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18 de janeiro de 2021
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19:03

O adeus da Ford

Por
Luís Gomes
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O adeus da Ford
O adeus da Ford
Ford anunciou o fechamento de suas três fábricas no Brasil | Foto: Divulgação

Flavio Fligenspan (*)

Sabe-se que os acidentes aéreos de grande proporção não se explicam por um único motivo, uma peça com defeito ou uma falha humana. Como os sistemas de controle dos aviões são muito complexos e plenos de checagens em diversos níveis, as tragédias só acontecem se muitas coisas falham de forma encadeada. Ou seja, é necessária uma sucessão de erros humanos e problemas nos componentes para um desfecho fatal.

Vale o mesmo para um acidente na área da economia, como no caso da Ford, que anunciou a interrupção de suas atividades de montagem de automóveis no Brasil, depois de mais de cem anos de atuação. Um único fator não explica a desistência, mas sim uma conjugação de aspectos negativos que envolvem a empresa, o setor automobilístico e o ambiente industrial brasileiro como um todo. Vou listar alguns destes fatores a seguir e dar a ênfase necessária no que me parece mais importante no final.

Um primeiro aspecto envolve as decisões da Ford em nível mundial, com a necessidade de se reinventar em função das mudanças tecnológicas e de mercado que estão chegando rapidamente. Um exemplo é o inevitável avanço para a produção de automóveis movidos a energia elétrica, em substituição aos combustíveis fósseis ou derivados de commodities primárias. Este novo ambiente vai exigir grandes investimentos da empresa, associados à reconfiguração espacial, o que nos remete para apostas no futuro, ou seja, apostas que dependem de estabilidade e confiança nos países que vão produzir e consumir esta nova geração de automóveis.

Desde o fechamento de sua fábrica de caminhões, no final de 2020, já havia ficado claro que a Ford não acreditava mais no Brasil e, pelo menos no espaço de alguns anos, preferia não manter vínculos fortes com o País — tema que será retomado no final. Vale lembrar que a Mercedes, embora com uma operação bem diferente, também desistiu do Brasil em 2020. Aliás, em cerca de vinte anos, esta foi a terceira vez que a Mercedes fechou unidades de produção no País, mostrando erros de planejamento da empresa.

Uma questão derivada da anterior ajuda a compreender a decisão da Ford. A nova forma mundial de organização da indústria automobilística vai exigir escalas de produção ainda maiores do que as anteriores, que já eram elevadas, e uma grande capacidade de integração às cadeias globais de valor. Novamente, aqui, tudo indica que a Ford não acreditou que o Brasil seria uma boa base para atender a estes requisitos. No que se refere à escala, parece que a empresa cansou de esperar o tamanho do mercado que pensava obter há anos, e pelo lado da produção, os vícios históricos de uma economia fechada não indicaram que a integração com parceiros estrangeiros poderia se dar da forma julgada necessária.

Quanto à projeção do tamanho do mercado brasileiro, a Ford errou sistematicamente desde o final dos anos 1990, mas neste caso deve-se dizer que o fez em companhia dos seus concorrentes. A confiança na expansão do mercado doméstico fez com que se gerasse uma capacidade de produção sempre muito à frente da demanda, ocasionando uma ociosidade nas plantas que se traduziu em custos insuportáveis. Observe-se que a capacidade atual de produção da indústria automobilística brasileira é de 5 milhões de unidades por ano, e o mercado interno absorve apenas pouco mais da metade. Para tornar o cenário mais difícil, houve uma constante frustração com a conquista de espaços no mercado internacional, principalmente pelo crescimento lento, quando não recuo, da demanda dos vizinhos latino americanos.

A saída da Ford deixará uma fatia de mercado de aproximadamente 7%, principalmente em carros de valor médio e baixo, que será rapidamente distribuída entre os rivais, destacando-se a Fiat, a VW e a GM. Isto vai ajudá-las a diminuir a ociosidade de suas plantas, reduzindo custos médios de produção, mas quase sem reflexo no nível de emprego. Isto porque é fácil acionar uma maior intensidade de plantas já instaladas, mas é possível fazê-lo quase exclusivamente com a mão de obra já contratada anteriormente.

Falando em empregos, chama atenção o anúncio da manutenção do centro de desenvolvimento na Bahia, com engenheiros brasileiros. Normalmente, quando uma montadora se instala no Brasil, logo solicita incentivos fiscais e promete em troca a criação de muitos empregos diretos na linha de montagem. Como se sabe, ainda que importantes e bem melhores que a média nacional, estes não são os melhores empregos da indústria automobilística. Os melhores empregos, de maior qualificação e mais altos salários, são os que precedem a produção (montagem), entre eles os ligados ao desenvolvimento de produtos, e os que se ocupam das tarefas pós-produção, como o marketing e o pós venda. Assim, no pacote da negociação da instalação os governos oferecem incentivos, mas tentam celebrar o compromisso com a criação de vagas nobres, pré e pós-produção.

Curiosamente, a Ford disse que vai descontinuar a produção, mas vai seguir com o desenvolvimento no Brasil, exatamente algumas das vagas de emprego mais qualificado. Além do reconhecimento da qualidade da engenharia nacional, algo que a GM já havia feito, se explica a opção da empresa pelo fato de que os engenheiros brasileiros trabalham por salários menores que seus colegas de outros países em que a empresa opera. É um fato a destacar, portanto, que, na saída da empresa, não foi necessário fazer nenhum apelo pela manutenção destes empregos qualificados, algo tão difícil de negociar nos momentos de instalação.

Sobre o que me parece mais importante, mais decisivo, para explicar a saída da Ford, há dois destaques a fazer. O primeiro: são conhecidos, por quem estuda a indústria automobilística brasileira, os erros estratégicos da empresa desde os anos 1980, quando da união com a VW, na chamada Autolatina. Desde o rompimento da aliança, quando a Ford perdeu sua identidade e ficou sem um mix adequado de produtos, até os momentos finais, a empresa nunca recuperou um portfólio com efetiva capacidade de disputar o mercado nacional, e constantemente perdeu participação no mercado.

Este fato levou à produção em escalas sempre aquém das ideais, resultando em ociosidade e custos elevados, uma combinação mortal para quem se propunha a disputar o mercado de automóveis de baixo/médio valor, em que as margens de lucro unitário são pequenas e a lucratividade depende muito da quantidade.

A opção pela manutenção da planta de produção de picapes na Argentina corrobora este ponto, já que esse produto funciona exatamente de forma oposta. Trata-se de um veículo de valor unitário bem mais alto, com características de diferenciação do produto em relação aos rivais – inclusive com um projeto de ampliação desta diferenciação logo a seguir – e que se viabiliza com escala de produção que não precisa ser tão grande, desde que conquiste mercados externos. Como a planta de picapes já estava instalada na Argentina e é rentável, a opção de mantê-la foi natural.

O segundo elemento que me parece decisivo para entender a saída da Ford foi a perda de confiança no futuro imediato da economia brasileira. Depois de amargar maus resultados e esperar um ambiente de negócios mais favorável por longos anos, a matriz finalmente “entregou os pontos”. O fechamento da filial marca a opção de desistir de esperar pelo crescimento da economia e a ampliação do mercado, de esperar pela estabilidade macroeconômica e de esperar pelas inúmeras melhorias sistêmicas que significariam redução de custos de produção. Desde 2015, a economia brasileira patina num ambiente de baixíssimo crescimento, produtividade estagnada e desorganização do marco político-institucional. Os episódios mais recentes, em especial a partir de 2019, só tornam o cenário ainda mais confuso e difícil de prever. Algumas empresas têm fôlego para trabalhar num ambiente desfavorável como este, instável e sem nenhuma garantia em relação ao futuro, outras simplesmente desistem. As que erram seu planejamento desistem ainda mais cedo.

(*) Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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