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13 de maio de 2017
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10:30

Belchior & Jerry

Por
Sul 21
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zeca azevedo

Alguns amigos perguntaram se eu pretendia escrever sobre o Belchior neste espaço que o Sul21 gentilmente me oferece. Eu respondi que não, pois seria apenas mais um pingo no oceano de textos produzidos sobre o cantor e compositor por ocasião da morte dele. No entanto, a morte recente de outra figura da nossa música popular, Jerry Adriani, me fez reconsiderar a decisão. Na verdade, decidi escrever não somente sobre Belchior, mas sobre a repercussão da morte dele na mídia e nas redes sociais comparada à repercussão da morte de Jerry Adriani.

Eu sei que são artistas diferentes e que tiveram diferentes alcances, ainda que estivessem mais próximos do ponto de vista estético do que muita gente supõe, pois as canções escritas por Belchior “conversam” muito com as de Roberto Carlos, estrela maior da Jovem Guarda, o mesmo movimento musical que lançou Jerry Adriani para o sucesso. Na cabeça de muita gente, Belchior ocupou e ainda ocupa um lugar central na história da música popular do Brasil pela sofisticação de suas composições. O cantor e compositor produziu muitas canções poderosas e inegavelmente belas nos anos setenta, que falam do estado das coisas daquela época marcada pela brutalidade da ditadura militar, mas que não perderam o viço porque clamam pela liberdade de pensamento e de comportamento, denunciam injustiças sociais e registram angústias e medos de mais de uma geração de brasileiros, principalmente dos emigrantes que deixaram o nordeste em busca de melhores condições de vida no inclemente “sul maravilha”. “A minha arte quer propor uma liberdade de tudo”, disse o cearense em entrevista publicada em 1979 na edição de número 35 da revista Música (tenho esse exemplar em casa).

Os hinos contraculturais compostos por Belchior ganham relevância maior neste momento em que a porção mais reacionária e cruel do povo brasileiro depôs a presidenta legitimamente eleita para controlar o Estado e, em parceria com os mercenários e corruptos que estão em maioria na Câmara de Deputados e no Senado Federal, empurra medidas econômicas que favorecem abertamente os ricos e altera a legislação para passar “legalmente” a faca na garganta dos mais pobres. A violência poética de Belchior usa palavras como navalhas para fatiar a máscara de hipocrisia que cobre a face da realidade brasileira e para denunciar o derramamento do sangue dos cordeiros sacrificados diariamente em nome dos privilégios de uma minoria.

As referências literárias e musicais na obra de Belchior são indicações sólidas e incontornáveis do talento e da inteligência do compositor. Todos os textos laudatórios escritos sobre Belchior por ocasião da morte dele no dia 30 de abril — e mesmo antes desse fato — são plenamente justificados, ainda que a produção autoral do compositor tenha patinado um bocado a partir dos anos oitenta, década em que Belchior não conseguiu entregar ao público álbuns clássicos como Belchior (1974), Alucinação (1976), Coração Selvagem (1977) e Era uma Vez um Homem e Seu Tempo (1979). Discos como Todos os Sentidos (1978) e Objeto Direto (1980) não são apreciados por críticos como os citados na frase anterior, mas têm canções boas em quantidade suficiente para justificar sua inclusão no conjunto de obras memoráveis de Belchior. Em compensação,Paraíso (1982), Cenas dos Próximos Capítulos (1984), Melodrama (1987) e Elogio da Loucura(1988) (os dois últimos foram relançados recentemente em CD pela Universal Music, na caixa Três Tons de Belchior, junto com uma edição remasterizada de Alucinação) têm repertório irregular e às vezes são prejudicados por arranjos eletrônicos mais afeitos aos sucessos dos artistas de new wave dos anos oitenta do que às composições do bardo cearense. Descontando Baihuno, álbum lançado em 1993 pela gravadora Movieplay, o resto da discografia de Belchior é composto basicamente por remakes de suas canções mais conhecidas, que não resistem à comparação com os registros originais, e por gravações de obras de outros compositores.

Se Belchior mereceu necrológios que falaram não somente da vida atribulada que levou (sobretudo nos últimos anos), mas também da obra fonográfica que deixou, o mesmo não aconteceu com Jerry Adriani. A morte do ídolo jovem guardista aconteceu no dia 23 de abril e teve considerável repercussão midiática. Jerry ainda tem um fã-clube ativo, amealhado principalmente durante os anos sessenta e setenta, período em que o cantor apareceu em inúmeras capas de revistas, estrelou dois filmes de cinema, atuou em fotonovelas, participou de programas de TV de grande audiência e viu seus discos ganharem espaço nas rádios mais populares. Jerry tinha orgulho de sua origem italiana e ostentava há décadas a admiração por Elvis Presley, sua grande inspiração vocal. Como o rei do rock, Jerry Adriani tinha belíssima voz, com grande extensão, talhada para interpretar dramáticas canções de amor. Ao contrário de Belchior, artista mais reflexivo e “sofisticado”, cuja obra tinha uma dimensão política e “filosófica” mais evidente, Jerry Adriani era um consumado entertainer, um cantor excepcional que tinha como ofício divertir e encantar plateias interpretando canções românticas, simples e comoventes.

