De Poa
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16 de novembro de 2023
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14:41

Fernanda Melchionna: O capitalismo precisou da derrota histórica das mulheres e da queima às bruxas

Por
Luís Gomes
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Deputada federal é a convidada desta semana do podcast De Poa | Foto: Reprodução
Deputada federal é a convidada desta semana do podcast De Poa | Foto: Reprodução

O episódio desta semana do podcast De Poa, uma parceria do Sul21 com a Cubo Play, recebe a deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL). Ela conversa com Luís Eduardo Gomes sobre o lançamento de seu primeiro livro “Tudo isso é feminismo? Uma visão sobre histórias, lutas e mulheres”, lançado na 69ª Feira do Livro de Porto Alegre, e também aborda a conjuntura política na Capital e em Brasília.

Na primeira parte do programa, a deputada explica o processo que levou à escrita do livro, o que iniciou com um convite da Editora Cultura. “Tu sabe que eu sou militante de longa data em defesa das mulheres, da luta feminista. Então, foi um pouco da experiência, do acúmulo desses anos todos de luta feminista. E, ao mesmo tempo, uma busca por mais fontes, porque o livro é dividido em alguns capítulos. A ideia, primeiro, é desapagar da história das mulheres, porque a gente aprende na escola, em várias formas de recontar ou reproduzir a história, um apagamento de várias mulheres que foram fundamentais nessas lutas”, diz a deputada.

Ao fim, ela também aborda uma série de questões atuais da política local e nacional, como a possibilidade de disputar a Prefeitura de Porto Alegre pela segunda vez em 2024. “Eu sou soldado do partido e, no bom sentido, do povo de Porto Alegre. O PSOL vai discutir e, mais do que quem é o nome, acho que a gente tem que discutir qual é o programa”, afirmou.

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O De Poa, parceria do Sul21 com a Cubo Play, é um programa de entrevistas sobre temas que envolvem ou se relacionam com a cidade de Porto Alegre. Todas as quintas-feiras, conversamos com personagens ilustres ou que desenvolvem trabalhos importantes para a cidade. Semanalmente disponível nas plataformas da Cubo Play e do Sul21.

Confira alguns trechos da conversa com a deputada federal Fernanda Melchionna.

Luís Gomes: Como foi o processo de escrever esse que é o teu primeiro livro: “Tudo isso é feminismo?”

Fernanda Melchionna: Olha, foi um processo muito interessante. Primeiro, o Caio Ritter me convidou para fazer parte dessa coleção, esse livro faz parte de uma coleção. Esse é o sétimo título que foi lançado pela Editora Cultura, uma coleção que se chama Inquietações Contemporâneas, que trata de temas contemporâneos, enfim. O Caio Ritter me convidou, então, para escrever para essa coleção e eu pensei em escrever sobre o feminismo. Tu sabe que eu sou militante de longa data em defesa das mulheres, da luta feminista. Então, foi um pouco da experiência, do acúmulo desses anos todos de luta feminista. E, ao mesmo tempo, uma busca por mais fontes, porque o livro é dividido em alguns capítulos. A ideia, primeiro, é desapagar a história das mulheres, porque a gente aprende na escola, em várias formas de recontar ou reproduzir a história, um apagamento de várias mulheres que foram fundamentais nessas lutas.

Luís Gomes: O livro tem um trabalho de pesquisa mesmo, né? Tem uma parte que é um ensaio, mas também traz explicações sobre o que foram as ondas feministas.

Fernanda Melchionna: Exatamente, ao mesmo tempo em que ele explica, ele apresenta também algumas polêmicas, claro não todas, mas algumas polêmicas que existem, inclusive, sobre a conceituação das ondas. Ele conta que existe esse debate e, ao mesmo tempo, conta cada uma dessas ondas. Enfim, primeiro como é que se cunhou essa ideia de ondas e, ao mesmo tempo, os momentos marcantes dessas quatro ondas.

