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25 de outubro de 2011
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15:12

Na Líbia sem Kadafi, transição anda por terreno pouco firme

Por
Sul 21
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Após morte de Kadafi, transição na Líbia terá de enfrentar falta de instituições políticas consolidadas e um governo provisório que demonstra pouca coesão | Foto: Ammar Abd Rabbo/Flickr

Igor Natusch

A morte de Muammar Kadafi foi recebida por boa parte da opinião pública de forma positiva, como o fim de um regime que manteve a Líbia sob mais de 40 anos de ditadura. Para o povo líbio, no entanto, o fim do ex-ditador está muito mais para o começo de uma longa caminhada. Que deve ocorrer em terreno pouco firme, sem instituições políticas consolidadas, conduzida por um governo de transição que demonstra pouca coesão e sobre a pressão constante de interesses internacionais.

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“A legitimidade do atual governo de transição é, basicamente, imposta pelo Ocidente”, diz Renatho Costa, professor de Relações Internacionais da Unipampa, em entrevista ao Sul21. Segundo ele, a influência ocidental sobre o governo provisório da Líbia traz em si o mesmo risco de outros governos que também recebiam esse aval, como os de Ben Ali, Hosni Mubarak e o próprio Kadafi. “O governo dele (Kadafi) não mudou, foi sempre o mesmo durante 40 anos, com os mesmos métodos. A conjuntura que agora resultou na queda dele é algo que, no fundo, sempre existiu. A Itália, por exemplo, sempre teve boas relações com a Líbia, era a maior compradora de petróleo do país. Por que mudou? Por questões conjunturais”, questiona Renatho.

“A legitimidade do atual governo de transição é, basicamente, imposta pelo Ocidente”, avalia Renatho Costa, da Unipampa | Foto: Michele Agius/Flickr

“A Líbia tem poucas chances de sobreviver como um Estado unificado”, resume o professor Ruslan Pukhov, do Centro de Análise de Estratégias e Tecnologia de Moscou (Rússia). Na opinião dele, o Conselho Nacional de Transição (CNT) não será capaz de manter o controle da Líbia por muito tempo e a tendência é de que haja uma intensa luta pelo poder. “A única coisa que mantinha essa estranha aliança unida era a figura de um inimigo comum, Muammar Kadafi. Apesar de sua extravagância e comportamento, ele tinha conseguido construir uma aliança de tribos a seu redor. E essa aliança agora está desintegrada.”

“Os desafios são enormes”, diz David Hartwell, da equipe de analise de Defesa e Segurança do instituto IHS. “Toda atividade política foi suprimida por Kadafi. Não existe na Líbia uma cultura de debate político ou de se buscar um consenso para decisões”. Mesmo assim, ele se diz “moderadamente otimista” com a capacidade de o governo transitório manter a coesão no país. “Até aqui, o CNT não entrou em colapso, e as lutas internas têm sido surpreendentemente poucas. Mas os verdadeiros problemas virão em breve, já que diferentes grupos estavam unidos em derrubar Kadafi, mas nada indica que continuarão unidos daqui alguns meses.”

Richard Falk, professor emérito da Universidade de Princeton (EUA) e relator especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre os Territórios Palestinos, acredita que há um “vácuo de liderança” na Líbia e que ele não deve ser preenchido adequadamente em um futuro próximo. “É difícil discernir se as lealdades tribais poderão servir de base para o surgimento de identidades políticas primárias. E boa parte dos atos finais da batalha estiveram sobre o controle semiautônomo, à moda de milícias, de comandantes como Abdel Hakim Belhadj e Fawzi Bukatef. Esse tipo de comandante não costuma se submeter ao controle civil, o que já é uma ameaça imediata à coesão nacional.”

Al Jazeera / Reprodução
A execução sumária de Kadafi e ausência de julgamento, além de causar embaraço ao CNT, pode ter efeitos ainda mais acentuados do ponto de vista simbólico | Foto: Al Jazeera / Reprodução

Morte de Kadafi foi retrocesso, diz professor da Unipampa

A morte de Muammar Kadafi foi dramática e brutal. Vídeos registrados por soldados envolvidos na captura mostram um ex-ditador alquebrado e ferido, sendo agredido e humilhado pelos rebeldes que o fizeram prisioneiro. Após sua morte, outras imagens mostram revoltosos exibindo o corpo de Kadafi como um troféu. A morte sem julgamento, além de causar embaraço ao CNT – o que levou o comandante das tropas rebeldes, Omran el Oweib, a assumir publicamente a responsabilidade pelo fato – pode ter efeitos ainda mais acentuados do ponto de vista simbólico.

“Acredito que muitos líbios teriam preferido que a justiça fosse feita em um tribunal”, diz Jeremy Keenan, professor de Antropologia Social na Escola de Estudos Orientais e Africanos de Londres. Segundo ele, é impossível afirmar se a morte do ex-ditador trará de fato o fim de suas relações de poder ou se poderá, de certo modo, fortalecer a imagem de Kadafi, transformando-o em um mártir.

