Opinião
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30 de setembro de 2023
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13:10

Racionalidade deliberativa e “o momento de ouro para nós” (por Domingos Alexandre)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Domingos Alexandre (*)

O cotidiano é feito de avanços e recuos e as mudanças, do que quer que seja, podem se dar para frente e para trás, para melhor e para pior, meio que contrariando o filósofo quando afirmou que “tudo tende ao bem”. Não podemos ignorar o que Darwin ensinou sobre a seleção natural em sua obra A Origem das Espécies, conteúdo cujo conhecimento deveria ser pré-requisito para todo aluno com intenção de concluir um ensino médio de respeito. Segundo o genial inglês do século dezenove, a natureza vai propondo, através de centenas de milhares de anos e de processos físico-químicos e genéticos, criações novas que, submetidas à seleção natural, acabam se consolidando, fato que explica o comprimento do pescoço da girafa, o chifre do rinoceronte, a orelha em formato de parabólica dos felinos, por exemplo.

No século XX o filósofo norte-americano John Rawls, no livro Uma teoria da justiça ensinou que no dia a dia da vida em sociedade, nossas atitudes e ações ocorrem de tal modo que guardam certa semelhança com os processos da natureza, ou seja, tendo em mente a Justiça, empregamos em nossos planos de vida o que ele chamou de Princípio Aristotélico, que entre outras coisas diz: “…presumindo-se que desejamos obter o respeito e a boa vontade das outras pessoas, ou pelo menos que queremos evitar sua hostilidade e desprezo, tenderão a ser preferíveis os planos de vida que promovem não só os nossos, mas também os objetivos delas”.[1] Apenas esta observação já favorece o entendimento da nossa predisposição para a mudança.

Convém lembrar que até meados do século XVIII o Regime Feudal estava tão arraigado no Ocidente que era impensável qualquer mudança significativa. Havia os senhores feudais, grandes proprietários de terras e os servos da gleba, até que com o surgimento da máquina a vapor, dos teares mecânicos e outros equipamentos, teve início a Revolução Industrial e com ela o surgimento da burguesia e do Capitalismo.

Hoje a situação é tão absurda quanto era no Feudalismo. Muitos filósofos, historiadores, sociólogos e pensadores têm denunciado a inadmissível concentração da riqueza, como é o caso, para exemplificar, de Noam Chomsky, Thomas Piketty e Michael J. Sandel. Dizem esses pensadores que a concentração da riqueza é tão grande que o poder econômico desses potentados rivalizam com o poder dos Estados. Diante disso, há razões para otimismos? Podemos deliberar com racionalidade e acreditar que “um outro mundo é possível”? A resposta é sim e já há evidências que apontam nessa direção e, de quebra, podemos estar nos livrando do que seria a última Guerra Mundial, afinal Adam Smith transita livremente por entre agentes econômicos da República Popular da China. Outro forte indício de que a mudança está em curso foi o acordo firmado entre Estados Unidos da América do Norte e o Brasil, visando o fortalecimento dos movimentos sindicais e a valorização do trabalho. O principal país capitalista não estará tomando consciência de que precisa absorver e aplicar alguma coisa da doutrina marxista? Os responsáveis pela outrora viçosa economia dos EUA não estariam de acordo com a prática de eqüidade do marxismo? Já não seria tempo dos irmãos do norte imitarem a humildade (e o tirocínio) dos chineses e admitirem a procedência da isonomia para todos os seres humanos?

Assim como a terra no feudalismo, hoje a concentração de grandes fortunas financeiras caracteriza o capitalismo. E qual seria o bem que ocuparia a função que hoje é do dinheiro e que serviria para identificar um novo período econômico, político e social? Olhemos à nossa volta e analisemos tudo o que existe e que possui valor econômico, ou seja, todos os objetos que compõem a riqueza, constataremos que tudo é feito de minérios (ferro, aço, ouro, lítio etc), de madeira, de vidro, de tecido, de plástico, de produtos químicos, tudo disponível na natureza. Há praticamente quatro séculos Thomas Hobbes garantia que todo o ser humano deveria ter direitos iguais para usufruir dos bens presentes na natureza. Toda a riqueza patrimonial é feita da matéria-prima encontrada na natureza e de trabalho. Não estamos questionando a importância do lucro como ganho legítimo de quem empreende, de quem tem iniciativa e como fator que motiva e promove o desenvolvimento. A conta que não fecha é que o trabalhador, por mais especializado e sofisticado que seja, terá que trabalhar toda a sua vida para garantir apenas uma situação econômica modesta, se tudo correr como se espera. Enquanto o detentor do capital aufere seu lucro da mais-valia extraída do tempo de vida de um, de centenas, ou de milhares de trabalhadores, gerando a atual perversa e indefensável concentração da riqueza. Tal como Deng Xiaoping teve a grandeza de reconhecer algumas virtudes do Capitalismo, é chegado o momento das grandes lideranças e dos Estados constituídos reconhecerem o valor do Trabalho.

Há ainda outros indícios a testemunharem que o capitalismo, assim como hoje é praticado, não se sustenta. Há poucos dias um importante veículo de imprensa dos EUA divulgou que o número de mortos na guerra da Ucrânia é por volta de cento e noventa mil mortos. Cento e noventa mil vidas. Cento e noventa mil seres humanos e a possibilidade de piorar é grande. A disputa pelo poder, por riqueza, por hegemonia nos dias atuais está fora de controle e reúne os principais elementos com potencial para outra guerra planetária que provavelmente seria a última.

Importantes e perspicazes lideranças globais têm defendido mudanças na Organização das Nações Unidas, como ampliação do seu Conselho de Segurança e têm deixado claro a necessidade daquela entidade ter uma governança eficaz. São propostas válidas, importantes, necessárias, mas insuficientes.

A maior parte da humanidade talvez não perceba, mas a mudança está ocorrendo. Se quisermos evitar o desastre de um mundo conflagrado, precisamos permitir que viceje um novo sistema econômico, político e social no qual isonomia, equidade, democracia e justiça social sejam uma realidade. Um mundo onde o trabalho seja reconhecido e a ele seja dado o seu justo valor.

Nota

[1] Uma teoria da justiça. John Rawls. Martins Fontes. Trad. Jussara Simões. 1997. P. 526.

(*) Bacharel em História

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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