Mas essa essa questão do apagamento da história das mulheres é importante. Pensa bem, tem coisas que passam batido. Metade da humanidade passou séculos longe da produção do conhecimento, longe das universidades, proibida de descrever, proibida de trabalhar, no sentido da sua autonomia, porque tinha trabalho de mulheres, de mulheres negras, como escravizadas. Tinha trabalhos de mulheres, de mulheres indígenas exploradas, inclusive essas histórias muitas vezes apagadas, seja pela historiografia oficial, seja por uma ideia de feminismo branco eurocentrado e sem trazer essa intersecção das várias opressões. Então, o livro começa com essa ideia do desapagamento, traz notas e um debate sobre essa estrutura de opressão, sobre o patriarcado, e como essa opressão das mulheres é funcional no modelo de super exploração capitalista. Pegando o Engels, pegando a Gerda Lerner, pegando a contribuição da Silvia Federici, que tem textos importantes em relação tanto à Inquisição, como depois ao trabalho doméstico, que inclusive foi tema do Enem agora. Porque não é que a opressão das mulheres nasceu com o capitalismo, é anterior, é secular. A Gerda tem uma tese muito importante da combinação de alguns elementos. A obra dela uma pesquisa de 20 anos, eu super recomendo ‘A criação do patriarcado’. O Engels fez uma contribuição histórica muito importante com ‘A origem da família, da propriedade privada e do Estado’, porque localiza, naquela época foi muito importante desnaturalizar essa opressão das mulheres. Ele vai datar da criação da propriedade privada, a opressão das mulheres ou a exploração, mas, naquele momento, embora a obra do ponto de vista da Antropologia tenha sido superada em várias partes do texto, o que eu inclusive aponto rapidamente, mas foi um marco fundamental, tanto para o debate sobre gênero e mulheres, quanto para o movimento operário da época. Que momento é aquele? Nós estamos vivendo um momento no final do século 19, um momento de ascenso dos partidos da classe, de movimentos associativos mais fortes, numa onda que já começava a ter reivindicações fortes da classe. Mas a participação das mulheres, que já eram parte da mão de obra, recebiam menos, não como recebem hoje em termos proporcionais, hoje nós ainda recebemos menos, mas numa proporção muito maior e numa super exploração brutal das mulheres e crianças na época, mas que tinham dificuldades de participar do movimento associativo, justamente pelo machismo arraigado. Então, essa contribuição é fundamental e depois a Silvia Federici faz uma contribuição que eu confesso que eu nunca tinha pensado até ler o ‘Calibã e a bruxa’, que é a necessidade, para assentar as bases das ideias capitalistas inclusive, da derrota histórica das mulheres. Ela usa esse termo derrota histórica. E, por isso, a necessidade da Inquisição, da queima às bruxas, desse aprisionamento desse espaço das mulheres. Então, eu faço um pouco esse debate e tudo dando indicações de leitura, porque não tem tempo, vou apresentando essas contribuições e dando contribuições de leitura. Depois, por algumas mulheres anteriores a um movimento feminista, não quer dizer que não tenha tido mulheres que lutaram, que escreveram ou que resistiram, teve várias, mas eu digo como um movimento. Então, eu pego a contribuição da própria Revolução Francesa, da Olympe de Gouges, que fez a primeira Declaração das Cidadãs. A gente sabe que a Revolução Francesa foi um marco na humanidade, derrotou absolutismo, criou a Declaração do Homem, mas era literalmente o homem, porque as mulheres foram excluídas, e ela fez essa postulação. Era girondina, o livro conta que ela acabou guilhotinada. Na minha época, hoje eu já sei que mais professores e professoras contam a história dela, mas não se falava dessa personalidade quando se falava da Revolução Francesa. Depois, a Mary Wollstonecraft e o seu livro que foi uma obra importante. Eu pego um pouco mulheres e revolução, porque embora a Revolução Francesa não tenha sido encabeçada por mulheres, teve um peso muito importante das mulheres no processo da Revolução Francesa, cito rapidamente. E aí vou para a primeira, segunda, terceira e quarta ondas, problematizando o conceito de onda, que é um debate que existe e que tem que estar posto para que as pessoas saibam que existe. Mas, ao mesmo tempo, trabalhando com essa conceituação para apresentar esses momentos históricos. O movimento do sufrágio, o momento pós 68 a terceira onda, ali o interregnos anos 80 e 90. E, inclusive, além de apresentar o debate se foi uma onda, porque teve menos luta social naquela época, também apresentar o tema do impacto no neoliberalismo no mundo do trabalho, desertificação neoliberal e a dificuldade de organização. Depois, a quarta onda, o tsunami de agora, tudo o que a gente viveu desde 2013 com muito peso no Brasil.