Jerry Adriani era muito querido pelos colegas de profissão, que deram depoimentos emocionados sobre a gentileza, o desprendimento e o bom humor do cantor à mídia depois que a morte dele foi noticiada. A repercussão da morte de Jerry foi justa, os depoimentos dos amigos e colegas sobre ele foram comoventes, mas quase todos os obituários ignoraram a  discografia do cantor, como se a maioria dos álbuns que ele lançou não fossem relevantes ou dignos de menção. Quero crer que isso aconteceu porque a maioria das pessoas que escreveram sobre o falecimento de Jerry Adriani simplesmente nunca ouviu um álbum inteiro dele. Por quê? Porque ainda existe muita desinformação e muito preconceito quando o assunto é Jovem Guarda.

Para muitas pessoas, entre elas as que se dedicam a escrever sobre música popular para veículos de comunicação, a Jovem Guarda foi um momento “menor” da história cultural do Brasil. Há os que criticam a Jovem Guarda porque acreditam que ela foi apenas uma cópia esforçada, mas frouxa, do pop-rock inglês e italiano dos anos sessenta. Muitos dizem que o rock brasileiro só se tornou “autêntico” depois do surgimento dos Mutantes e do tropicalismo, opinião que rejeito frontalmente. As gravações da Jovem Guarda, em especial as que têm acompanhamento instrumental de Renato e Seus Blue Caps e do tecladista Lafayette, têm sonoridade original, que não pode ser confundida com a do pop-rock que vinha de fora. Além disso, os artistas da Jovem Guarda provaram que a prosódia brasileira combinava perfeitamente com o rock’n’roll e criaram a primeira cena pop bem-sucedida do país. Por mais que muita gente tente dizer que a Jovem Guarda foi derivativa, o fato é que a cena musical liderada por Roberto e Erasmo e Wanderléa tinha a cara do Brasil. Como a Jovem Guarda sempre foi tratada como um fenômeno sem relevância cultural pela inteligência brasileira, ela não teve o merecido apoio da mídia depois que deixou de fazer sucesso, ainda nos anos sessenta.  A maioria dos livros escritos sobre música popular brasileira nas últimas décadas simplesmente desconsiderou a Jovem Guarda como fenômeno cultural e estético, detendo-se apenas nos aspectos comerciais e “apolíticos” do movimento.

Vou abrir espaço agora para uma digressão de natureza muito pessoal: por conta da defesa que fiz da Jovem Guarda, alguns de vocês podem pensar que sou um “populista” que deseja a revisão da história da música popular e a reavaliação de tudo que foi, por muito tempo, rejeitado nesse campo pelos “formadores de opinião” por conta de preconceitos estéticos e sociais. O adjetivo “populista” não só não me incomoda como me contrapõe aos elitistas que combato desde sempre. Muitos acreditam que o revisionismo estético e histórico resulta em relativismo que nivelaria obras “essenciais” e obras “supérfluas”, provocando assim a bastardização da cultura (muitos intelectuais pensam assim, inclusive alguns que se dizem “de esquerda”). Hierarquias geralmente me causam repulsa (coisa de garoto que sofreu bullying), sobretudo as baseadas em preconceitos sociais. Não se trata de paternalismo ou de condescendência. Eu vivi e vivo no centro de diferentes expressões culturais e me identifico com quase todas elas, especialmente com as que são inclusivas (ou menos excludentes). Acho a revisão da historiografia da música popular brasileira necessária, pois além de contestar noções de “arte” estáticas e alinhadas com o status quo, ela trabalha para o reconhecimento da legitimidade de todas as expressões culturais. Se eu não acreditasse nisso, não teria produzido nenhum dos textos que fiz para o Sul21 até o momento. Fim da digressão.

Com exceção de Roberto, de Erasmo e de alguns outros, entre eles Jerry Adriani, a maior parcela dos astros da Jovem Guarda não conseguiu encontrar espaço na mídia depois do fim do programa da TV Record e teve que sobreviver à margem do mercado, no circuito de nostalgia pop. Muitos artistas associados à Jovem Guarda tentaram amadurecer e mudar seu som e sua imagem na virada dos anos sessenta para o setenta sem sucesso comercial, embora tenham lançado discos excelentes nessa investida. Alguns desses discos já foram redescobertos e revalorizados, como os LPs “psicodélicos” de Ronnie Von, mas esse reconhecimento ainda não alcançou Jerry, LP de 1970 no qual Jerry Adriani trocou as versões de sucessos internacionais que dominavam seus álbuns anteriores por um repertório de qualidade produzido por autores como Hyldon, Getúlio Côrtes, Almir Ricardi, Frankye Adriano (da dupla de soul Tony e Frankie) e Raul Seixas.

