Opinião
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5 de dezembro de 2023
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07:00

A psicanálise concede a palavra às crianças e aos adolescentes (Coluna da APPOA)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Alfredo Gil (*)

Há quase vinte anos exerço uma pequena parcela da minha prática de consultório na periferia leste de Paris, em Villeneuve Saint Georges, situada a 15 quilômetros da capital. Esta cidade, de 30 mil habitantes, tem algumas características que lhe são próprias: um alto índice de precariedade social, a presença de mais de 80 nacionalidades e uma grande diversidade de línguas e culturas. Além disso, o nível socioeconômico é 30% inferior à média nacional e a presença de imigrantes é superior. 

Há poucos meses ela foi brindada com uma publicação de um amigo e colega, psiquiatra e psicanalista, Louis Sciara. Trata-se do seu terceiro livro, intitulado Entendre la parole des enfants et des adolescents: une pratique en centre médico-psycho-pedagogique (ed. Érès, 2023), (Escutar a palavra das crianças e dos adolescentes: uma prática em centro médico-psico-pedagógico). Conhecidos pelas suas iniciais, os CMPP são ambulatórios de consultas pluridisciplinares que acolhem crianças de zero a 20 anos com suas famílias e tratam diferentes formas de sofrimento de ordem psicológica. Louis Sciara foi, até a sua aposentadoria, há dois anos, responsável por um destes centros localizados em Villeneuve Saint Georges. A associação gestionária deste centro administra outros tantos em outras cidades, num dos quais eu trabalho. Já conhecia Sciara de outras bandas, mas foi nesta associação que nos encontramos realmente. Organizamos jornadas de estudos clínicos e inúmeras reuniões com os administradores no intuito de garantir a qualidade de nosso trabalho, além de dividirmos outras atividades, como uma jornada junto à classe política no Senado de Paris, tendo por objetivo sensibilizar nossos representantes do Estado frente aos estragos que a orientação política e ideológica vigente vem causando nos últimos anos em diferentes âmbitos do serviço público, e, particularmente, no que nos concerne, nas instituições de saúde mental. 

Testemunhos me chegam ainda hoje de profissionais de outros centros e de professores que ensinam nesta cidade, além de instituições como a da proteção de menores, lamentando a aposentadoria de Sciara. Eles relatam uma dificuldade em reatar uma qualidade interlocutiva que a presença na cidade, durante 15 anos, deste franco-italiano nascido na Tunísia, havia criado. De fato, seu espírito inquieto sempre foi movido por um imenso desejo e capacidade em criar laços de trabalho, inclusive em contextos adversos. Quantas vezes, a caminho para casa, exausto, após horas de reunião, o telefone tocava e era Louis querendo ainda compartilhar suas impressões, e, sobretudo, saber o que o outro tinha pensado da dita reunião. Entendre la parole des enfants et des adolescents traz a marca desse desejo pelo trabalho, sempre coletivo. Por isso, se o livro leva a sua assinatura, sabe-se que ele o redigiu com a participação acirrada de seus (ex)colegas do centro pelo qual qual era responsável, além de outros colegas desta associação.  

Neste livro, o leitor toma conhecimento, por meio de uma escrita fluida e rigorosa, das diferentes situações clínicas às quais somos confrontados nesse exercício: o tratamento de diferentes distúrbios de linguagem e problemas de aprendizagem, o caminho árduo de acompanhamento com autistas por uma abertura relacional com seus semelhantes, os psicóticos em busca de uma inscrição social, o acolhimento de crianças por ordem de justiça e um leque de dificuldades próprias da adolescência, além das demandas de transgêneros, etc. O leitor segue a complexidade dos diferentes casos aí abordados do ponto de vista da psicopatologia, complexidade na qual as categorias diagnósticas participam da reflexão, sem que elas apaguem, no entanto, a singularidade daqueles que buscam um tratamento. A composição de uma equipe de CMPP com profissionais de diferentes especialidades – psicomotricistas, fonaudiólogos, psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais – não recorta o sujeito em pedaços. Pelo contrário, ela busca melhor orquestrar, graças às suas especificidades, as dissonâncias causadoras de sofrimento para criança e por vezes de exclusão do âmbito social como a escola. 

Para tanto, e para além da coerência da prática interna ao centro, o livro ressalta a interlocução indispensável com as demais instituições que participam do desenvolvimento e bem-estar da criança, sejam as escolas, os serviços de proteção da infância, as famílias de acolhimento. Uma tal articulação discursiva é essencial, minuciosa e laboriosa na medida em que cada ator neste trabalho de acompanhamento deve saber manter-se em sua função, saber respeitar a disparidade necessária para evitar confusão de lugares na conduta do trabalho. Trata-se assim de questionar permanentemente o intrincamento e a distância entre os diferentes discursos que constituem a esfera coletiva e o psiquismo individual de quem é tratado. 

O estatuto que rege as missões e o funcionamento dos 410 CMPP em todo território nacional foi redigido em 1956. Nele, a psicanálise é indicada como parte integrante da formação dos seus psicoterapeutas. Porém, se Sciara intitula o último capítulo “CMPP: seu futuro em discussão” é porque nos últimos vinte anos, e de modo infinitamente acentuado com o Macronismo, ou seja, desde 2017, esta cultura experiente de setenta anos de tradição clínica, respeitosa da singularidade de cada sujeito – indissociado de seu passado, língua e cultura – é ameaçada e reduzida a uma ideologia organicista e monoideísta, sem fundamento clínico. Essa ideologia que foi germinada e promovida em terras americanas, vem tendo sua promessa de eficácia amplamente contestada pela própria literatura anglo-saxã.  

Nota-se assim o contraste entre as duas visões. De de um lado, uma abordagem em que o íntimo é convocado para o encontro que caracteriza uma “conversa terapêutica” entre o paciente e seu terapeuta buscando decifrar e reordenar os elementos causadores de sofrimento e de impasse nas relações sociais e que não podem ser concebidos sem o mundo que o envolve; de outro lado, o cientismo atual, hegemônico nas altas instâncias governamentais de saúde, que concebe  e reduz a existência e o sofrimento psíquico estritamente à consequência de um disfuncionamento no desenvolvimento neuronal. Quem duvida que a massa cerebral das crianças de Villeneuve Saint Georges, que evoluem nas condições sociológicas apontadas no primeiro parágrafo, seja diferente daquela das crianças do chique oeste parisiense ?

Por essa razão, este terceiro livro de Louis Sciara, mais ainda que os seus dois precedentes, eleva tanto o ato clínico como as instituições que o sustentam a sua dimensão política.

Fica o lamento pelos colegas não “francófonos” estarem privados da leitura desta obra, não traduzida para o português, que pode ser de grande interesse para as suas práticas. 

(*) Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: [email protected] 

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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