“O julgamento seria muito mais enfático em apontar uma mudança, simbolizaria um rompimento efetivo com o antigo regime”, argumenta Renatho Costa, da Unipampa. “Mas o que aconteceu foi justamente o contrário: a questão acabou sendo resolvida como sempre se resolveram as coisas na Líbia. Prevaleceu a força, aplicada de forma sumária por quem detém o poder. Acabou sendo um sinal de retrocesso”, opina.

Morte de Kadafi ajuda governo provisório a seguir em frente, mas impede-o de se apresentar melhor que o ex-ditador | Foto: Al Jazeera English

Outros analistas parecem ter uma visão diferente do modo como Kadafi encontrou seu fim. Ahmed Addarrat, exilado líbio nos EUA e um dos líderes da organização internacional de refugiados políticos Enough, acha que um julgamento poderia atrasar a remodelagem política e social da Líbia. “Um julgamento seria um circo, uma distração”, argumenta. “É algo que impediria o começo da reconstrução. Há um país a reconstruir e muito trabalho a fazer e acho que é melhor que ele esteja morto e fora do caminho desde já”, diz Addarrat.

Alan Fraser, analista de Oriente Médio da empresa de consultoria de riscos AKE, concorda parcialmente com o ativista líbio. “É um acontecimento que ajuda o CNT a seguir em frente. Significa, na prática, que será evitado um longo julgamento que poderia provocar divisões e mesmo revelar alguns segredos indesejáveis.”

Daniel Korski, membro do Conselho Europeu para Relações Exteriores e apoiador de primeira hora da intervenção da OTAN na Líbia, considera a morte de Kadafi um evento que provoca efeitos mistos sob o governo de transição. “Evita-se um arrastado drama judicial à Slobodan Milosevic, mas também elimina a chance do novo governo líbio mostrar a si mesmos melhores do que ele (Kadafi) era”. Além disso, argumenta, a morte brutal de Muammar Kadafi amplia o risco de que o ex-ditador vire um mártir, “algo que seus feitos em vida jamais teriam feito por merecer”, segundo o analista.

Sinais vindos do Conselho Nacional de Transição indicam que o atual governo pode adotar um caminho sempre temido para garantir a unidade nacional: a religião | Foto: Ammar Abd Rabbo/Flickr

Governo de transição diz que usará sharia como base da legislação

Sinais vindos do Conselho Nacional de Transição indicam que o atual governo pode adotar um caminho sempre temido para garantir a unidade nacional: a religião. “Nós, como nação muçulmana, teremos a Sharia islâmica como fonte de nossa legislação”, afirmou no último domingo (23) o presidente do CNT, Mustafa Abdel Jalil. “Daqui para a frente, toda lei que entrar em conflito com os princípios do Islã será declarada legalmente nula”, acrescentou. Ainda que tenha garantido que a sharia não implica em um “Estado fundamentalista” e que a Líbia respeitará as convenções internacionais, a fala de Jalil provocou reações de diferentes setores. A União Europeia, por exemplo, conclamou o governo interino a “respeitar os direitos humanos e os princípios democráticos” no processo de construção de uma nova Líbia.

Renatho Costa, da Unipampa, admite que a possibilidade de um regime fundamentalista na Líbia não pode ser descartada. “Há uma visão idealizada da religião, reforçada até mesmo pelo modo como o ocidente tenta atuar na região”, argumenta. “Como até agora o governo tinha sido ocidentalizado e não funcionou, a adoção da sharia acaba surgindo como uma alternativa. A questão é até que ponto o ocidente aceitaria um governo com essa característica, algo que a gente sabe que causa muita resistência. O próprio Irã, por exemplo, teve que sofrer um golpe de estado para que essa lei fosse aplicada”.

É um momento extremamente complexo. Se o ocidente atuar de forma muito enfática, o governante escolhido perderá credibilidade. Por outro lado, se a OTAN deixar a Líbia agora, é grande o risco de uma guerra civil”, afirma Renatho Costa | Foto: Ammar Abd Rabbo/Flickr

Mais um dos muitos aspectos, segundo o professor da Unipampa, que pesam sobre a continuidade das ações da OTAN em território líbio. “É um momento extremamente complexo. Se o ocidente atuar de forma muito enfática, o governante escolhido perderá credibilidade. Por outro lado, se a OTAN deixar a Líbia agora, é grande o risco de uma guerra civil”, afirma Renatho Costa, acentuando que não há respostas para questões importantes, como o destino que será dado aos aliados de Muammar Kadafi no período imediatamente posterior a sua queda.

Daniel Kehoane, do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia, diz que a guerra pode estar encerrada, mas é preciso ter em mente que a transição está em seu início. “Dizer que (a ação da OTAN) foi um sucesso ou não depende do seu ponto de vista. Se a questão era se livrar de Kadafi e proteger civis, então podemos dizer que sim, foi um sucesso tático em um certo sentido. Mas a grande questão estratégica é: a Líbia vai conseguir consolidar um regime democrático? E isso não está claro”.

“Em termos de exercitar uma verdadeira autoridade, Kadafi provavelmente será substituído não por líbios, mas sim pelos poderes estrangeiros que auxiliaram em sua queda”, diz Patrick Cockburn, jornalista irlandês e correspondente do The Independent no Oriente Médio. “Levando em conta o que aconteceu no Afeganistão e no Iraque, não deve levar muito tempo para que as ações das potências ocidentais sejam visíveis.”


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