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11 de maio de 2024
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14:19

Em processo de sucateamento, governo Melo retém R$ 400 milhões no caixa do Dmae

Por
Luciano Velleda
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Autarquia tem hoje menos da metade dos servidores que tinha há 17 anos. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Autarquia tem hoje menos da metade dos servidores que tinha há 17 anos. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

A torneira que abre e nada pinga. As ruas inundadas pela maior enchente já vista na capital dos gaúchos. Desde que as águas do Guaíba avançaram sobre Porto Alegre e a privação de um serviço essencial se impôs sobre a população, as atenções se voltaram para as Estações de Tratamento de Água (ETA) e para as Estações de Bombeamento de Água Bruta (EBABs), provavelmente, como nunca antes. Entre tantos aspectos, a maior tragédia climática da cidade colocou em evidência a importância do trabalho realizado pelo Departamento Municipal de Água e Esgoto (Dmae). A autarquia é responsável por três dos quatro eixos do saneamento básico – abastecimento de água, esgotamento sanitário e drenagem urbana. 

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A enchente histórica fez emergir também um tema denunciado há tempos por políticos e funcionários do Dmae: a falta de planejamento e de investimentos em obras e recursos humanos durante os governos de Nelson Marchezan Júnior (PSDB) e de Sebastião Melo (MDB). Há o entendimento de que o deliberado sucateamento do órgão agora contribui para o colapso dos sistemas de abastecimento de água da cidade.

Uma das principais queixas de funcionários do Dmae com o prefeito Sebastião Melo é a retenção de cerca de R$ 400 milhões do caixa da autarquia. Em 2015, o valor estava em R$ 141 milhões e, desde então, os governos Marchezan e agora Melo continuam acumulando recursos que deveriam ser revertidos em investimentos.

De R$ 239,72 milhões investidos em 2012, o valor caiu para R$ 136,87 milhões em 2022. Nesse período, em esgoto, a queda no investimento foi de R$ 156,7 milhões para R$ 13 milhões dez anos depois. Em esgoto pluvial, a redução foi de R$ 24,3 milhões em 2022 para R$ 11,5 milhões em 2022, uma queda de 50%.

“Por que isso?”, questiona a engenheira civil Sandra Darui, atualmente coordenadora do Conselho de Representantes Sindicais do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Cores/Dmae). “Uma das metas do Dmae é investir 15% da receita e não está fazendo isso há muitos anos. O caixa do Dmae sempre foi para fazer melhoria no saneamento público. É um órgão que tem que reinvestir o que ele pegou na tarifa, na melhoria dos serviços públicos, na melhoria do esgotamento, da captação e da drenagem, e isso não foi feito.” Ela enfatiza que os investimentos diminuíram em todas as áreas, principalmente na drenagem e no esgotamento sanitário.

Sandra acredita que se ainda houvesse o antigo DEP, a manutenção, planejamento e operação da rede de abastecimento de Porto Alegre teria sido aprimorada com os devidos reparos. O problema central, diz ela, são as funções do DEP terem sido transferidas para o Dmae sem a expertise da equipe do antigo departamento. 

“Nós não ficamos com a expertise do processo. As pessoas vão se aposentando e não entra ninguém no lugar. Estamos perdendo a capacidade técnica do Dmae. A falta de reposição do quadro técnico é que está causando isso. As pessoas saem e não têm oportunidade de passar para outra o conhecimento. Assim a gente vai perdendo a capacidade de atender e de planejar”, explica. “Não estamos investindo e eles fizeram isso de forma proposital. A direção geral do Dmae e o prefeito ficaram o ano passado inteiro sustentando o discurso da concessão.”

Outro elemento são as receitas. O Conselho de Representantes Sindicais do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Cores/Dmae) avalia que as receitas deveriam estar aumentando, pois o número de economias cadastradas eram de 622 mil em 2011 e passaram a ser 736 mil em 2021. Entretanto, as receitas diminuíram nos últimos 10 anos. Para o Cores/Dmae, tal redução é consequência da política tarifária do órgão que não acompanhou os índices de reajustes oficiais e pela falta de efetivo de servidores na área comercial para fazer fiscalizações necessárias, autuações de infrações, corte de economias inadimplentes e atualização cadastral dos imóveis.    

