antes mesmo da criação. A música “comercial” seria feita a partir de fórmulas testadas e comprovadas e teria como principal propósito gerar lucro e não expressar sentimentos ou ideias dos seus criadores. A consequência da produção em larguíssima escala de música formulaica e artisticamente “pobre”, segundo Adorno, é o fenômeno da audição regressiva que se manifesta em consumidores de música do mundo todo. A frase final do ensaio é particularmente assustadora: “A fim de simplesmente gostar de música popular, não basta, de modo algum, desistir de si mesmo e ficar passivamente alinhado. Para ser transformado em um inseto, o homem precisa daquela energia que eventualmente poderia efetuar a sua transformação em homem”. Para Adorno, nós, apreciadores de música popular, preferimos permanecer para sempre em estágio de larva ou de pupa a nos transformarmos em borboletas com belas asas coloridas.

De acordo com a filósofa e socióloga Barbara Freitag, autora de A Teoria Crítica – Ontem e Hoje, publicado pela Editora Brasiliense no Brasil em 1986 e republicado em 1990, “A onipotência do sistema capitalista estaria deturpando as consciências individuais, narcotizando a sua racionalidade e assimilando os indivíduos ao sistema estabelecido. Esses se incorporam hoje na totalidade do sistema, sem condições de uma autodeterminação sem participação na elaboração do futuro da humanidade, sem possibilidade de uma resistência crítica. A Dialética do Esclarecimento tematiza a morte da razão kantiana, asfixiada pelas relações de produção capitalista”. A música popular produzida em escala industrial é, segundo essa perspectiva, um instrumento de alienação e de controle social e, portanto, é incapaz de oferecer algum tipo de “resistência crítica” ao capitalismo. Podemos questionar o propósito de muitos produtos da indústria cultural,  mas daí a dizer que são todos acríticos é exagero, pois, em geral, eles expressam os desejos e os valores dos diferentes segmentos que compõem a sociedade.

Não há como não sentir o cheiro desagradável do classismo no discurso que diz que há um conjunto específico de vozes que não são donas de si mesmas e que precisam ser “educadas”. Essas vozes “inferiores” costumam ser as dos estratos sociais menos favorecidos. Muitos intelectuais acreditam que a “massa ignara, manipulada e espoliada”, vive como gado, não sabe o que diz e o que faz e precisa ser conduzida à liberdade pelos iluminados de plantão, negando à “massa” o próprio protagonismo social, político e cultural.

Juízos puramente formais não bastam para julgar a música popular. Se o critério for puramente formal, do tipo que sustenta que sofisticação formal é índice de qualidade ou de legitimidade, quase toda a música popular não sobrevive à comparação com a erudita ou mesmo com o jazz. Não é pelo aspecto da sofisticação formal que a música popular se legitima, é pelo fato dela ser fruto de experiência social, coletiva. Os gêneros de música popular são vozes de segmentos sociais diferentes e todos esses segmentos têm o direito de produzir e de consumir cultura como melhor lhes convier. Sentenciar à morte um gênero musical inteiro à guisa de defender valores artísticos tidos como “universais” e “superiores” é, também, ataque ao grupo social que produz e consome esse gênero.

A ideia de que existem formas superiores de expressão cultural e de que elas têm valor universal é uma construção histórica que serve ao status quo e exclui manifestações de origem “periférica”.  Sabemos que a acachapante maioria dos produtos “superiores” do espírito humano têm origem europeia. A visão iluminista, supostamente universal, reproduz o discurso e legitima os valores estéticos e políticos dos colonizadores europeus. Aos colonizados, resta a imitação e, em casos mais ousados, a antropofagia das iguarias estéticas de origem europeia. A noção de “elevado valor intrínseco” da obra de arte ou de um produto cultural não é dada a priori, de forma abstrata pelo filtro da razão, fora de qualquer contexto histórico ou político.

