Opinião
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19 de setembro de 2023
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07:28

O hábito faz o monge (I) e Lupi – uma biografia musical (Coluna da APPOA)

Divulgação
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Robson de Freitas Pereira (*) 

Antigamente havia um ditado que afirmava: o hábito não faz o monge. Numa interpretação rápida, aludia a uma essência que haveria em cada um, por baixo das roupas – vestes, hábitos que usavam para cobrir “suas vergonhas”. Nosso ser não seria prisioneiro de nossos hábitos.

Ledo engano, a psicanálise (e não somente ela) demonstrou que somos um tipo de cebola que ao se retirarem as cascas e todas as camadas, surpresa! O núcleo está vazio. E lá vamos nós em busca da essência perdida, da identidade que nos daria garantias de uma vez por todas. 

Muito rapidamente, com a velocidade virtual das transações financeiras, a realidade mostra todo o tempo o quanto somos identificados por nossos hábitos. A roupa que você usa identifica o teu ser. Mesmo que você não se preocupe com a moda, visto como um defeito consumista, vai encontrar sua turma que também desdenha estar “à la mode”. Mas nem só de vestuário vivemos. Podemos falar na dimensão dos hábitos enquanto esta coleção de costumes, rituais, práticas cotidianas que nos sustentam. Pequenos hábitos, pequenos gozos que perfazem a vida. Para o bem ou para o mal. Desde um café depois da refeição, até os necessários rituais para sair de casa. Ou “entrar em campo”: nos esportes coletivos ou individuais isso é visível. Fica explícito, em primeiro plano, nas telas. 

Entrar em campo também poderia ser uma metáfora das relações sexuais, da forma particular que lidamos com o gozo que nos habita e que vai além do princípio do prazer; inclui uma dimensão de desconhecimento e mistério. Afinal, cada um tem seu jeito, se vira como pode no encontro com outro corpo não importa se hétero, homo, ou qual fantasia calada ou explícita. E neste campo, nas relações consentidas, não podemos estigmatizar de perversa qualquer fantasia ou prática sexual. 

Ideal enunciado, delicado, ainda mais hoje em dia, quando lidamos com uma dificuldade importante: uma tendência, um hábito de querer forçar os outros a se comportarem, gozarem dentro das regras de minha crença- política, religiosa ou de costume moral. Uma das interpretações possíveis: quando o outro goza da vida e do corpo de um jeito diferente, isto pode se tornar insuportável. Então vamos à guerra; destruir ou impor pela força minha forma de ser. Jeito invejoso de se comportar, para dizer o mínimo. Da identidade necessária para que possamos estar no mundo, passamos a uma fixação perigosa quando se torna chave completa para interpretar (e transformar) nossas relações sociais. 

Como combater estes impulsos destrutivos? Com que armas lutamos, se ainda não estamos dispostos a nos valer das armas de fogo. Os psicanalistas, escritores, jornalistas e poetas tem a palavra como arma para dizer o indizível e enfrentar os impulsos e demandas de servidão forçada ou voluntária. 

Um destes momentos, de afirmação das possibilidades de explorar os limites e potencialidades de nossos recursos discursivos aconteceu semana passada no evento DiálogosLupi, Elis e a Música de Porto Alegre promovido pela editora Arquipélago. Arthur de Faria e Luiz Mauricio Azevedo dialogaram e nos mostraram que a conversa e aceitação das diferenças é uma realidade quando há disposição e talento para sustentar este desejo. Arthur é músico, jornalista e autor de Lupicínio – uma biografia musical – além da biografia de Elis e de Porto Alegre, uma biografia musical, vol.1 (o segundo volume já está pronto). Com Lupi fez uma pesquisa musical e da história deste personagem que colocou a música portoalegrense e gaúcha no cenário nacional. Trabalho de reconhecimento da importância que o autor de Nervos de aço ainda não havia recebido nesta dimensão político/cultural. Embora, no primeiro semestre deste ano, o compositor também tenha recebido uma linda homenagem e atualização de sua obra na exposição “Lupi: Pode entrar que a casa é tua”, com curadoria de Carlos Gerbase. Alí, entre outras preciosidades, compareceu a elegância do ficcionista da voz macia.

 Luiz Maurício, autor entre outros livros de Estética e raça – ensaios sobre a literatura negra soube encarnar o entrevistador que abre espaço para que o entrevistado pudesse despir-se da condição de músico e jornalista e ficasse à vontade para responder e elaborar várias questões delicadas de nossa atualidade. Só para citar uma: Lupicinio é o autor do hino do Grêmio, num momento em que o clube ainda não aceitava jogadores negros. Mesmo assim, ele cantou “até a pé nós iremos/para o que der e vier”. 

Lembrando que estavam conversando na data de aniversário de Lupi (16 de setembro), Luiz Maurício iniciou o diálogo perguntando se a música negra ficou mais palatável ao público com a presença de Lupi. Arthur comentou que o samba já existia no Brasil: porém (ah, porém/há um caso diferente) somente a partir de 1936 ele se torna popular, no Rio Grande do Sul, com as composições de Lupicínio. Isto veio acompanhado por modificações econômicas e sociais importantes; vide o lançamento da Folha da Tarde que pela primeira vez na história do jornalismo abriu espaço para a música popular, o samba principalmente. Tendo profissionais da imprensa negros como Rivadávia de Souza que fez a primeira entrevista de Lupicínio publicada em jornal. A partir daí, os jovens universitários da época quiseram ser sambistas e iam conversar com o bedel da faculdade de Direito da UFRGS, seu Lupi. 

Arthur também conta uma observação importante, feita por Vitor Ramil. Até a década de 50 do século passado, houve um protagonismo dos artistas pretos na música feita no Rio Grande do Sul. Maiores informações, leia o livro. Porque interessa aqui enfatizar a complexidade do artista em sua personalidade, em sua criatividade. Talvez Lupi fosse cancelado hoje, pelo machismo vigente entre os músicos de sua época. Entretanto, Luiz Mauricio e Arthur advertem que não dá para julgar um artista do passado somente com os critérios, com a baliza de nossas crenças atuais. Senão estaríamos constantemente fazendo revisionismo histórico, encaixando e encaixotando uma obra com os padrões éticos e estéticos que nos são caros hoje. Como cantou o poeta, esses moços/pobres moços/ah se soubessem o que eu sei. Bem entendido que imaturidade e intolerância não é privilégio etário, vide a média de idade dos manifestantes que pediam a volta da ditadura à frente dos quartéis. 

Um compositor como Lupicinio, uma cantora como Elis Regina expandem nossas possibilidades, aguçam nossa sensibilidade. Como muitos autores escreveram, passando por Roland Barthes, Giorgio Agamben e Herbie Hancock nossa capacidade simbólica e linguajeira não se esgota na palavra. Porém, há que haver pessoas com uma real disponibilidade de escuta do diferente para que o sonho seja possível e o reconhecimento da alteridade aconteça. O mal-estar jamais será completamente apagado, mas os fragmentos de experiência ajudam a ultrapassar a sedução totalitária.

(*) Robson de Freitas Pereira é psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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