Jerry Adriani foi fundamental para a carreira de Raul Seixas. Jerry conheceu Raul quando o grupo de rock Os Panteras acompanhou o cantor em shows na Bahia e depois por todo o Brasil. O ídolo da Jovem Guarda trouxe Raul para o centro do país e conseguiu convencer Evandro Ribeiro, o chefão da gravadora CBS, a contratar o roqueiro baiano como assistente de produção de discos. Jerry e Raul desenvolveram uma bela parceria, que atingiu o ponto culminante no LP Jerry. Além de fornecer duas composições para Jerry Adriani cantar, “Se Pensamento Falasse” rock pontuado por guitarra fuzz (tocada, talvez, por Renato Barros — o disco não traz créditos dos músicos que participaram das gravações), e “O Seu Táxi Está Esperando”, registro com rebuscada linha de baixo que lembra muito as gravações de Elvis do final dos anos sessenta, Raul produziu Jerry e acrescentou uma dose de veneno roqueiro aos arranjos das canções românticas selecionadas para compor o repertório do LP.

O LP Jerry se destaca na discografia de Jerry Adriani pela força das canções, pela criatividade dos arranjos e, claro, pela performance impecável do cantor. No álbum seguinte, Jerry Adriani, lançado em março de 1971, a qualidade do repertório cai consideravelmente, mas ele traz pelo menos uma gravação antológica: “Eu Preciso de Você”, balada soul escrita pela já citada dupla Tony e Frankie. Jerry Adriani tem várias gravações bacanas salpicadas nos discos que lançou, como “Não Me Deixe Agora”, faixa de abertura do LP de 1975 na qual o cantor faz bem-sucedida incursão pela incipiente disco music (entre os músicos que tocam nessa faixa está o multi-instrumentista Robson Jorge, grande nome da soul music brasileira).

Infelizmente, o LP de 1970 não foi citado em nenhum texto sobre a morte de Jerry Adriani, nem mesmo por Marcelo Fróes, responsável pelo lançamento desse álbum e de outros da fase CBS do cantor em CD em 1998 e em 2000 (esses títulos sumiram de catálogo e hoje são vendidos por preços bem elevados nos sites de leilões e nos sebos). Na verdade, todos os álbuns que Jerry Adriani lançou nos anos setenta foram ignorados pelos necrológios. O máximo que alguns obituaristas fizeram foi mencionar Um Grande Amor, LP de 1965 em que o cantor passou a interpretar canções em português, e Forza Sempre, de 1999, CD no qual Jerry gravou versões em italiano de canções da Legião Urbana (com a bênção dos remanescentes da banda e com a participação de alguns parceiros musicais de Renato Russo, como Carlos Trilha). Forza Sempre vendeu cerca de duzentas mil cópias e mostrou que Jerry Adriani, com quase quatro décadas de carreira nas costas naquele momento, ainda era relevante, ainda tinha prestígio e talento.

Quase todos os álbuns de Jerry Adriani são considerados “cafonas” e desimportantes pela maioria dos jornalistas e pesquisadores que se dedicam à análise da música popular brasileira; por isso, foram ignorados nos textos que reportaram a morte do cantor. Os álbuns de Belchior receberam tratamento respeitoso nos necrológios do compositor cearense, mas os de Jerry Adriani, não. Sei que comparar a discografia de Jerry Adriani com a de Belchior é tarefa delicada, difícil e até indesejável. Eu jamais ousaria diminuir a contribuição musical de Jerry Adriani como fez Pedro Alexandre Sanches no livro Como dois e dois são cinco — Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa), que chamou pejorativamente o cantor jovem guardista e outros colegas dele (como Wanderley Cardoso e Leno) de “robertinhos”. Nada justifica o descaso em relação ao acervo fonográfico de Jerry Adriani, sobretudo por quem teve que encarar profissionalmente a tarefa de redigir o obituário do cantor. Faltou conhecimento prévio sobre a discografia de Jerry Adriani aos nossos “escribas musicais”, que certamente recorreram às informações fragmentadas e confusas do Google para resumir de modo insatisfatório o legado de um cantor popular que lançou mais de trinta álbuns em mais de cinquenta anos de carreira.

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zeca azevedo é produtor cultural e colecionador de discos.


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