Luís Gomes: E como tu caracteriza esse momento atual dos movimentos feministas?

Fernanda Melchionna: Eu acho assim ó, incrível, incrível, tá vivendo e ter sido parte desse processo recente. Quando eu comecei a militar nesse debate feminista, era muito comum teatro do 8 de Março com 30, 40 mulheres, quando tinha. A gente enfrentava um debate, justamente ali naquele período bem neoliberal de tentar vender a ideia de fim da história, como a gente sabe que o neoliberalismo tentou incutir.

Luís Gomes: Estamos falando do final dos anos 90?

Fernanda Melchionna: É, final dos anos 90, início dos anos 2000. Não que não tenha tido movimentos importantes, a Marcha das Margaridas, as mulheres camponesas que têm uma luta impressionante e que são fundamentais, mas é outra potência pós Jornadas de Junho. Uma das latências que eu acho desdobramento das Jornadas de Junho, que depois a gente pode fazer todo um debate sobre as Jornadas de Junho, mas a força do movimento de mulheres pós Jornadas de Junho no Brasil é inegável, das meninas, das adolescentes, das jovens, do movimento negro também, do movimento LGBTQIA+ também. E ali tu vai ter a resistência da primavera feminista contra o projeto do Eduardo Cunha [pretendia dificultar o acesso ao aborto para as mulheres estupradas], que não foi aprovado. Não vamos esquecer o PL 5069, que não foi aprovado porque teve uma onda de meninas. Vai ter luta de mulheres e lideranças juvenis nas ocupações das escolas de 2016, tu vai ter a marcha das mulheres negras que foi um marco em Brasília, reunindo 100 mil mulheres, tu vai ter a primeira greve internacional das mulheres, que foi em 2017. As maiores mobilizações do Brasil em 8 de Março foi no bojo dessa convocação da greve internacional. Não vamos esquecer que, naquele momento, em 2016, o Trump tinha sido eleito e um dia depois da posse foi feito uma mobilização multitudinária por mulheres estadunidenses, que tem um discurso histórico da Angela Davis, que eu super recomendo. Eu cito trechinhos dele, mas eu super recomendo na íntegra, porque é um discurso muito completo e conciso das tarefas das mulheres contra a extrema-direita, mas não só contra extrema direita, contra este modelo econômico e político que condena as mulheres aos salários mais baixos que dos homens, que condena as mulheres a lamentavelmente sofrer com a super exploração da força de trabalho, que condena as mulheres a ser quem mais sofre o impacto da crise econômica gerada pelos grandes, que condena o empobrecimento geral da classe, com mais peso ainda nas mulheres e mais peso ainda nas mulheres negras. Então, esse discurso está muito bom. Depois dessa marcha de resistência à extrema-direita teve uma convocatória para uma greve internacional e essa greve foi, embora em vários lugares não tenha conseguido fazer greve, porque significa ter condições de enfrentar o patrão e só as mulheres cruzarem os braços, aconteceu em algumas cidades na Espanha, em alguns lugares aconteceu, mas os atos foram muito fortes e a ideia de greve de cuidados já aparece aí.

