Meio Ambiente
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29 de maio de 2024
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17:51

Governo Leite propõe diretrizes que fragilizam proteção e preservação ambiental do litoral norte

Por
Luciano Velleda
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Uma das polêmicas mudanças foi o corte da diretriz que mantinha a distância mínima de 60 metros entre as dunas e as construções à beira-mar. Foto: Prefeitura de Xangri-lá/Divulgação
Uma das polêmicas mudanças foi o corte da diretriz que mantinha a distância mínima de 60 metros entre as dunas e as construções à beira-mar. Foto: Prefeitura de Xangri-lá/Divulgação

Poucos dias antes do início das fortes chuvas que se transformaram na maior catástrofe climática do estado, o governo de Eduardo Leite (PSDB) colocou em consulta pública o documento “Minuta das Diretrizes Ambientais para os Municípios do Litoral Norte do Rio Grande do Sul”. O material, disponibilizado no site da Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) no dia 23 de abril, logo causou incomodo num grupo de técnicos da secretaria e da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam).

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Isso porque o documento é a segunda versão de outro concluído em 2022, porém com uma séria de alterações que flexibilizam e afrouxam a proteção e a preservação ambiental do litoral norte. Revoltados, os servidores pediram para terem seus nomes retirados da nova versão, sob a justificativa do estudo não corresponder às bases técnicas consideradas mínimas para garantir o desenvolvimento sustentável do litoral norte.

Nos dias seguintes, com o avanço da enchente e o caos tomando conta do RS, o governo estadual tirou o documento de consulta pública.

Entre as principais diferenças da primeira e da segunda versão das diretrizes ambientais para os 18 municípios da região estão o corte de todas as metas que haviam sido previstas para cada uma das 10 zonas agrupadas no estudo. As metas estabeleciam resultados a serem alcançados no ordenamento territorial e na qualidade ambiental, visando combinar o desenvolvimento econômico com a proteção dos recursos naturais (confira algumas metas cortadas mais abaixo).

Outra grande diferença ocorreu na zona 2, denominada “Ambiente litorâneo praial”. No primeiro documento havia a diretriz de manter 60 metros de distância entre novas edificações e o começo das dunas na beira-mar, chamadas tecnicamente de “base continental (sotavento) do cordão de dunas frontais”. A diretriz foi suprimida e, em seu lugar, a nova redação diz que as dunas devem ser preservadas e conservadas conforme estabelece o novo Código Ambiental do RS (mudado pelo governo Leite) e o Código Florestal Brasileiro, além de transferir para os municípios do litoral norte a possibilidade de estabelecerem em seus planos diretores os “regramentos que compatibilizem a conservação das dunas frontais com as realidades e/ou necessidades locais, os quais poderão prever uma área adicional de proteção da base continental (sotavento) do cordão de dunas frontais até novas edificações”.

“Algumas das metas foram puxadas para dentro das diretrizes, houve um remanejo, mas muito resumido. E as metas para cada uma das zonas foram retiradas”, explica Glaucus Vinicius Biasetto Ribeiro, geólogo, analista concursado da Fepam e integrante do Grupo de Trabalho que realizou a primeira versão do estudo.

Ele critica a alteração de diretrizes ambientais consideradas pelo grupo de técnicos como fundamentais para a manutenção dos serviços ecossistêmicos no litoral norte. É o caso, por exemplo, da não ocupação de 60 metros entre o começo das dunas na beira da praia e a área urbana, impedindo a construção de muros e outras edificações.

“Na origem, no ano 2000, isso foi para evitar o sombreamento da zona de praia, só que agora, depois de 20 anos, incluímos que mantém a dispersão eólica numa área de 60 metros, deixa que a água da chuva percorra livremente para o aquífero e se mantém a garantia da faixa de dunas como manutenção desse ambiente natural perante a maior quantidade de eventos climáticos extremos que estão ocorrendo”, defende.

Ribeiro não tem dúvidas de que as alterações realizadas fragilizam a proteção e a preservação ambiental do litoral norte e a adaptação da região diante das mudanças climáticas. “Elas (as mudanças) estão dentro dessa sequência de eventos que fragilizam a questão ambiental no estado”, avalia o geólogo da Fepam, fazendo referência a outras decisões semelhantes adotadas pelo governo Leite na legislação ambiental do RS e muito criticadas por diminuírem a proteção do meio ambiente.

A enchente que devastou o Rio Grande do Sul colocou sob interesse da mídia nacional as medidas adotadas por Leite na temática ambiental desde 2019, ano do início do seu primeiro mandato. O governador tem sido criticado pelas quase 500 alterações no Código Estadual do Meio Ambiente, pela flexibilização na lei de agrotóxicos (que permitiu comercializar no RS agrotóxicos proibidos no país de origem), por quadruplicar a área da silvicultura no estado, permitir a criação de barragens e açudes em Áreas de Preservação Permanente (APP), não cumprir os 20% de reserva legal nos biomas Pampa e Mata Atlântica, entre outras questões. Em sua defesa, entretanto, Leite tem dito que escuta a ciência e os especialistas, e refutado a pecha de negacionista do clima.

