Revolução Russa -- 100 anos
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17 de maio de 2017
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16:20

XIV — O sonho da revolução sem sangue

Por
Sul 21
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Fernando Horta

O período entre abril e maio de 1917 (maio e junho pelo nosso calendário) é conhecido por “Crise de Abril”. Segundo o historiador Marc Ferro, foi neste momento que acabou o “sonho de uma revolução sem sangue”. O movimento de fevereiro pensava-se poder reorganizar o país em bases, se não democráticas liberais, ao menos não de forma revolucionária, como queriam os bolcheviques. Lênin e seus apoiadores continuavam como grupo minoritário nos soviets e, ainda que o trabalho intelectual de Lênin em favor da revolução fosse incessante, o controle estava com os mencheviques e as primeiras acomodações políticas entre os revoltosos e os grupos enriquecidos pareciam opor sólida resistência à radicalização. Lênin, contudo, assegurava que “as causas da crise (de fevereiro) não foram afastadas e a repetição de tais crises é inevitável.

Manifestação de soldados pedindo a saída da guerra e a “Paz sem anexações ou entregas”.

O jogo político da conciliação parecia render frutos à contrarrevolução. Os trabalhadores, apresentavam suas básicas demandas: melhores salários, diminuição de horas de trabalho e proibição do trabalho infantil. Ainda assim, conseguiram apenas as oito horas e um pífio aumento. Manteve-se o trabalho infantil como válido. No campo, a demora nas discussões sobre a reforma agrária fazia com que vários elementos tomassem para si a ação de mudança. Camponeses tomavam terras e dividiam a seu bel-prazer, no que eram apoiados pelos bolcheviques. A primeira reunião do comitê nacional pela reforma agrária ocorreu apenas em 19 de maio (01 de junho) e condenava as apropriações. Esta falta de interesse do governo provisório em fazer efetivas mudanças desgastava-o, diariamente.

Com o recrudescimento das greves, a burguesia aumentava também a pressão sobre o governo provisório. O ministro das finanças Alexander Konovalov, do partido da burguesia, se colocou contra a estatização da produção e organiza a elite russa a fazer um lock-out produtivo e não subsidiar os esforços de guerra. A burguesia parava as fábricas e suspendia empréstimos bancários denunciando o governo provisório como “incapaz”. Em resposta, os operários tomaram as fábricas, mas o governo, na figura do menchevique Matvey Skobelev, então ministro do trabalho, fica contra o controle das fábricas pelos operários.

Ministro das Finanças do governo provisório. Alexander Konovalov do partido do KADET. Um dos articuladores da contrarrevolução a partir de maio de 1917. Foto de domínio público.

Mantido Miliukov como ministro do exterior, os Aliados sabiam que a Rússia não sairia da guerra. De fato, em 18 de abril (01 de maio) o ministro Miliukov escrevia às potências aliadas (Inglaterra e França) dizendo que “o Governo Provisório não poderia, de forma alguma, fazer supor que a revolução tivesse trazido o enfraquecimento do papel da Rússia no contexto geral da luta dos Aliados”. A guerra continuava e o governo provisório trocava “honra na manutenção dos compromissos diplomáticos” por milhões de vidas.

Capa do jornal Portsmounth Herald de seis de abril de 1917 sobre a entrada dos EUA na guerra. Apesar da manchete, o Brasil somente entraria na guerra em outubro de 1917. A entrada dos EUA diminuía a importância da Rússia. Foto: Portsmouth Herald

Aproveitando-se do momento, os chefes militares tentavam reestabelecer a “ordem” militar. Em 23 de abril (05 de maio), o general Kornilov ordenava movimentação de baterias de artilharia contra os operários grevistas e manifestantes. Imediatamente formou-se uma comissão de debate entre os soldados para definir se as ordens de Kornilov “estavam de acordo com o soviet”. O comportamento dos soldados em Petrogrado repetia-se por toda a Rússia e, mesmo com os chefes militares tentando reorganizar batalhões de reservistas, os soldados recusavam-se a acatar ordens que não fossem ratificadas pelo soviet.

Pavel Miliukov, ministro do exterior russo que manteve a Rússia na guerra. Demitiu-se em maio de 1917. Foto: Domínio Público

As etnias estrangeiras também não pareciam querer esperar. Especialmente finlandeses e ucranianos, organizados em coletivos semelhantes aos soviets, exigiam um posicionamento do governo provisório a respeito de suas respectivas independências. Se a Rússia declarava-se “não imperialista”, era um contrassenso manter o domínio sobre etnias que, afinal, haviam lutado também contra o czarismo. O governo provisório, contudo, não estava disposto a perder território e postergava qualquer declaração específica sobre os movimentos independentistas. Em abril (maio), portanto, o governo provisório mostrava-se inerte e incapaz de aprofundar as mudanças que vários grupos exigiam. Os soviets negavam-se a cumprir o papel exortado por Lênin e aguardavam os tempos de discussão intermináveis, propostos pelo governo provisório. Nesta stasis política, crescia a contrarrevolução. Enquanto os mencheviques e o governo provisório ofereciam diálogos sem mudança para as massas, procuravam difamar Lênin a todo custo. Em 19 de maio de 1917, fizeram chegar nas cidades milhares de panfletos com um comunicado do governo provisório dizendo que “o socialista Lênin recebeu 4 milhões de marcos para propaganda da paz em separado [com a Alemanha] e no interesse dos Romanov”. Nos círculos sociais dos altos clubes ouvia-se “é preciso espancar Lênin”. Nas reuniões de soviets, sempre quando Lênin pedia para discursar era-lhe negada a palavra. O argumento era de que não era delegado e, portanto, não tinha direito de se manifestar.

Não existindo vácuo de poder, todo espaço deixado de ocupar pelos revolucionários se tornava um espaço de resistência às mudanças, afirmava Lênin. Ficava cada dia mais claro que através dos meios democráticos, mesmo com os soviets negando-se a cumprir ordens violentas contra os trabalhadores, não haveria forma de prosseguir na revolução. Quanto mais os mortos na guerra cresciam e o descontentamento dos diversos setores contra o governo tornava-se evidente, mais as palavras de Lênin e a força dos bolcheviques apareciam. Lênin começava a unir os bolcheviques aos soviets afirmando que “Não existe em toda a Rússia classe ou grupo que possa enfrentar o poder dos sovietes” e conclamava “organização, organização e mais organização”.

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Fernando Horta é professor, historiador, doutorando na UnB.


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