Esse tema do trabalho doméstico, que é tido como o trabalho invisível, mas é fundamental ao capitalismo. A Silvia Federici chama de fábrica da humanidade, as mulheres, porque os cuidados são extremamente necessários para a sobrevivência da mercadoria mais valiosa para o capitalismo, que é a força de trabalho. E quem é que faz esse trabalho? Em geral, mulheres, não pagas no trabalho doméstico. Embora as coisas estejam mudando, nós tenhamos mais homens que compartilham do que antigamente, porque não tinha praticamente, ainda é tido como trabalho feminino e a sobrecarga das mulheres é muito maior semanalmente, com estudos, pesquisas, etc. E quando esse trabalho é pago, ele é mal pago, para os trabalhadores domésticas, que a maioria ainda não tem carteira assinada, a maioria mulheres negras. Cuidadoras, também a maioria mulheres negras, que tem baixaos salários para um trabalho que é fundamental. Então, tanto do trabalho doméstico ser reconhecido como trabalho doméstico e exigir alguma reparação de estado, quanto as melhores condições para trabalhadoras tão importantes e tão exploradas, é fundamental. Então, essa greve trouxe esse elemento também do cuidado. Depois disso, no Brasil, nós tivemos 2018, que foi já a ascensão da extrema-direita como um fenômeno político.

(…)

Luís Gomes: Para finalizar. Deputada, vamos fazer uma espécie de jogo rápido. Tu vai ser candidata à Prefeitura de Porto Alegre?

Fernanda Melchionna: Eu sou soldado do partido e, no bom sentido, do povo de Porto Alegre. O PSOL vai discutir e, mais do que quem é o nome, acho que a gente tem que discutir qual é o programa.

Luís Gomes: Tu é a favor de prévias?

Fernanda Melchionna: Eu acho que prévias é um bom método de debate, de participação, de interação, de discussão programática e, a partir disso, escolha do nome. Acho que prévias é um modelo democrático que a gente nunca aplicou. Pode ser prévias, pode ser um consenso progressivo, mas o importante de tudo é ter um bom debate programático para fazer uma chapa forte em ideias e ao mesmo tempo a devolução de Porto Alegre para os portoalegrense.

Luís Gomes: Qual tua avaliação do governo Lula nesse primeiro ano?

Fernanda Melchionna: Se nós compararmos com o Bolsonaro, liberdades democráticas. Quer dizer, não dá para comparar com o Bolsonaro. É um governo fruto da maior vitória democrática desde 1985, nós temos orgulho de ter feito esse batalha junto para derrotar eleitoralmente o Bolsonaro, mas é um governo de conciliação de classe e, como tal, sofre das pressões, no sentido dos partidos e da agenda econômica, que é uma agenda mais próxima dos liberais do que da esquerda socialista, o que tem muita repercussão no presente e no futuro do País para as áreas sociais, para ampliação dos investimentos, arcabouço fiscal, etc., enfim, parte da agenda econômica a gente precisa enfrentar, no sentido de apresentar essas críticas e seguir lutando para taxar as grandes fortunas, para auditar dívida pública e etc. Então, nesse aspecto, é importante apontar a conciliação de classe, por isso a importância de um projeto independente, por isso a importância da luta, mas, nossa, vai comparar ter Ministro dos Direitos Humanos, das Mulheres, tantos outros ministérios, da Saúde, que tenha a ciência, com qualquer debate que se possa ter divergência. A gente teve um avanço em várias outras áreas, a área de poder debater as coisas, a defesa da ciência, das liberdades democráticas, o projeto da igualdade salarial. Então, eu acho isso, que é um governo de conciliação, fruto da maior vitória democrática desde 1985 e isso foi muito importante, mas, inclusive para derrotar o bolsonarismo como fenômeno político, a gente precisa voltar às ruas. Para ter uma agenda econômica de esquerda, no sentido de atacar os interesses do sistema financeiro e dos grandes capitalistas, para que o povo tenha direitos, melhoria no serviço público, melhoria no salário, melhor distribuição de renda, combate à desigualdade social, por isso é fundamental também uma esquerda independente e que aposte na mobilização.


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