Opinião
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30 de janeiro de 2024
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07:00

Brancura (Coluna da APPOA)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Gerson Smiech Pinho (*)

Ao dormimos, não é incomum que em nossos sonhos seja retratada a situação de estar perdido – quando sonhamos andar a esmo pelas ruas de uma cidade estrangeira ou por algum espaço desconhecido, desorientados, sem encontrar rumo ou direção definida. Desse modo, sonhar que se está perdido pode muito bem se enquadrar na categoria de sonhos considerados como “típicos”, ou seja, aquelas construções oníricas recorrentes, experimentadas com frequência por boa parte das pessoas, como sonhar que se está caindo, voando ou despido.

Há poucos dias atrás, enquanto escutava alguém que descrevia a sensação de inquietação ao sonhar que se encontrava perdido e desnorteado em meio às vielas de uma cidade estranha, imediatamente vieram à minha lembrança algumas passagens de Brancura, obra do escritor norueguês Jon Fosse, cuja leitura recém havia finalizado. Ao percorrer as páginas deste livro, tive a sensação de mergulhar em uma espécie de experiência onírica na companhia do narrador-protagonista que não sabe exatamente para onde vai, nem qual é o caminho para sair de onde se encontra.

Como o próprio personagem diz no início do texto: “Era boa a sensação de estar em movimento. Sem saber para onde estava indo. Apenas dirigia.” (p. 12) Alternando entre momentos de deslocamento e outros de paralisia, a “boa sensação” descrita primeiramente por ele pouco a pouco vai dando lugar à angústia. Ao conduzir o carro até uma floresta e embrenhar-se pela mata escura, numa circularidade de movimento sem solução, a narrativa talvez pudesse ser tomada verdadeiramente como o relato de um pesadelo.

No ensaio que escreveu sobre a Gradiva, romance de Wilhelm Jensen, Freud propõe aplicar as descobertas que estabeleceu a partir da interpretação dos sonhos às produções oníricas do personagem que protagoniza aquela obra literária. Assim, aproxima os sonhos produzidos pela criação de um escritor daqueles que temos efetivamente enquanto dormimos. No caso do livro de Jon Fosse, é a própria escrita do romance como um todo que parece evocar a lógica que opera nos pesadelos.

Na travessia relatada em Brancura, em meio à errância pela floresta, através de um território estranho e desconhecido, o protagonista é surpreendido ao escutar vozes que remetem àquilo que literalmente lhe é mais familiar e íntimo. Sentimento de familiaridade que assombra não somente o personagem-narrador, mas que também toma de assalto o leitor. Esse ponto coloca em relevo outro tema bastante caro à psicanálise, pois reporta à teorização de Freud que associa a impressão de inquietante estranheza produzida por alguns textos literários à presença de elementos inconscientes na realidade proposta pela ficção. Efeito resultante do encontro com aquilo que é íntimo e familiar oculto no que é aparentemente novo e desconhecido. Nessa direção, os escritores seriam dotados de um particular talento para construir os caminhos que levam os elementos mais íntimos e familiares a produzirem o paradoxal efeito de estranhamento em suas narrativas.

Por encontrarem seu fundamento no campo da palavra e da linguagem, tanto a psicanálise quanto a literatura circunscrevem espaços nos quais se torna possível testemunhar o registro inconsciente. Como diz o narrador de Brancura: “Essa escuridão me amedronta. Tenho medo, é simples assim. Mas é um medo tranquilo. Um medo sem angústia. Mas será que estou mesmo com medo. Ou não passa de uma palavra, esse medo.” (p. 19) Na companhia de Jon Fosse, somos convidados a percorrer palavras e afetos, sem rota previamente definida, deixando-nos surpreender e estranhar durante a travessia proposta nesse breve porém grande romance.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat

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