Opinião
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27 de novembro de 2023
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09:29

O novembro negro da perspectiva da economia política (por Marcelo Milan)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Marcelo Milan (*)

Como não poderia deixar de ser, esta coluna do mês de Novembro volta à imprescindível questão dos conflitos raciais na bananilga, após uma pausa no ano passado. O momento político estava conturbado, com estradas e avenidas transformadas em verdadeiras invernadas, em reação bestial à eleição de Luiz Inácio. O movimento “ninguém larga o casco de ninguém” pós-pleito, e os currais em frente aos quartéis, funcionavam como uma força gravitacional para o golpe de 8 de janeiro, o que justificava a ênfase naquela conjuntura. E mesmo após os terroristas serem pastoreados para o estábulo ou para a cadeia, a situação política segue emergencial. Se não aqui, onde apenas se rumina sobre metas de déficit, certamente no mundo. O inaceitável holocausto palestino imposto pelos nazisionistas (que não deve ser generalizado para o povo judeu de Israel ou do mundo, que tem brindado a humanidade com grandes gênios como Lev Bronstein, Emma Goldmann, Noam Chomsky e tantos outros), o acelerado agravamento da crise climática e a Argentina acentuando cada vez mais sua decadência secular. 

Na bananilga há perspectivas de melhoras no âmbito racial, algumas aparentes, outras efetivas. No mundo da circulação das mercadorias, por exemplo, uma percepção intuitiva sugere um bem-vindo crescimento na presença de negras e negras em anúncios publicitários (certamente não por decisão espontânea de agências e anunciantes…). Para avançar no âmbito laboral, em 2020 uma grande rede comercial desenvolveu programa de treinamento (trainee na linguagem colonizada) apenas para negros e negras (gerando uma onda de doença da vaca louca entre os racistas). Estas tendências permitem vislumbrar mudanças no cenário em que apenas grandes estrelas negras da música e do esporte têm condições de mostrar seu talento. 

No âmbito institucional, a representação política avançou de forma explícita com a formação histórica de uma bancada negra, primeiro em Porto Alegre, depois no Rio Grande do Sul e agora em Brasília. A criação do Ministério da Igualdade Racial em 2023, sob o comando de Anielle Franco, representa um salto de qualidade. Novamente, são avanços importantes, mas que, no primeiro golpe ou reversão política, tendem a ser anulados de forma a converter os ganhos em retrocessos. Não por acaso, apenas sete unidades da federação têm secretarias voltadas ao combate ao racismo. E aí, no próximo ciclo pós-reação, o trabalho hercúleo para repor apenas o que se perdeu. Não há avanço sustentado e estrutural de longo prazo do ponto de vista de superação das barreiras, pois elas estão um nível muito elevado.

As melhoras são sensíveis, é claro. Mas é preciso ponderar que a população negra parte de uma condição muito desfavorável, em que avanços, por mais importantes que sejam, se traduzem em grandes mudanças pela própria naturalização do racismo e da normalização da discriminação. Como ele é estrutural, não pode ser superado por pequenas mudanças incrementais e cumulativas, passíveis de fácil reversão. E como colocava Florestan Fernandes, a integração do negro na sociedade de classes é possível, mas parcial, mantendo a exclusão e impedindo que a inclusão seja completa. Isso exige medidas mais profundas que possam ir à raiz do problema. 

Para além da intuição, o que os dados mostram? Um estudo do ótimo DIEESE, com dados da PNAD contínua do excelente IBGE presidido por Márcio Pochmann, permite identificar aspectos importantes do mercado de força de trabalho. Os negros representam pouco mais de 1/3 dos cargos de gerência e direção. Cerca de 46% trabalham em cargos sem qualquer tipo de proteção econômica (informalidade). Entre os desocupados, 2/3 eram negros. A taxa de desemprego entre as mulheres negras é quase o dobro da taxa média entre a população em geral, alcançando níveis típicos do período da pandemia de COVID-19. Mais de 26% tinham sua força de trabalho subutilizada. E quando arrumam emprego, de cada seis postos, um é de empregada doméstica, recebendo, em média, 30% menos que o salário mínimo de referência. Os salários médios dos negros eram quase 40% menores que os dos não negros em média, alcançado a maior diferença nos empregos no setor privado sem carteira de trabalho assinado. Em todas as posições na ocupação o rendimento dos negros era inferior aos vencimentos dos não negros. As menores disparidades acontecem no caso das pessoas trabalhando sem patrão e sem serem assalariados (conta-própria).

