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11 de maio de 2017
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10:00

Jorge Luis Borges e o pecado da dívida externa

Por
Sul 21
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Franklin Cunha

Quando perguntado por um jornalista, qual a origem da dívida externa dos países latino-americanos, J.L. Borges não vacilou: “É o catolicismo“. Diante da estupefação do entrevistador, explicou que somos produtos culturais da contrarreforma, da religião católica e portanto de seus sistemas de valores, de sua ética, os quais são baseados num princípio que tem como modelo típico a prática da confissão e perdão dos pecados. É eticamente incorreto o fato de que, infringidos os mandamentos e as leis divinas durante a semana, a confissão e a missa dos domingos possa nos absolver de tudo com uma leve pena e, ipso fato, nos autorizar a repetir as infrações da semana anterior, por mais graves que elas tenham sido. E, mais grave ainda, mesmo que tenhamos transgredido os mais sagrados preceitos religiosos em toda sua extensão e intensidade durante toda nossa vida, no último minuto, in extremis, tudo poderá ser apagado na contabilidade divina se nos alcançar o perdão de um clérigo pelo ritual da extrema-unção.

Essas práticas não existem entre os seguidores das religiões protestantes, filhas da Reforma luterana e que predominam entre os povos anglo-saxões dos países capitalistas, nossos eternos credores. Segundo a interpretação de Borges, os dirigentes dos países católicos da América Latina, estão constantemente tomando dinheiro dos banqueiros das nações protestantes com a secreta esperança de um dia serem perdoados.

Quando o jornalista argumentou que esse era apenas um aspeto da política econômica dos governantes da América Latina, Borges, argutamente lembrou-lhe que à época , na Europa a maior dívida externa era a da Polônia, casualmente um dos mais católicos entre os  países do continente.

O que Borges intuía – pois era um ficcionista e suas relações com a política eram “cerimoniosas e distantes“ e até equivocadas  – alguns historiadores afirmam, mas baseados principalmente em dados sociológicos, políticos, econômicos e mesmo psicológicos. Em resumo, as culturas dos colonizadores eram notavelmente diferentes. Mesmo que motivos estritamente econômicos possam determinar algumas importantes diferenças, não são eles suficientes para todas explicar e justificar. É impossível deixar de considerar a importância em nossa formação social e subjetiva de traços caraterísticos da cultura ibérica contrarreformista, como o culto da personalidade, o patriarcalismo, o sonho do enriquecimento lotérico sem custos pessoais sociais e éticos, o nepotismo, a conjunção entre o exercício delituoso e violento do poder e a impunidade costumeira, a ausência de culpa pelos diversos tipos de genocídio – desde o massacre de prisioneiros, de camponeses pobres, até a crueldade extensa e intensa das inamovíveis  mortalidades infantil e materna –fatores todos  associados à certeza de que tudo será perdoado pelo olvido. Enfim, delineou-se em nossa cultura um equador social baseado num estamento econômico acima do qual não existe pecado.

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Franklin Cunha é médico, membro da Academia Rio-Grandense de Letras (cadeira nº 9). Texto do livro “Deusas, Bruxas e Parteiras“, de Franklin Cunha. Editora Solivros, 1974, Porto Alegre.


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