Revolução Russa -- 100 anos
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17 de julho de 2017
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12:07

XX — O Krondstadt

Por
Sul 21
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Fernando Horta

Comitê executivo do Krondstadt em fevereiro reunido com Kerensky (ao centro) foto Museu do Krondstadt na Rússia

Consciência de classe revolucionária sim, mas também canhões, metralhadoras e rifles!

Situada na ilha de Kotlin, não mais do que trinta e cinco quilômetros de São Petesburgo está a base naval do Krondstadt. Se os bolcheviques foram o coração pulsante da Revolução de Outubro, o Krondstadt são os braços treinados para as armas. São do Krondstadt os primeiros tiros durante o “Ensaio Geral” de 1905, também são os marinheiros do Krondstadt que fazem o levante de julho de 1917 e será do Krondstadt que virá a maior oposição aos bolcheviques, nas grandes revoltas de 1921.

Marinheiros do Krondstadt preparados para a guerra ou para a Revolução, o que viesse primeiro. Foto museu do Krondstadt

Diferentemente do exército, que era tido como de origem nobre na antiga Rússia, a marinha congregava os grupos sociais de maior vulnerabilidade. Sob as cores da marinha russa se viam protegidos indivíduos que de outra forma teriam dificuldades para sobreviver. A vida no mar, apesar de dura, era uma segurança para as populações mais pobres e marginalizadas. Esta posição social colocava a marinha no mais baixo dentre todas as forças militares da Rússia. Em outubro de 1905, o vice-almirante Konstantin Nikonov escrevia ao czar afirmando “Nós somos tratados como animais”, referindo-se tanto ao trato que os oficiais davam aos marinheiros como a forma com que o governo tratava o Krondstadt.

A basa naval do Krondstadt tinha o maior centro de formação da Frota Báltica russa e acabava por receber um contingente bastante grande de recrutas, vindos de todas as partes da Rússia, para serem treinados não apenas como marinheiros, mas telegrafistas, eletricistas, mergulhadores, carpinteiros e etc.. Assim, era indissociável a formação militar da formação proletária. Em 1913, um relatório interno do governo czarista apontava que “os recrutas estavam já envenenados com a propaganda revolucionária, desde os alojamentos até as salas de aula”. Com o início da Primeira Guerra Mundial, toda a atenção foi colocada sobre o Krondstadt, que era a primeira linha de defesa naval da Rússia.

Em fevereiro de 1917, ao receber ordens para atirar na população que se rebelava em Petrogrado (São Petesburgo), os marinheiros e militares do Krondstadt se amotinam e recusam-se a cumprir a matança. Ao invés de conter, os amotinados se juntam aos trabalhadores e passam a figurar no campo dos revoltosos. Aos gritos de “Longa vida à revolução”, os marinheiros depunham seus oficiais superiores e passavam o comando das tropas e armas aos tenentes. A 1º de março, o Krondstadt já respondia apenas ao “governo revolucionário”. Ao todo, tinham sido executados 51 oficiais, mais alguns policiais e espiões por “traição ao povo da Rússia”. Nenhum civil foi morto ou machucado.

Discurso do bolchevique Joseph Dubrovinskogo na base do Krondstadt em 1917. Foto museu do Krondstadt

O Krondstadt foi a única área da Rússia em que não havia um duplo governo (soviet e o governo provisório) até outubro de 1917. Desde o início, associações de classe foram formadas, como a Associação dos professores do Krondstadt, sob liderança do professor de História Ivan Oreshin além do próprio Soviet, criado em cinco de março de 1917. Oreshin redigia os manifestos afirmando que o Krondstadt trabalharia pela “revonação da forma de ensino” buscando a “formação científica e iluminista fundada no humanismo e na genuína democracia”. Não apenas o Krondstadt se organizava e falava em democracia, mas tomava efetivamente o controle das unidades militares e navais.

A figura central dentro da revolução que o Krondstadt criava era o terceiro-anista do Instituto de Tecnologia Anatolii Lamanov. Lamanov é descrito como um “jovem rapaz com farta cabeleira e olhos de um sonhador idealista”. Filho de altos oficiais da marinha, Lamanov tinha uma inclinação para a história e geografia e era frequentemente visto fazendo “leituras coletivas” com a população da região, até ser encarregado da edição do jornal Izvestiia do Krondstadt. Sua postura “não partidária e conciliatória” ganhava rapidamente o apoio de diversos grupos, dentro e fora das esferas militares. É de Lamanov, depois de um longo debate, a decisão de seguir o soviet e Petrogrado e colocar o Krondstadt como “apoiador” do governo provisório para não “enfraquecer a força militar e econômica do país”, já envolvido na Primeira Guerra.

Em 3 (16) de julho, a base do Krondstadt seguia suas leituras e lições diárias quando interrompida por emissários que afirmavam que “sangue é derramado em Petrogrado!”. Os agitadores perguntavam “os homens tomaram as ruas na cidade e vocês do Krondstadt, apesar de bons revolucionários, estão sentados fazendo leituras?”. A provocação foi suficiente para deslocar para a cidade uma divisão de metralhadoras, uma de marinheiros e delegados do comitê executivo do soviet. Estava deflagrada a revolta que colocaria os bolcheviques em evidência: “Nós estamos resolutos em deixar nossos ossos como parte das ruas, se assim for preciso, para fazermos a revolução”. A agitação acontecia sem o consentimento dos líderes bolcheviques e mesmo Lamanov parecia não ter condições de controlar o levante. Aos gritos de “Abaixo o governo provisório, abaixo Kerensky” os revolucionários do Krondstadt davam a Petrogrado uma demonstração de radicalismo.

As seis da manhã do dia 4 (17) de julho cerca de 20 mil homens entre marinheiros, militares de infantaria e artilharia estavam todos armados na principal praça de Petrogrado. Lênin, percebendo que colocar-se contra o movimento lhe custaria talvez a vida, muda sua postura e discursa pedindo “Todo poder aos soviets!”, ao que é aclamado pelas massas que não esperaram para ouvir seu pedido por “moderação e demonstração pacífica de força”. Lênin e Trotsky tiveram muito trabalho para conter os revoltosos enfurecidos e armados sem serem, eles mesmos, mortos. Mais tarde ambos reconheceriam que qualquer força detentora de armas precisava de disciplina ou a “ansiedade revolucionária” poderia não ser contida. Os “Dias de Julho” terminaram com menos mortes do que o Krondstadt inicialmente pensara, e os bolcheviques começavam a perceber quão arredias podiam ser as populações armadas, embora convencem-se da sua necessidade.

Anchor Square em São Petesburgo hoje. Local da insurreição de julho. Ao fundo a Catedral do Krondstadt

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Fernando Horta é professor, historiador, doutorando na UnB.


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