Ainda no capítulo do sufocamento financeiro, o Cores/Dmae ressalta que apesar da autarquia ter sido selecionada, em 2019, pelo Ministério das Cidades para obter financiamento de R$ 40 milhões destinado à contratação de operações de crédito para execução de ações de saneamento básico, o governo Marchezan e a direção geral do Dmae desistiram dos recursos. O valor seria direcionado para ações de redução e controle de perdas de Porto Alegre, que poderia auxiliar principalmente os sistemas de abastecimento de água das zonas Leste e Extremo Sul da Capital, regiões com problemas frequentes. 

O órgão também deixou de captar recursos para projetos e obras de esgotamento sanitário na Zona Norte, em 2019, porque novamente o governo Marchezan e a direção geral do Dmae desistiram da contratação de R$ 143 milhões em financiamentos, apesar da autarquia ter sido selecionado no Programa Avançar Cidades. No caso da Zona Norte, agora duramente afetada pela enchente, além das desistências de captação de recursos para obras, houve a renúncia ao financiamento da Caixa Econômica Federal para obtenção de R$ 7,5 milhões em Estudos e Projetos para Esgotamento Sanitário do SES Navegantes.

Mais recentemente, em 2023, o BNDES criou linhas de crédito de R$ 30 bilhões com foco em saneamento público, mobilidade urbana, recursos hídricos, segurança pública, saúde, educação e conectividade. Até o momento, o governo Melo não manifestou publicamente o interesse em buscar o financiamento.

Além dos investimentos, a força humana de trabalho é outro ponto de crítica. O último grande concurso do Dmae foi em 2014. Em 2007, a autarquia tinha 2.493 funcionários. Em 2024, esse número é em torno de 1.050, uma redução em mais de 50%, sendo que a cidade não diminuiu nesse período, pelo contrário. Em 2022, um pedido de contratação emergencial de 400 funcionários foi negado por Melo, cujo esforço político estava concentrado em conquistar apoio para a privatização do órgão. Em julho de 2023, com dificuldade para ir adiante na intenção privatista, o prefeito autorizou a criação do novo concurso, porém, a seleção ainda não foi realizada. O concurso é para apenas 33 vagas, embora os funcionários peçam a contratação urgente de 400 servidores desde 2022. 

“Não tem como a gente dar conta da demanda”, lamenta Sandra, que é ex-gerente de logística da Diretoria de Operações. Para ela, o desmonte da estrutura de pessoal e o sucateamento do Dmae desde o governo Marchezan é uma ação proposital que afeta todas as diretorias e áreas da empresa. 

Artigo publicado em 2023 por membros do Conselho de Representantes Sindicais do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Cores/Dmae) denunciou a perda da autonomia administrativa, financeira e econômica da autarquia. O resultado seria a redução da capacidade técnica e operacional do órgão para a prestação dos serviços – agora melhor compreendidos como fundamentais pela população. Além da redução no quadro de funcionários, o artigo aponta também a falta de planejamento com visão do futuro da autarquia e a proposital falta de investimentos em expansão e melhorias.

A redução dos recursos humanos impacta diretamente no atendimento dos serviços, causando aumento do tempo para a solução de problemas. Em 2017, a meta de atendimento de serviços operacionais como consertos de fugas de água e desobstruções de esgotos, era de 24 horas. Desde 2018, esse tempo passou para 36 horas. 

A ex-gerente de logística da Diretoria de Operações chama atenção para um ponto que não costuma estar aos olhos da população. A falta de servidores concursados têm levado à ampliação de funcionários terceirizados em determinados serviços, com alta rotatividade de trabalhadores e perda de competência técnica, o que acaba por impactar o trabalho realizado. Sandra destaca haver, inclusive, falta de servidores para fiscalizar a execução dos contratos: o resultado é a incapacidade de conferir a real necessidade da execução de determinados serviços e obras, além de sua efetiva realização.

As contratações temporárias, ela explica, também têm problemas: muitas vezes, quando o funcionário já está treinado, o contrato é finalizado. Quando isso ocorre com servidores efetivos e a reposição não é feita logo, o resultado é a perda da capacidade técnica associada à expertise. E assim o conhecimento sobre o sistema de águas de Porto Alegre vai pelo ralo.

No último dia 4 de março, a Diretoria de Controle e Fiscalização do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (TCE-RS) divulgou o resultado de uma auditoria que analisou a ingerência não regular no Dmae, entre 2017 e 2021, pela gestão do ex-prefeito Marchezan. A auditoria apontou que o governo Marchezan interferiu para impedir a contratação de servidores que eram necessários para a prestação do serviço de água e esgoto da cidade, causando prejuízos à operação da autarquia de, no mínimo, R$ 85 milhões.

