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23 de agosto de 2012
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09:03

Irresponsabilidade social

Por
Sul 21
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A muito lembrada afirmação de Nelson Rodrigues de que toda unanimidade é burra bem serve para introduzir um debate sobre a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal, uma norma sempre aplaudida como um grande avanço da política nacional. Vendida por seus defensores como o remédio necessário para curar o Brasil do mal que lhe era afligido por políticos perdulários, a LRF foi votada pelo Congresso Nacional como coroamento das reformas empreendidas, principalmente nos governos de Collor e FHC. Então s efalava da necessidade de extirpar a doença populista embutida na Constituição de 1988 e terminar de resgatar o país do legado de Getúlio Vargas e do desenvolvimentismo. Seus proponentes queriam desfazer o reconhecimento pela Assembleia Constituinte de direitos sociais do povo e a obrigação do Estado em garanti-los, inclusive com reserva de parcelas de sua renda que foram vinculadas à saúde, à previdência, à assistência social, à educação e assim por diante.

Depois das dezenas de emendas que descaracterizaram em muito a Constituição, a LRF foi editada para servir como trava a impedir a reversão da redução de direitos e a promoção dos interesses financeiros feita pelas reformas. Ao impor uma série de novas obrigações para os administradores públicos sob a aparência democrática da limitação legal e da transparência, a nova lei subverteu por completo a hierarquia dos deveres do Estado, criando um privilégio exorbitante para os financiadores do endividamento público. Foram instituídos limites e condicionantes para todas as despesas com exceção dos pagamentos aos credores da dívida. Nesse item, e não por acaso, as limitações previstas são relativas apenas ao montante, e não ao pagamento de seus custos em favor do sistema financeiro.

Já o tratamento às demais despesas, e em especial às despesas com pessoal, foi o de impor limites ao se fluxo, sempre condicionados a percentuais da receita. Ao mesmo tempo, os entes federados, estados e municípios, tiveram reduzida sua autonomia de financiamento e gasto, agora submetida a controles por parte do Congresso Nacional vinculados à iniciativa da Presidência da República. Da mesma forma, foi tolhida a possibilidade de cooperação para a prestação de serviços em parceria com a proibição de financiamento entre as esferas de governo, preservando-se as dívidas anteriores, que amarraram todos os estados e muitos municípios à obrigação de enormes pagamentos para a União.

Não é de surpreender, nessa circunstância, a existência de escolas ou hospitais novos sem funcionamento porque não é possível contratar médicos ou professores. Nesse caso, o limite para gasto com pessoal mostra toda sua perversidade, pois os serviços mais demandados, como segurança, educação ou saúde, só podem existir pela relação direta dos servidores que os prestam com o público atendido.

E por que desobrigar o Estado de seus compromissos com a maioria da população, ainda carente de direitos que são universalmente considerados inerentes a toda a raça humana, condição básica da cidadania, e criar essa circunstância de irresponsabilidade social? Na verdade, o que se estava vendendo como “moderno” era uma mudança radical dos compromissos da administração pública e a ideia de que essa mudança era necessária para assegurar a prosperidade da nação e de seu povo. Quantas vezes ouvimos de meus colegas economistas a pregação sobre a urgência das “reformas” e a necessidade de “fazer a lição de casa”?

Essa mobilização reformista era o modo de ingresso um pouco tardio do Brasil na globalização neoliberal. O processo iniciara entre as potências do capitalismo mundial, EUA à frente, entre 1979 e 1981, com o choque da elevação dos juros e a desregulação da economia, embora tenha tido um laboratório no Chile desde o golpe de 1973. Seu sentido foi o de uma verdadeira vingança do capital contra o trabalho. Sob o pretexto de que era necessário libertar a criatividade dos “mercados” para superar a crise econômica de então, uma série de medidas que reduziram direitos trabalhistas, cortaram impostos e desbloquearam ou criaram novas oportunidades de negócio foram tomadas. Seu resultado objetivo era reduzir os custos do trabalho e do governo para as empresas, propiciando um aumento da taxa de lucro.

Especificamente em relação ao Estado, as reformas reduziram os impostos dos ricos e, também, os gastos com os pobres. Menos tributação sobre a renda e os lucros, menor gasto com previdência, saúde e educação, acompanharam uma elevação muito grande dos pagamentos de juros da dívida pública e um também grande aumento do endividamento das famílias, em razão dos juros elevados. Isso combinado com flexibilização da legislação trabalhista e ataques aos sindicatos. Resultado, piora na distribuição dos rendimentos.

Furiosamente contra o Estado, o neoliberalismo foi, na verdade, promovido por este ao mudar sua relação econômica com o setor privado, redistribuindo renda em seu favor, ampliando o endividamento público, fomentando a expansão das grandes empresas e, principalmente, dos bancos e demais instituições financeiras, e combatendo seus oponentes, a começar pela classe trabalhadora dos países desenvolvidos, mas também camponeses, classes médias, países da periferia e movimentos sociais. A difusão do neoliberalismo pelo mundo se deu por meio da pressão política exercida pelo governo dos EUA – secundado por organismos multilaterais como o FMI, e contando com a adesão da União Europeia – e pela pressão econômica da grande finança internacionalizada sobre as dívidas e as contas externas dos países. Uma após outra, quase todas as nações do globo acabaram por adotar o receituário de reformas e políticas favoráveis aos interesses desse movimento, que é a essência da globalização. Mesmo após a crise por eles provocada, essa coalizão poderosa permanece dando as cartas, basta olhar para a Grécia.

O único lugar do mundo em que essas forças políticas perderam poder é a América do Sul. Desde a virada do século, desenvolvimento econômico, criação de emprego, aumento salarial, distribuição de renda, ampliação das políticas sociais e revitalização da ação do Estado são a nova pauta dos governos progressistas que administram os mais importantes países da região. A melhora da situação social, com aumento de renda e redução da pobreza, é o mais evidente resultado desse movimento. Entretanto, isso só foi possível pela conquista de autonomia frente ao poder mundial das finanças em razão da redução da dívida externa e do aumento das exportações, que melhoraram o resultado do balanço de pagamentos de todas as nações sul-americanas. Mas essa não é uma situação dada. Dependendo dos desdobramentos da crise nos países ricos, há risco de retrocesso nessas conquistas.

Luiz Augusto E. Faria é Economista da FEE e Professor da UFRGS.


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