Opinião
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18 de março de 2024
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14:51

Desrotulando o direito penal: pena e individualidade (por João Beccon de Almeida Neto)

Foto: Arquivo EBC
Foto: Arquivo EBC

João Beccon de Almeida Neto (*)

Pena, penitência, castigo, arranjo, reparação, punição, ensino corretivo, sanção são palavras associadas quando falamos em cumprimento de uma condenação criminal. Não obstante podemos inferir que pecado e crime são praticamente sinônimos em nossa cultura. Antes da destacada era da Idade Média e seus inquisidores, tínhamos o ordálio ou ordália em que aguardávamos o juízo de Deus para saber se alguém era ou não culpado, a partir da utilização de elementos da natureza. O papel dos inquisidores, mais adiante, era de modernizar os processos com procedimentos que tivessem o objetivo de extrair a verdade a partir da expiação da dor, pois se a pessoa não cometeu crime, não teria um por que confessar algo, mesmo que lhe aplicasse o interrogatório sob tortura.

Assim sendo, a própria “evolução” do cumprimento das penas criminais em estabelecimentos próprios por determinado período não vai deixar de reproduzir diferentes formas de violência. Associamos ainda que violência se corrige com violência, “uma vez que não há razão para tratar bem uma pessoa que comete um delito, ela precisa pagar/responde pelo mau praticado”. Isso também nos remete ao desejo da pena servir também de papel educativo ou ressocializador. E duas são as formas mais utilizadas: o estudo e o trabalho. São valores importantes para nossa sociedade, pois o trabalho possibilita propósito e liberdade a partir de sua remuneração, enquanto o estudo pode significar a ocupação de atividades e o incremento na qualificação o indivíduo. Quem nunca ouviu a frase “o trabalho enobrece” ou “Deus ajuda quem cedo madruga”. São frases típicas de nossa modernidade e fundantes para protestantes e calvinistas. 

Mas também podem ser formas de padronização e, portanto, de controle social. Não é à toa que ao mesmo tempo que temos a idealização estrutural das penas celulares de isolamento e reclusão, temos a estrutura moderna de outros estabelecimentos de formação e cuidado como escolas e hospitais. Então, o normal e a padronização de como esperamos que cada um aja em sociedade é definido. Aldous Huxley escreve o clássico “Admirável Mundo Novo” no início do século XX descrevendo uma sociedade futurista marcada justamente por esta padronização, em que pessoas nascem e são criadas levando em conta as funções específicas que irão ocupar. O ser humano seria uma engrenagem ou parte da sociedade, tem como dever executar tarefas sem ter o direto de questioná-las. Mas pra além desse cenário, o que chama a atenção na obra são as observações de John, o selvagem que nasceu e viveu fora dessa sociedade. A sua selvageria estaria ligada ao conceito que os demais o impõem, por não estar normalizado. O selvagem comenta sobre a importância de viver sentimentos e nem tanto viver sob a égide da razão, citando em muitas passagens literaturas, em especial Shakespeare. 

Isso demonstra a importância de desenvolvermos pensamento crítico para sempre questionarmos comportamentos e constituirmos nossos valores socialmente relevantes. Não é só poder ter opiniões diferentes, mas que está opinião tenha relevância e potência d escuta. Não podemos mais associar sociabilidade com utilidade, pois isso acaba nos remetendo a um critério quantitativo como número de produção e e remuneração. Mas novamente quero chamar a atenção para quando falamos em cumprimento de pena. Recentemente vimos a notícia de que estabelecimentos prisionais em Minas Gerais estavam proibindo a entrada de livros de literatura, mesmo que a leitura seja um plano estratégico do Conselho de Nacional de Justiça dentro dos presídios e que pode ser utilizado para fins de remissão da pena. Não diferente, não faz muito o próprio STF em decisão de plenário não permitiu a remissão da pena pela prática de capoeira, por entender ser está uma prática recreativa ou de luta simplesmente e não se encaixando em formação profissional e estudo nos moldes da lei. O que demonstra o certo distanciamento que determinados grupos de nossa sociedade ainda tão desigual está de um discurso mais inclusivo e crítico sobre a nossa formação cultural e histórica, algo tão necessário quando falamos em promoção de políticas públicas.

(*) João Beccon de Almeida Neto é advogado criminalista e professor da Unipampa

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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