A auditoria apontou irregularidades que incluem a interferência na autonomia da gestão administrativa do Dmae; uso de argumentação não factual de restrição orçamentária para impedir reposição de pessoal; atuação do Comitê para Gestão de Despesa de Pessoal (CGDEP) no sentido de procrastinar a recomposição de pessoal no Dmae; e existência de nexo entre prejuízos assumidos pelo Dmae e a não recomposição do quadro de pessoal.

O trabalho concluiu que a interferência para vedar a recomposição dos quadros produziu danos ao Dmae que resultaram em prejuízos operacionais e perdas de faturamento. “Problemas operacionais e perdas incrementais de faturamento da Autarquia estimados entre os anos de 2016 e 2019 na ordem de R$ 45 milhões e suspensão de prêmio desempenho de tratamento de esgoto, para os quais o Chefe do Poder Executivo e os membros da CGDEP devem responsabilidade [recursos no montante de R$ 45 milhões]”, diz o documento.

Dias depois, o Conselho de Representantes Sindicais no Dmae do Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (Simpa Cores-Dmae) pontuou que já vinha alertando há anos sobre os problemas causados pela falta de servidores.

“O resultado do relatório da auditoria do TCE vem corroborar o que o Simpa Cores-Dmae há mais de 7 anos vem denunciando, que é o processo de precarização, falta de pessoal e de investimentos proposital a que o Dmae está sendo submetido pela segunda gestão municipal consecutiva. Na prática o resultado dessa precarização é a gestão temerária atual do Dmae com prejuízo ao atendimento da população. A culpa não é dos servidores e sim ao tipo de gestão privatista a qual o Dmae está sendo submetido. Como explicar que o Dmae, com mais de R$ 400 milhões em caixa, está sofrendo com a falta de servidores, investimentos, dificuldades de materiais e equipamentos, atendimento ao público e planejamento para o futuro?”, disse a manifestação.

De acordo com dados do Portal da Transparência de Porto Alegre, o DMAE tem 3.632 cargos, dos quais apenas 1.070 estavam preenchidos em janeiro, o que significa que 2.562 cargos estão vagos, entre servidores, comissionados, celetistas, adidos, estagiários e cedidos. Em 2007, o DMAE chegou a ter cerca quase de 2,5 mil servidores.

O roteiro da denúncia de precarização do serviço de água em Porto Alegre tem como capítulo crucial a extinção do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), em 2019, durante o governo Marchezan. Antes dessa data, todavia, o departamento já existia em condições difíceis e algumas tarefas haviam sido incorporadas pelo Dmae. “O DEP foi sendo estrangulado. Em 2017 e 2018, ele já não atuava mais em praticamente nada. Então quando veio para o Dmae, além do que a gente já tinha para fazer com nossa defasagem enorme, ainda vieram 12 mil protocolos para serem cumpridos que a gente não sabia nem a situação deles”, recorda Sandra Darui.

Ela conta que uma estrutura foi montada no Dmae para atender as obrigações do modo possível, junto com 58 pessoas que migraram do DEP na época. A primeira leva foi composta pela área de Operação e Manutenção do Sistema de Drenagem e Proteção contra Cheias. “Só vieram essas pessoas no início e nunca se contratou ninguém a mais do que isso”, afirma.

Sandra diz que 90% do serviço do DEP era terceirizado, incluindo a manutenção e os cuidados nas casas de bombas. “Terceirizado é assim né… se dá errado e ele sai, quem tem que consertar depois é a equipe do Dmae. E foi o que a gente viu nos últimos dias, quem está assumindo tudo é a equipe do Dmae”, sustenta.

Em 2021, já no governo Melo, houve a transferência para o Dmae das funções de planejamento, execução de obras e contratação de projetos do DEP. A mudança, entretanto, foi pela metade, com parte dos serviços ficando sob responsabilidade das secretarias municipais de Serviços Urbanos e de Obras e Infraestrutura. Nesse processo, os técnicos do DEP se espalharam e não foram alocados no Dmae.

“Não tem gente capacitada para fazer isso. Na época do DEP tinha toda uma estrutura, tinha umas 200 pessoas, depois vieram 58, depois mais umas 20 pessoas, entre engenheiros e o pessoal de planejamento e obras”, diz Sandra. Apesar de absorver os serviços de outro departamento, o orçamento do Dmae continuou o mesmo.

