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4 de março de 2012
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11:54

De médico e de louco todo mundo tem um pouco

Por
Sul 21
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De artista também. Por isso, procedem os comentários que se tem recebido nesta coluna e, pessoalmente, sobre a importância de abordar aqui aspectos da criatividade popular seja no carnaval seja nas práticas de rua, seja no vestuário ou outros tipos de vivências estéticas.

Para essa abordagem, retoma-se a ideia de que Arte é uma prática social reconhecida em nossa sociedade através de um sistema de relações que envolve atores (críticos, artistas, professores, marchands etc.) e instituições (museus, galerias, universidades, bienais, etc.). Assim como cuidar da saúde não faz de alguém um médico, nem ter suas excentricidades classificam indivíduos como loucos, e também exercitar em alguma atividade prática a potência criativa estética de cada um não os habilita como artista, nem o que fazem como arte. Com isso se estaria dizendo que o que fazem ou eles em si estão aquém do artístico? Não. Simplesmente não se pode negar ou omitir que existe esta categoria social aceita e legitimada como arte e, para participar dela existe uma série de condicionantes não tanto qualitativos mais sim institucionais.

Um bom exemplo para essa análise são dois trabalhos assim descritos: primeiro, em uma sala ampla, percebe-se na semi obscuridade um conjunto de pequenas camas hospitalares, mais precisamente berços metálicos com seus travesseiros, recobertos de plásticos transparentes. Cinzas e frios, em sua sequência, eles instauram um “território do nada”, no qual realidade e imaginação duelam, e em cujo vazio a presença da morte se coloca em evidência. Segundo, em outra sala, uma única cama de madeira, também hospitalar, velha e recoberta de tecidos que formam um dossel, onde se destacam inúmeros bordados feitos à mão, com cordões coloridos que completam a “decoração”. Também ela está vazia, mas seu aspecto dominante é a ambiguidade, misto de realidade e pobreza com cores e fantasia. Em ambos os casos, um sentimento de estranhamento se instala de forma bastante evidente. Nada parece ser o que se mostra à primeira vista.

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Essas “camas” pertencem, respectivamente, a Christian Boltanski (1944) e a Arthur Bispo do Rosário (1909-1989). As primeiras fazem parte de uma instalação apresentada pelo artista francês, no Museu de Arte Moderna de Paris, em 1999. A segunda pertenceu a um brasileiro, semi-alfabetizado, ex-marinheiro, interno em clínicas psiquiátricas, que realizou uma obra totalmente à margem do mundo da arte, mas que, atualmente, se encontra, juntamente com todos os seus “objetos”, em uma coleção. Parte dela foi apresentada na Bienal de Veneza, em 1999 e na Mostra do Redescobrimento, em São Paulo, em 2000. As primeiras buscam refazer o clima de instituições hospitalares, tornando evidente a morte que ali se encontra. Elas remetem também, como quase toda a obra do artista francês, para os horrores do holocausto imposto pelo nazismo. A segunda representava para seu autor um meio de acesso ao céu, quando de sua morte, sua nave de translado, seu abrigo e proteção.

Entretanto, nem as distâncias geográfica, cultural, social e econômica, nem as diferenças formais conseguem omitir uma paradoxal proximidade entre elas. Proximidade que parece encontrar-se no “sentido” que essas imagens instauram, na carga simbólica que delas emana. São obras que abordam a realidade das coisas, mais além de seu significado imediato, que expõem a face escura do mundo, aquela que inquieta e desafia os homens, mas que a vida cotidiana teima em ocultar. Face escura que, recalcada, volta à superfície para afirmar a incapacidade de tudo conhecer, a impossibilidade do saber total. Que se coloca como um movimento em direção ao desconhecido, sempre em busca de novas dúvidas, para ir mais além.

Os trabalhos de Boltansky e Bispo, apesar de suas origens diversas, foram assumidos dentro deste difuso campo denominado Arte Contemporânea. Em ambos os casos, tem-se realizações que oferecem ao espectador não apenas uma imagem ótica, trata-se de visualidades que fogem das categorias artísticas tradicionais: da pintura, da escultura, da gravura ou do desenho. Com isso confirma-se que uma prática simbólica não necessita, necessariamente, ser criada como arte, inserida no sistema de relações artísticas, mas ela pode ser conduzida a ele por vários mecanismos. No caso da obra de Arthur Bispo do Rosário, por exemplo, a atuação do crítico Frederico de Moraes foi fundamental nessa incorporação institucional. Essa inserção faz de Bispo um artista e de seu trabalho obra de arte.

Jacques Rancière fala que a eficácia da arte advém do estabelecimento de uma situação específica, em que a intenção de um artista se manifesta em uma forma sensível, em um lugar de arte, sob o olhar de um espectador em um estado da comunidade intelectual. Essa situação específica é uma construção da modernidade – a famosa “autonomia da arte” – que outorga uma identidade a esse campo das práticas estéticas. Autonomia que liberou o valor das artes visuais de uma dependência representacional religiosa ou política, deixando-a, em muitos casos, dependente de valores mercadológicos. Isso, no entanto, não deve afastar as pessoas do universo da arte em si, pelo contrário. A vivência do estético pode tornar os indivíduos mais humanos, pois, afinal, é a capacidade de simbolizar que caracteriza esta espécie.

Mas por que o desejo de ser artista, ou de ver artistas fora do sistema da arte? A que contribui essa diluição dos contornos e limites do campo artístico?

Apropriar-se criticamente do mundo da arte, individual e coletivamente faz parte da partilha do sensível, na linha que defende Rancière como caminho para uma sociedade mais pluralista e participativa. Entretanto, como sugere Nestor Garcia Canclini “Os artistas contribuem a modificar o mapa do perceptível e do pensável… a arte está apta, mais que para ações diretas, para sugerir a potência do que está suspenso”. Assim, o objetivo não precisa ser o de encontrar a arte fora da “arte”, mas sim aproximar-se da arte para pensar criticamente o mundo. Viver e fazer arte não é buscar o belo e formas apaziguadoras da instabilidade de ser humano, mas sim deixar-se preencher desse vazio existencial e perceber nele a beleza da imperfeição. Viver a experiência estética de forma mais radical aponta para o “dissenso”, que aceita a convivência de diferentes regimes estéticos. Como afirma Canclini, defendendo uma estética da iminência: “Os artistas, os curadores, os críticos e os públicos, podemos ser comunidades ou redes gozadoras do que se anuncia”.


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