A distância mínima de 60 metros entre as dunas e edificações foi cortada na nova versão do documento. Arte: Matheus Leal/Sul21

As diretrizes ambientais para os municípios do litoral norte foram publicadas pela Fepam no ano 2000, um trabalho inédito na ocasião. Em 2020, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) e a Fepam decidiram atualizar o estudo, que dividia o litoral norte em zonas com características ambientais e propostas de ocupação e conhecimento do território.

Para realizar a atualização das diretrizes foi então criado um grupo de trabalho técnico com servidores dos dois órgãos. Diversas modificações foram feitas e o trabalho concluído em 2022. No mesmo ano, o documento foi colocado duas vezes em consulta pública, em junho e em novembro, porém em ambas retirado antes do término do prazo estabelecido no Diário Oficial.

“Não se sabe exatamente porque foi interrompido”, diz o geólogo Glaucus Ribeiro. “As próprias contribuições, como a consulta foi interrompida antes do prazo, não chegaram a vir pro grupo pra avaliação.”

Então, em 2024, o trabalho ressurgiu, agora elaborado por uma nova equipe definida pela Sema. Ribeiro explica que o grupo técnico comparou o material com o original e decidiu se manifestar ao não reconhecer o novo trabalho em relação àquele finalizado em 2022. “Não é o nosso trabalho e as alterações depõem contra o que foi proposto lá no início”, afirma.

Ao se analisar a nova versão, percebe-se que os cortes, alterações e inclusões têm a finalidade de afrouxar o rigor ambiental e incluir o viés econômico. A mudança, por vezes, é sutil. Na definição das diretrizes específicas para cada área, o texto original dizia: “Ações estratégicas (preventivas, de controle e corretivas) que regulam as formas de uso e ocupação do território em cada zona. São regras quanto aos usos permitidos, proibidos ou estipulados, abrangendo as interações entre as faixas terrestre e marítima da zona costeira.”

Na nova versão, a definição das diretrizes específicas cortou as palavras “preventivas, de controle e corretivas”, mudou “regulam” por “orientam” e trocou “regras” por “recomendações”, além de acrescentar o objetivo do desenvolvimento econômico. Ficou assim: “Ações estratégicas que orientam as formas de uso e ocupação do território em cada área, objetivando compatibilizar o desenvolvimento econômico com a proteção dos recursos naturais. São recomendações quanto aos usos, abrangendo as interações entre as faixas terrestre e marítima da zona costeira.”

Partes de Torres se inserem na zona 1, como “Ambiente Litorâneo Natural Remanescente”, e teve várias metas cortadas. Foto: Patrícia Morales/Pixabay

Na opinião do geólogo Glaucus Ribeiro, um dos autores da primeira versão do trabalho, retirar as metas tem como consequência deixar descobertas questões de caráter ambiental e da integração e ocupação antrópica (realizada pelo ser humano) do litoral norte. “Temos que conhecer nosso território. Esse é um instrumento de conhecimento do território e que pretende ajudar as gestões, mas se há uma ou outra questão que vá contra o crescimento econômico, o que a gente vai fazer?”, questiona.

Ele pondera que algumas questões poderiam ter sido conversadas com a equipe técnica e que talvez fosse possível fazer adaptações. Esse diálogo, no entanto, não aconteceu. “Isso não foi feito, foi cortado e publicado. Por isso não demos nosso aval, entendemos que não é o mesmo produto.”

O geólogo diz reconhecer a importância do desenvolvimento econômico dos municípios do litoral norte, todavia, defende que a lógica seja invertida, de modo que o meio ambiente dê sustentabilidade para o desenvolvimento. “Temos que conhecer nossos territórios, saber como eles operam, como funcionam e, a partir daí, procurar fazer a ocupação da melhor forma possível”, afirma.

O servidor da Fepam explica que os zoneamentos (ou diretrizes) são instrumentos de gestão, mapeamentos feitos numa escala específica com o objetivo de aumentar o nível de conhecimento de determinada região. No passo seguinte, os municípios podem fazer seus próprios zoneamentos e planos diretores tendo o outro como referencial. Neste caso, podem ser mais restritivos e não menos.

“Esses eventos que estão acontecendo agora nos levam a uma mudança de paradigma dos nossos territórios. Temos que buscar a mudança de compreensão de como ocupar os nossos territórios. Ao invés de sair deslavadamente fazendo empreendimentos ‘maravilhosos e lindos’, temos que primeiro entender onde estamos e como funciona a natureza naquele local. Os eventos extremos estão com uma ocorrência muito mais rápida e, se não levarmos isso em conta, vai ser tragédia em cima de tragédia. E o custo econômico vai ser muito maior, como já está sendo.”

