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IBGE: População de rua tem a pior assistência nos municípios brasileiros

Rachel Duarte

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Esta semana foi divulgada a Pesquisa de Informações Básicas Municipais 2009 (Munic 2009), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os dados revelam que quase todos os municípios (99,9%) declararam possuir, em 2009, estrutura organizacional para tratar de políticas sociais. A oferta dos serviços alcançou ampla disseminação (98,6%), demonstrada pelos altos percentuais de municípios que disseram oferecer proteção social básica (97,9%) e proteção social especial (87,6%). No entanto, dentro do grupo de proteção especial, os serviços municipais de alta complexidade ainda são pouco presentes. E destes, apenas 5,2% têm programas de acolhimento para a população de rua.

Os dados preocupam tanto quanto as cenas cotidianas das grandes metrópoles brasileiras. Em Porto Alegre, a última e única pesquisa qualitativa e quantitativa  para conhecer as características desta população foi realizada de 2007 a 2008, pelo Laboratório de Observação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Apontou 1.203 pessoas nesta situação. Porém, tão importante como conhecer os números, é compreender a conjuntura social e econômica e a eficácia das políticas públicas para a população de rua.

Eles dormem, comem, trabalham, se divertem, namoram, entre outras rotinas comuns a todos os cidadãos, porém fazem isso a céu aberto. Aos olhos de quem quiser e quem não quiser ver, Porto Alegre tem uma população de rua expressiva na região central da cidade e nos bairros próximos ao Centro.


A jornalista Rosina Duarte é responsável pelo Jornal Boca de Rua, feito com os moradores de rua há 10 anos em Porto Alegre. Segundo ela, o aparente crescimento de pessoas morando nas ruas é decorrente de um distanciamento entre as políticas públicas do município e a realidade. “Dois anos atrás, houve uma grande repressão da Brigada Militar e todos os ‘mocós’, locais onde os moradores de rua ficavam, foram fechados. Agora, eles migraram para os espaços abertos e ficam mais expostos”, acredita.

Outro fator relatado pelos próprios moradores à Rosina Duarte é a atuação dos profissionais responsáveis pelos abrigos. “Há um olhar indiferente e genérico dentro dos abrigos municipais. Não há uma preocupação individual ou mesmo uma política de continuidade. De modo geral, não existe tolerância quanto ao tempo de adaptação para estas pessoas, que cresceram nas ruas e aprenderam outros hábitos de vida”, reforça.

Na França e nos Estados Unidos

“Fazer os pobres ‘pagar seus pecados’ nos albergues é prática comum na França e nos Estados Unidos”, afirma Lucas Graeff, antropólogo que faz doutorado na França. A falta de humanização não é uma exclusividade das instituições de Porto Alegre. Ele afirma que a discussão sobre a funcionalidade dos albergues e abrigos é universal, antiga e se hoje eles são questionados é porque não atendem a premissa da reinserção social. “Na França e nos Estados Unidos a porcentagem de pessoas em situação de rua que são reinseridas na sociedade é irrisória”, informa.

Ele aponta duas práticas assistenciais direcionadas às classes populares: a primeira, culpabilizante, considera o pobre responsável por sua própria condição social. “Penso que é o ponto de vista dominante no Brasil”, diz Graeff, “onde o indivíduo precisa provar constantemente que não é malando, que está em busca de uma vida melhor”. O segundo modelo clássico considera o pobre como vítima. Ele não é pobre porque quer, mas porque a pobreza é estrutural. Nesse modelo, a vítima não é responsável por sua situação, e a melhor maneira de ajudá-la a sair da rua é educá-la. Ensiná-la a se ‘virar sozinha’, como diz Graeff. Ele defende: “Para retirar a pessoa da rua, é preciso ‘tirar a rua da pessoa’. Faze-la descobrir outros referentes, outros universos de relações, outras maneiras de viver”.

A situação de rua dessas pessoas pode ser explicada por determinantes de ordem individual (como incapacitação para o trabalho, alcoolismo e transtornos psíquicos), fatores econômicos (distribuição de renda, variações no mercado imobiliário, apropriação irregular do espaço urbano, políticas de habitação, etc) e fatores sociais (relações familiares, com a comunidade, relação entre cidadão e Estado, como acontece o reconhecimento social de um indivíduo enquanto cidadão, etc). Portanto, explica Lucas Graeff, “se uma pessoa vive na rua (ou da rua) isso se explicaria por sua trajetória individual. Mas ela não se encontraria em situação de rua se essa posição social não estivesse disponível, se ela não fosse estrutural”.

O sociólogo que coordenou o Cadastro e Estudo do Mundo da População Adulta em Situação de Rua de Porto Alegre, professor Ivaldo Gehlen, critica os processos de estigmatização, a partir de uma concepção do habitar a rua como uma forma de vida possível, e não uma falta ou carência de casa ou local de moradia fixa. “Estar na rua não é apenas uma estratégia de sobrevivência, mas um modo específico de constituir a existência”, argumenta. Já Rosina entende que os moradores de rua desejam ter as mínimas condições de higiene, saúde e habitação da maioria. Ela defende que eles “optam” pelo estilo de vida “livre”, por insatisfação com as demais opções dadas pelo Estado.

Em Porto Alegre

Na Prefeitura de Porto Alegre, a Fasc (Fundação de Assistência Social e Cidadania) mantém 18 unidades de assistência social, dois albergues e três casas de convivência. Apenas uma unidade funciona 24 horas e permite pernoitar durante três meses. Este é o período em que a pessoa tem endereço fixo e pode conseguir um emprego, já que não possuí-lo é um fator excludente na busca por vagas.

O então prefeito José Fogaça, pouco antes de deixar a Prefeitura, fez um relato de sua gestão e anunciou a criação do projeto Cuidadores Sociais. Ainda em estudo, prevê o acompanhamento de cada morador de rua por assistentes sociais. “Pode ser uma solução para casos individuais”, afirma Lucas Graeff. “Mas não para o problema estrutural. E, o que pode ser mais grave ainda, uma lógica de acompanhamento ‘caso a caso’ – visto que ela foca o problema de um ponto de vista individual – pode resultar no ‘esquecimento’ das causas estruturais”.

A pesquisa da Ufrgs, encomendada pela Fasc em 2007, aponta que 70% das pessoas em situação de rua entendem seu lugar na sociedade e se sentem violentadas com o olhar discriminatório da população em geral. Na prática, Rosina garante que a dor da indiferença e da agressão moral e física sofrida rotineiramente é uma das maiores dificuldades para os “nômades”.  “Se eu tivesse que definir esta população eu diria que eles são muito inteligentes e sensíveis à realidade. A sociedade está perdendo quando despreza esta população. Esta bagagem poderia ser utilizada como fórmula de chegar às políticas de prevenção. Não há solução, temos é que querer discutir o tema e saber destas pessoas o que elas precisam”, declarou.


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