Atualmente, dois contratos de terceirização atendem as zonas norte e leste, e outro a zona sul e centro. A divisão segue a lógica de que se uma empresa terceirizada der problema, ao menos não coloca em risco o serviço na cidade toda. Quando o DEP veio para o Dmae, o contrato era um só.

A engenheira civil e ex-gerente de logística da Diretoria de Operações do Dmae explica que vários projetos do antigo DEP estavam prontos para captar recursos quando o departamento começou a ser desmontado. Ela destaca os R$ 121 milhões que o governo Marchezan teve disponível, a fundo perdido do Programa de Drenagem Urbana de Porto Alegre (DrenaPoa) e optou por não usar. Os recursos seriam usados na drenagem pluvial, com a reforma de 13 Estações de Bombeamento Pluviais e obras de macrodrenagem no Arroio Moinho. 

“O DEP tinha toda uma estrutura e gente especializada nisso, engenheiros que estudavam o sistema e faziam o que tinha que fazer. É muito difícil o Dmae agora atender no nível de atendimento que o DEP tinha anteriormente. Foi feito bastante coisa, contratos novos, na parte da operação o Dmae continua investindo mais ou menos o mesmo valor em microdrenagem, só que tu não tem as mesmas pessoas que tinha na época”, explica. Se a despesa em microdrenagem continua semelhante, os investimentos para qualificar o sistema diminuíram bastante. 

Questionada pela reportagem do Sul21, a Prefeitura não se posicionou sobre os R$ 400 milhões no caixa do Dmae. Ao invés disso, o governo municipal optou por enviar explicações dadas no último dia 7 de maio, logo após o UOL publicar reportagem denunciando não ter havido investimento em prevenção de enchentes em 2023.

Segundo o governo Melo, a Prefeitura e o Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) investiram R$ 592 milhões, desde 2021, em obras que têm relação com prevenção de cheias ou que amenizam situações de alagamentos na cidade. No sistema da Estação de Tratamento de Água São João, que atende cerca de 425 mil pessoas, a Prefeitura afirma ter aplicado R$ 82,7 milhões em obras de ampliação do complexo.

“Ao mesmo tempo, R$ 35 milhões foram investidos em dragagens de arroios para evitar inundações. Outros R$ 93,4 milhões foram utilizados na ampliação e trocas de redes de água, beneficiando 50 mil pessoas (veja outras obras abaixo)”, informa a Prefeitura.

“A prevenção contra cheias e crises climáticas é uma política transversal e que envolve diversas secretarias e órgãos. Desde os investimentos do Dmae em estações de tratamento, em dragagem e drenagem, passando por pastas como habitação – onde foi feito um novo mapeamento de áreas de risco -, e meio ambiente, no qual investimos em plano de ação climática, mapeamento digital de árvores, viveiro municipal, entre outras diversas ações”, explica o prefeito Sebastião Melo (MDB).

A gestão municipal afirma que, somente em 2023, foram investidos R$ 108,8 milhões em obras de macrodrenagem na Capital. “O valor foi aplicado em melhoria na infraestrutura para manejo de águas pluviais, melhoria no sistema de proteção contra a cheia, manutenção do sistema de drenagem pluvial e dragagem e desassoreamento de arroios, entre outros”, diz.

De acordo com a prefeitura, os principais investimentos contra cheias e crises climáticas desde 2021 são:

  • R$ 250 milhões no Novo Sistema Ponta do Arado. Obra em andamento para evitar falta de água
  • R$ 93,4 milhões na ampliação e trocas de redes de água, beneficiando 50 mil pessoas
  • R$ 35 milhões em dragagens de arroios para evitar inundações
  • R$ 9,8 milhões para ampliar os reservatórios Vila dos Sargentos e Cristiano Kraemer, beneficiando 89 mil pessoas
  • R$ 82,7 milhões na ampliação do Sistema São João, beneficiando 124 mil pessoas
  • R$ 11 milhões em contratos de microdrenagem de rede pluvial
  • 20 servidores para cargos administrativos no Dmae
  • 140 servidores temporários para cargos técnicos no Dmae. Ampliação de 20 servidores
  • R$ 108 milhões em 26 obras no Arroio Areia
  • R$ 2,1 milhões na contratação de seis geradores para a ETA Belém Novo (2024)
  • 30 novos agentes Na Defesa Civil (out/23); órgão foi reestruturado em sistema municipal contra desastres
  • 142 áreas de risco mapeadas em uma atualização dos locais que não era feita desde 2013

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