Classificações de expressões culturais à la Dwight McDonald, o sujeito que popularizou os termos highbrow, middlebrow e lowbrow nos estudos culturais (termos que remetem à frenologia, teoria racista que relacionava a capacidade intelectual de uma pessoa a partir da conformação física do crânio), fatiam a produção cultural e definem o que tem valor a partir dos critérios definidos pela “alta” cultura. Para esse tipo de mentalidade, que é compartilhada por figuras da direita e da esquerda (e do centro), o homem emancipado é o que se dedica ao consumo dos “grandes produtos do espírito humano”, da “verdadeira arte”, etc. Os critérios que definem a “grande arte” são tão poderosos e insidiosos que se infiltraram na análise e na avaliação da cultura popular e criaram uma elite de artistas e de obras de arte populares. Assim, o jazz é mais “artístico” do que o funk carioca e Tom Jobim é mais celebrado como compositor do que Roberto Carlos. Antes do samba tornar-se símbolo da cultura e da identidade nacional, os praticantes do gênero eram perseguidos pela polícia e encarados como criminosos por burgueses e pequeno-burgueses. A descriminalização de um gênero de música popular só acontece quando ele tem seu valor reconhecido pelos poderosos “formadores de opinião” — e este reconhecimento geralmente está comprometido com a manutenção do controle político, econômico e cultural da sociedade pela classe dominante.

Não devemos nos furtar à fruição das diferentes expressões culturais que estão à nossa disposição. Às vezes precisamos de Shakespeare, às vezes queremos um gibi da Mônica. Precisamos ser inclusivos e procurar, nas diversas formas de cultura, aquelas com que nos identificamos ou que acreditamos que vão nos ajudar a fazer de nós quem queremos ser. Nesse processo, podemos fazer críticas pontuais a obras de arte e a alguns artistas, mas não precisamos (e não devemos) desautorizar completamente formas de expressão com as quais não temos identificação imediata.

Precisamos evitar, sempre que possível, afirmações genéricas e hiperbólicas sobre gêneros musicais. A música popular não evolui, assim como a humanidade não evolui, mas elas (a música e a humanidade) mudam. Toda mudança vem para o bem de alguns e para o mal de outros. Sempre falamos dos nossos púlpitos para o mundo, mas precisamos considerar que existem outros púlpitos além dos nossos. Não há problema nenhum em criticar individualmente um grupo musical ou um artista ou mesmo um disco. O problema é criticar todo um gênero musical baseado em amostragem limitada. Uma coisa é expressar preferências pessoais em música, outra é tentar analisar friamente a produção musical de um grupo social ou de uma época, atividade que requer alto grau de comprometimento mental e moral.

O artigo “A cultura popular urbana merece respeito”, escrito por Luciana Lima e Pablo Ortellado e publicado no site http://www.canalibase.org.br em setembro de 2012, diz de forma clara e lúcida: “No Brasil, as manifestações culturais tradicionais conquistaram alguma respeitabilidade – são vistas como os elementos da cultura popular que compõem a identidade profunda da nação, ecoando a visão romântica de uma cultura pura, autêntica e comunitária. O mesmo não se pode dizer de manifestações populares urbanas como o sertanejo e o funk que ainda são vistas como expressões culturais simplórias, primitivas e inautênticas… Há basicamente duas formas pelas quais a cultura popular tem conseguido conquistar legitimidade no discurso dominante: quando se apresentou como a identidade cultural da comunidade ou quando adquiriu sofisticação de linguagem (por desenvolvimento próprio ou por fusão com a alta cultura) e foi incorporada no repertório cultural consagrado. Fora destes casos, a cultura popular — sobretudo a urbana – foi geralmente considerada grosseira, sem sofisticação e imposta pela indústria cultural”. É esse tipo de preconceito contra a cultura popular urbana que critico aqui.

Recomendo a leitura de Arte, Inimiga do Povo, livro provocador de Roger L. Taylor publicado no Brasil pela Conrad. No livro, Taylor analisa a relação entre a produção musical de origem popular (no caso, o jazz) e sua assimilação pelo sistema de artes. Taylor mostra no capítulo 4, intitulado “Um Alerta sobre a Influência Corruptora da Arte na Cultura Popular”, como o jazz passou de manifestação autêntica e livre do povo negro norte-americano à posição de representante da “cultura oficial” dos EUA e, no processo, foi completamente assimilado, institucionalizado e elitizado — e, talvez, assassinado.

É muito difícil vencer a mentalidade hegemônica que separa de forma quase automática arte de entretenimento e produto cultural durável de produto de consumo descartável. Não acho NEM UM POUCO FÁCIL fazer essas distinções. A diversidade da música acompanha a diversidade da vida. Fazer um recorte da produção musical a partir de critérios que não dão conta da complexidade e da variedade de expressões culturais e de experiências humanas é fechar-se para o mundo.

Acredito que a tentativa de valorizar a produção de música popular somente através de critérios “artísticos” destrói coisas belas e necessárias. A música popular é justificada pela vida. E, como todos sabemos (ou devíamos saber), a vida é maior que a arte. Muito maior.

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zeca azevedo é produtor cultural e colecionador de discos.


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