Opinião
|
22 de agosto de 2023
|
07:02

O que se diz, o que se ouve (Coluna da APPOA)

Imagem: Pixabay
Imagem: Pixabay

Alfredo Gil (*)

Recentemente, discutia com a minha filha sobre as diferentes linhas do(s) movimento(s) feminista(s) e suas evoluções nos diferentes contextos históricos. Em grande parte, concordava com sua análise crítica. Mas, sobre alguns aspectos, tinha uma posição menos categórica e afirmativa que ela. Nossas argumentações, fossem elas a favor ou contra, eram debatidas. Percebia, sem dificuldades que, a certa altura, suas leituras sobre o tema estavam mais aprofundadas que as minhas. Porém, num dado momento, cometi um “erro”, empregando uma palavra que a fez pular da cadeira. Nada, a seus olhos, poderia justificar o uso daquela palavra. Para ela, eu deveria estar ciente que o termo era sempre pejorativo, humilhante e sexista. A incompreensão tomou conta do diálogo, do debate contraditório, as vísceras tomaram conta da razão, e a discussão acabou ali mesmo. No dia seguinte, ela me envia uma foto de um capítulo de sua leitura em andamento do livro da ensaísta e jornalista, Mona Chollet, intitulado La révolte des “bonnes femmes hystériques”.  

Em muitos aspectos tenho admirado um certo rigor no uso das palavras exigido por uma nova geração. Quando cedemos às palavras incorremos no risco de cedermos a conteúdos fundamentais que elas tentam representar, que traduzem uma realidade cotidiana marcada por desigualdades. Porém, se algumas palavras devessem ser banidas do campo lexical, pelo fato de supostamente terem um, e um único significado, que se opõe aos meus valores, assistiríamos a uma forma de anulação do âmbito polissêmico intrínseco à representação, cuja palavra, seja escrita ou falada, é sua expressão interlocutiva. Temos que aceitar que a polissemia não é uma escolha, ela é interna à estrutura da linguagem, leque de possíveis tanto para pensar como para contar o que se vive, e que, por este mesmo motivo, nos exige paciência para nos aproximarmos da interpretação almejada, e se necessário, para dissiparmos equívocos. Por outro lado, não devemos esquecer que o peso de uma fala depende também de quem a articula, e, por conseguinte, de sua intenção enunciativa. Em outros termos, uma palavra não tem existência própria. Qualquer boçal de extrema direita e de uma direita vigente pode terminar seus discursos eleitorais com um vive la République, vive la France. Todavia, “república” e “França”, que podem ser concebidos como valores em si, só podem ser atestados quando constata-se coerência com as ações políticas de quem as enuncia. 

O bate-papo com minha filha fez eco com a recente leitura do último livro do filósofo Roger-Pol Droit e da jornalista Monique Atlan, Quand la parole détruit, no qual os autores fazem uma análise minuciosa sobre os efeitos nefastos das redes sociais onde o estatuto dialógico da palavra degradou-se profundamente e em grande velocidade. Vários aspectos importantes teria a ressaltar desta leitura. Aqui me atenho ao desenvolvimento feito sobre o caráter imediato das reações daqueles que frequentam as ditas redes. Segundo os autores, nesta esfera virtual assiste-se menos a um debate de ideias e mais à criação de um espaço onde as individualidades podem satisfazer suas necessidades afirmativas através de expressões bipartidas, onde se é contra ou a favor do que está em pauta. Ser contra ou a favor, sem nuance, tem-se tornado importante, quase uma necessidade, para muitos seres. Neste livro, eles recordam também que esta forma de participação bipartida aumentou exponencialmente a partir de 2009 com a introdução pelo Facebook do botão “curtida”. O próprio criador, Justin Rosenstein, o qualificou como “infernal e aditivo”, lamentando as consequências inesperadas, sobretudo quando se tratam de temáticas espinhosas em nossa sociedade como as questões identitárias, tais quais gênero e cor da pele. Desde então, assiste-se a uma guinada na qual a “curtição” como afirmação do meu gosto transformou-se em arena onde o polegar para baixo visa à integridade daquele que gestualiza o contrário.    

Se a manifestação dos sentimentos exacerbaram-se, a possibilidade de suas expressões, com o advento das redes sociais, acelerou-se. Para se ter uma noção da dimensão relativa às transformações que as redes sociais possibilitam, vale lembrar que as primeiras teorias conspiratórias referentes aos atentados do 11 setembro de 2001, em Nova York, surgiram 27 dias após os ataques. Este atentado precede a criação das redes sociais. Enquanto que, em apenas 24 horas após os atentados contra o jornal satírico, Charlie Hebdo, cometidos em janeiro de 2015, já se haviam identificado umas 30 teorias conspiratórias.

Constatamos que a capacidade radiante dessas redes atingem fins cujas consequências sobre o real podem ser perigosas se não observarmos atentamente a proliferação de imagens que nos cegam e de mensagens que nos tornam surdos. Se a internet reduziu o espaço entre nós, modificando nossa relação com o tempo e estendendo nosso mundo sensível, os mesmos fenômenos e a mesma mecânica observam-se no debate público, inclusive institucional.   

Esta constrição do tempo associada à ânsia de opinar num jogo superficial de oposição tem minado o esforço necessário para obter-se uma reflexão elaborada que exige tempo de análise. Se acrescentarmos a este contexto sua coloração carregada por hostilidades, o tom dos enfrentamentos torna-se monossêmico. Por exemplo: o debate sobre a pedofilia. Debate ? Exceto para definir o quadro da condenação e as formas de supressão do desejo-pulsão do criminoso, pensar, debater, historiar a este respeito, é compreender o ato e abrir-se a reflexões que podem legitimar tais transgressões. É o que o sociólogo Pierre Verdrager enfrentou pelo simples fato de dedicar-se este tema com a publicação do livro L’enfant interdit – comment la pédophilie est devenue scandaleuse (A criança proibida – como a pedofilia tornou-se escandalosa). Ele precisou explicar que fazer deste tema um objeto de pesquisa em toda sua complexidade, evitando anacronismos, revelando que em certos momentos e lugares a pedofilia não era escandalosa, não fazia dele um pedófilo. 

Conclusão, sem pressa e arejada: o apressamento que caracteriza conclusões precipitadas é o combustível de nossa ignorância que oculta um íntimo cujos componentes hostis e agressivos podem ser facilmente externalizados. Esta operação alivia o meu eu de minhas contradições, e, por conseguinte, de minhas responsabilidades. Ora, num regime monossêmico prevalente, não podemos nos surpreender que esta dinâmica se desenvolva com sucesso  . 

Ps:  É triste enviar este texto quando nos chega a informação do falecimento do intelectual e economista Daniel Cohen; ele soube ler, ouvir e interpretar de modo agudo a cupidez neoliberal e denunciar as desigualdades. Formou grandes economistas, entre os quais o Prêmio Nobel, Esther Duflo.  De sua vasta produção, mesmo para leigos como eu, vale anotar La prospérité du vice, Une introduction (inquiète) à l’économie (2009), Homo Economicus, prophète (égaré) des temps nouveaux (2012), Le monde est clos et le désir infini (2015), Il faut dire que les temps ont changé… Chronique (fiévreuse) d’une mutation qui inquiète (2018), Homo numericus : la « civilisation » qui vient, (2022). 

(*) Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: [email protected]  

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 

Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: [email protected]  


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora