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14 de março de 2016
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10:59

Um livro para ler neste momento

Por
Sul 21
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Um livro para ler neste momento
Um livro para ler neste momento

Por Adeli Sell

Acabo de ler “O segredo de Yankclev Schmid”, de Júlio Ricardo da Rosa, da Dublinense.

Ao ler este romance me dei conta do quanto perdi em deixar de ler livros de literatura nos últimos tempos. Digo aos meus leitores que devem mesclar  leituras de livros técnicos, publicações científicas, textos de  estudo, com romances, contos e poesia.

Peço a amigos (as) que me indiquem bons autores nossos. Graças ao Beto Rodrigues – que me presenteou este livro  – tive acesso ao autor que lastimavelmente não conhecia.

Um livro para ler nesse momento, até para não esquecer a História.

A trama começa  num campo de concentração nazista, onde este jovem está prestes a ser assassinado, mas ele negocia com o  soldado nazista, Benno Metzger, sua vida, em troca de uma fortuna guardada na sua cidadezinha. O nazista é  salvo também, pois poderia ser preso pelos ingleses que estavam chegando. O judeu encontra a irmã  e a resgata.

Voltam a Neuss destruída, reencontram a casa e loja da família  destruídas. Com alimentos encontrados e outros negócios no “mercado paralelo” sobrevivem e começam a ganhar dinheiro para reconstruir a casa e loja; começam a negociar e prosperar.

Yankclev consegue ludibriar o nazista Metzger que vive ali com eles e quer o tesouro prometido,  colocando-o num trem,  para deixa-lo desacordado  na Alemanha Oriental, com a convicção de que “este” não voltaria jamais, pois ali os nazistas eram julgados e condenados.

Os dois irmãos salvos do campo de concentração,  agora livres do nazista, vão para a Argentina, com o tesouro que tinham guardado, o qual não era do conhecimento de Annia, a irmã de Yankclev.

Era na visão deles e do amigo que propagandeava os encantos da América uma Terra Prometida.

Ali instalados, com a ajuda, de uma rede de judeus, prosperam com o comércio de antiguidades.

Porém, num dia, Yankclev  se depara com um dos mais cruéis soldados da SS que vai à loja para comprar móveis antigos. Consegue avisar os amigos judeus que  tinham acabado de prender Eichmann, aquele que foi julgado em Israel e que dizia na descrição genial de Hanna Arend que “cumpria ordens”, o que me fez lembrar do jurista Carl Schmitt aquele que a partir da Constituição de Weimar construiu o arcabouço jurídico para os nazistas agir “dentro da lei”.

(Estas histórias e estas visões se repetem na História como tragédia.)

O nazista é preso, trazendo alivio para os irmãos judeus, mas não a paz.  Sempre ficava na cabeça dos sobreviventes do Holocausto aquela dúvida da volta, da aparição de algum nazista, como fora o caso.

Em Porto Alegre, se passa a segunda parte do romance de Júlio Ricardo da Rosa, pois os irmãos se mudam para a nossa capital.

 Muda o narrador. O autor deixa de narrar para entrar a figura de um voluntarioso médico socorrista, um amigo seu  que vira delegado, dois terroristas torturados numa DP de Porto Alegre.

 Estamos nos anos 70, duros anos de ditadura militar.

 Há tortura, torturadores e torturados  nos porões do regime. Assim como Eichmann e outros da SS nazista, aqui, também, eles  “cumpriam ordens”. A base também era a “Lei”.

 O médico salva dois presos torturados ao atender o apelo do amigo delegado. Reluta e contra seus princípios vai   à Delegacia,. O  delegado lhe fica  devendo  este favor. O delegado não concordava com o que fez Paulinho, o  agente e  torturador, que se vangloria de ser um “bom policial,  cumpridor de seu dever”.

Afora isso, tudo pareia sereno, com alguns medos de Yankclev e Annia que Benno Metzger pudesse reaparecer, como Otto Pohl tinha surgido na argentina, disfarçado de italiano.

 Ou seja, nazistas não deixam de sê-lo. E esta escória da humanidade como se vê no livro é cruel, está no seu DNA a maldade humana, se travestem mas não mudam, continuam sendo carrascos, assassinos frios.

Torturadores também não mudam, Eles existem. E vão continuar existindo. Sempre há justificativas para seus atos, normalmente “com base na lei”.

E o medo entranhou  corpos e mentes  dos sobreviventes  dos campos de concentração como daqueles  que sofreram torturas.

Porto Alegre dizia Idel é como Buenos Aires. E aí se vê que não é só o clima e alguns aspectos, mas lá havia nazistas e  aqui, também.

 O médico vira amigo de Yanckclev e Annia, principalmente depois da morte dos pais.

O nazista Benno Metzger, aquele que ficara “como certo e condenado na Alemanha Oriental” está vivo, vai em busca de informações, vai a  Buenos Aires e descobre que seu “inimigo judeu” está em Porto Alegre.  Chega até Diaz, um informante, aquele da dupla de ex-guerrilheiros salvos pelo médico. Vem decidido para buscar o tesouro e matar Yankclev.

O médico  descobre que é  traído pela esposa, a ex-guerrilheira salva por ele. Põe  um detetive a segui-la e ali que ao fim e a cabo descobre que ela está com o amante, com o alemão nazista, prestes a roubar o seu amigo judeu, Yanclev, para depois matá-lo.

O médico  pede ajuda ao delegado Flávio – a quem prestara aquele favor de salvar os guerrilheiros. 

Como o  médico e a esposa frequentavam a casa dos irmãos Yankclev e Annia tem informações precisas para poder praticar o crime.

O médico e o delegado conseguem pegar os três em ação, sendo que o informante-amante é morto junto com o nazista.

Caberia também uma  análise dos casos de amor do médico pela guerrilheira que havia virado prostituta e do judeu com a vizinha alemã, Lori, morta jovem pela doença, deixando todos os seus bens a ele. Isto ficará para uma análise posterior.

Saliento, porém, que são personagens prenhes de sentidos, de densidade, seja por atitudes ou seja pelos silêncios.

Ao final, parece que a ordem fica restabelecida.

Parece…  a guerrilheira vira  “refém” do médico e o tesouro que ia ser roubado não se sabe se existia ou não, e o segredo de Iankclev Schmid permanece intacto.

Um livro bem escrito, com linguagem clara e precisa. Um daqueles livros que você não quer parar de ler.

 O enredo tem enlaces e desenlaces. A mudança de narrador foi uma sacada exemplar.

 O tema é mais do que atual. Por isso, é um livro para se ler no momento.

Ficam inúmeras lições.  Que este livro seja lido e debatido, pois tem história, enredo, profundidade psicológica da desgraça da alma humana, como tem apontamentos de sonhos e busca de liberdade.

Pena que os espaços de debates literários sejam tão restritos, que os espaços de mídia para tal não existirem praticamente.

E  a gente ai lendo…e vivendo!

.oOo.

Adeli Sell é professor, escritor e consultor.


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