A primeira publicação das diretrizes ambientais para o litoral norte ocorreu no ano 2000 e ainda está em vigor. Na ocasião, o trabalho foi resultado do Programa de Gerenciamento Costeiro, visando o desenvolvimento compatível com a fragilidade dos ambientes costeiros. Entre 2020 e 2022, o trabalho de atualização das Diretrizes Ambientais para o Desenvolvimento do Litoral Norte compreendeu pelo menos 60 reuniões, envolveu 18 Prefeituras, o Comitê Tramandaí e universidades. De acordo com os autores, o trabalho teve o cuidado de emitir diretrizes inseridas no contexto atual de mudanças climáticas, que tem reflexos diretos no Litoral”.

O litoral norte foi então dividido em 10 zonas, com metas específicas para cada uma. As zonas são: Ambiente Litorâneo Natural Remanescente; Ambiente Litorâneo Praial; Ambiente Litorâneo Interno de Transição; Planície Costeira Interna; Escarpa do Planalto; Lagoas Litorâneas Interligadas e Áreas Úmidas Associadas; Lagoas Isoladas do Norte e Áreas Úmidas Associadas; Coxilha das Lombas; Patamares de Santo Antônio da Patrulha; e Oceano.

Vsta do Mirante da Borussia, em Osório, enquadrada no trabalho como as “escarpas do planalto”. Foto: Wikipedia Commons/Reprodução

Nas diretrizes gerais do documento, a primeira mudança ocorre já no primeiro tópico. Ao invés de “Controlar a atividade de silvicultura de acordo com o Zoneamento Ambiental da Silvicultura (ZAS)”, o verbo “controlar” foi substituído por “adequar”.

No tópico 4, ao invés de “Não permitir a instalação de linhas de transmissão em corredores ecológicos legalmente instituídos…”, a palavra “não permitir” foi trocada por “evitar”.

Já o tópico 6, sobre a criação de novas unidades de conservação, chama mais atenção. A diretriz falava em “Respeitar a integridade das áreas com processo de criação em unidades de conservação formalizado nos órgãos competentes, evitando assim inviabilizar o processo”, seja em área estadual ou municipal. O tópico foi todo cortado na nova versão do documento.

Como exemplo, confira as metas cortadas e diretrizes alteradas na zona 1 do litoral norte, definida no documento original de 2022:

Zona 1 – Ambiente Litorâneo Natural Remanescente

Metas cortadas: Conservar e valorizar o patrimônio paisagístico; manter os corredores de alimentação eólica dos campos de dunas remanescentes; manter e recuperar os habitats da fauna e da flora ameaçada de extinção, promovendo ações para o controle da ocupação destes ambientes; e fortalecer o turismo ecológico.

Entre as diretrizes, o tópico 1.4 dizia: “Garantir o padrão de drenagem natural”. Foi mudado para: “Conservar o padrão de drenagem natural, sendo sua modificação admitida perante autorização do órgão ambiental competente”.

O tópico 1.6 estabelecia: “Não permitir atividades e obras de infraestrutura que interrompam a sequência natural e a paisagem característica do ambiente litorâneo”. A diretriz, na nova redação, ficou assim: “Atividades e obras de infraestrutura que interrompam a sequência natural e a paisagem característica do ambiente litorâneo poderão ser permitidas mediante o Licenciamento Ambiental”.

A diretriz 1.7 dizia simplesmente: “Não permitir a mineração”. Foi alterada para: “Atividades minerárias poderão ser permitidas mediante o Licenciamento Ambiental.

Em nota, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) diz que as Diretrizes Ambientais para o Desenvolvimento dos Municípios do Litoral Norte do Rio Grande do Sul datam de 2000 e, em 2019, o governo recebeu a reivindicação dos próprios municípios sobre a necessidade de atualização do documento.

“Após uma série de reuniões e recebimento de sugestões tanto das prefeituras, quanto da Fundação Ambiental de Proteção Ambiental (Fepam), chegou-se a uma primeira minuta. No ano de 2022, o documento foi colocado em consulta pública, que foi suspensa por ter sido identificada a necessidade de ampliação das discussões técnicas entre a Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura – órgão formulador de políticas públicas – e a Fepam – órgão executor e fiscalizador”, explica.

A Secretaria afirma que todas as sugestões recebidas “foram levadas em consideração e revisadas pelo corpo técnico, que adequou o texto à realidade, prevendo a proteção e compatibilizada com o desenvolvimento sustentável”. Entretanto, o órgão não detalha quem fez parte desse corpo técnico, considerando que os autores do primeiro documento afirmam não terem analisado quaisquer sugestões e pediram para terem seus nomes retirados da segunda versão justamente por não concordarem com as mudanças.

“No que tange às dunas, o item está alinhado com o Código Florestal (Lei federal 12.651/2012), que prevê a sua proteção. A partir disso, a diretriz remeteu a definição do perímetro de preservação conforme a realidade de cada município. Após as revisões, no ano de 2024 uma nova consulta pública foi colocada no ar no mês de abril, no entanto, foi forçadamente interrompida devido ao estado de calamidade pública provocado pela enchente e desligamento de sistemas do Estado, como o site da Sema. Para que não haja prejuízo ao processo democrático, tão logo os sistemas sejam totalmente restabelecidos, a consulta pública será reaberta”, conclui.


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