E a acumulação de capital (propriedade de ativos reais e financeiros)? No estudo do DIEESE, menos de 2% das mulheres negras eram capitalistas ou proprietárias de empreendimentos que empregavam força de trabalho assalariada. No caso dos homens negros, menos de 4%. Na cúpula (chamada pomposamente de ‘summit’ pelos colonizados) de uma associação do mercado financeiro, Renato Meirelles argumenta que o Brasil é mais racista do que capitalista, ao avaliar a exclusão dos negros e outros marginalizados do mercado de ativos financeiros. Não parece correto. O capitalismo não é só dinheiro e nem depende de consumo de bens e serviços das pessoas, negras, brancas ou amarelas, para se reproduzir. A questão diz mais respeito às mercadorias produzidas, pois o consumo adquire papel importante ao realizar o valor das mesmas na circulação. A exclusão de negros e negras pelo racismo infla o exército de reserva que reforça a lucratividade via rebaixamento salarial. 

O racismo exclui, de forma substantiva, parte da força de trabalho negra para baratear os salários de negros e brancos, abrindo mão da mais valia potencial e legando parte da população ao Estado policial. Contudo, ao super-explorar a força de trabalho negra pela integração no mercado de trabalho, a discriminação se mantém do ponto de vista da distribuição da força de trabalho, concentrando os negros em ocupações específicas e de menor rendimento. E como herança do escravismo aberto dos séculos XV-XIX, a discriminação avança do ponto de vista pessoal, com a violência simbólica contra os trabalhadores e trabalhadoras negras

Na mesma cúpula, Alan Soares, por sua vez, argumenta que o racismo é uma burrice econômica. Não. Pelo contrário. É economicamente funcional. O suporte do capital e logo do dinheiro são pessoas que não são cegas à raça, ao gênero e a outras características pessoais. O capitalismo canaliza renda e riqueza para pequenos grupos por movimentos de concentração e centralização. O que redistribui são políticas públicas de tributação, gasto do governo e reformas na propriedade dos ativos. Como acertadamente coloca o professor Lúcio Almeida no De Poa, o antirracismo de mercado é antagônico ao combate ao racismo. O próprio título da cúpula já deixa claro esse ponto: o deus mercado financeiro deixa dinheiro na mesa ao excluir negros e mulheres. Excluir. O pacote de medidas pela igualdade racial do Presidente Lula tem certamente muito mais a contribuir para a população negra (não que seja antagônico ao capital, mas cria ou amplia brechas importantes).

O racismo opera nas relações sociais por meio das intersecções de classe, aspecto determinante, raça, gênero, etnia, religião, origem nacional, orientação sexual etc. de forma a dividir para conquistar ou dominar a classe majoritária. O estudo mencionado do DIEESE deixa claro que há sobreposições marcantes entre racismo e sexismo. Em um quadro de desigualdades estruturais, os homens negros se beneficiam muitas vezes da condição das mulheres negras, gerando uma superexploração do trabalho delas. As estratégias de dividir para conquistar tem funcionado. Por exemplo, Donald Trump foi eleito em 2016 com forte apoio da classe operária branca, sendo o racismo um componente fundamental, aliado ao sexismo típico dos Republicanos. Na bananilga, muitos negros e negras votaram em “Voldemort”. Cria-se uma lógica competitiva de conflito e disputas intraclasse, em que cada um luta por si pela própria sobrevivência material e espiritual. Isto contribui para minar qualquer solidariedade de classe e individualizar a barganha que deveria ser coletiva, mantendo a classe trabalhadora na defensiva. 

A tese do dividir para conquistar se soma a muitos outros estratagemas para aumentar a exploração e a lucratividade do capital. Assim, o racismo estrutural se encontra imiscuído no capitalismo bananeiro. A sua eliminação completa não se separa da superação desta formação social. O racismo nada mais é que o bloqueio das oportunidades em um primeiro nível, do potencial criativo e do talento humano no segundo nível quando o primeiro falha (sim, ele contém brechas significativas), e a violência física e simbólica como mecanismo transversal abarcando os dois níveis. 

(*) Bacharel, mestre e doutor em economia

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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