Opinião
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3 de março de 2023
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10:26

Jorge Furtado e o seu romance do espírito da época (por Tarso Genro)

Foto: Júlia Furtado/Divulgação
Foto: Júlia Furtado/Divulgação

Tarso Genro (*)

Algumas grandes obras literárias, quando a Coruja de Minerva lança seu olhar para compreender o passado, sopram as brumas da ideologia e abrem as cortinas das “gangas” místicas que impedem de ver serenamente o presente. Poucas obras, porém, vem à lume no momento exato de um tempo que foi tornado transparente pela vida real, antes do artista desvelá-lo. Quando coincidem obras artísticas e mundo real imediato é um choque. É o momento de fusão da vida com a arte, da arte com a emoção imediata, do cotidiano com o “discurso civil”. E da prosa com a poesia (por mais amarga que seja) que, se não ajuda a mudar o mundo imediatamente, muda imediatamente a nossa posição perante o mundo. Digo isso a propósito da edição do livro supostamente de ficção e supostamente de notícia histórica ficcional, de Jorge Furtado, cujo nome é ” As aventuras de Lucas Camacho Fernandez”.

Escrevo no momento em que a descoberta de trabalho análogo à escravidão explode na Serra Gaúcha, com um misto de medievalismo social e fascismo atávico, defendido pelas lentes de uma ignorância estarrecedora. Certamente esta é uma posição de uma minoria daquele povo da região mais rica do Estado, mas que não surpreende quem a observa como uma região que deu 70% dos seus votos a um protetor de vírus mortais e defensor da tortura. A reação não pode surpreender pessoas minimamente sensatas quando vem a lume fatos que nunca são clandestinos à própria comunidade que ali vive. E pasmem: isso nada tem a ver com o espírito cordato do povo trabalhador da região, como o nazismo nada tinha a ver com o povo alemão, o mais culto da Europa antes dele aderir massivamente ao nazismo. Mas porque os primeiros porta-vozes da Serra não foram contestados pelas suas próprias elites conservadoras?

Quando se “acusa” a Serra de ter sido sensível aos apelos de um golpe e ter apoiado massivamente o bolsonarismo, não se quer dizer que seu povo é um povo devoto do mal, nem que a sua população tenha se tornado uma horda de bandidos insensíveis como foi seu Presidente de preferência. Longe disso, o que se diz é mais problemático, mas não menos grave: é que os valores adotados pela Serra, com sua autopromoção do culto do trabalho e a sua propaganda – originária da parte majoritária das suas classes “superiores” – erguem-se sobre os andaimes de um falso projeto comunitário. Um projeto que quer iludir que ali reina uma ideia de harmonia social, respeito aos direitos humanos e muita solidariedade com os deserdados e excluídos, regra número um de qualquer religião cristã.

Jorge Furtado (“As aventuras de Lucas Camacho Fernandez”, Companhia das Letras, 2022,179 pgs) nos fala de Lucas, ex-escravo, que no fim da sua trajetória épica – pela qual buscou numa ilha distante alguns baús de joias escondidos pelo corsário inglês Francis Drake – definiu sua vida numa hora decisiva, de busca da sua redenção quando viu – nas costas do seu provável assassino também um ex-escravo – a marca de um L (de Lucy, sua mãe). É o desfecho: o assassino de nome iorubá Puxi, ali já é um caçador de escravos e é também o tio que Lucas vinha buscando na sua saga, que vem do quinto círculo do inferno de Dante e chega até Shakespeare, num bordel que lhe abrigou numa tormentosa noite na Ilha da Inglaterra. O romance de Jorge Furtado, um dos intelectuais mais importantes do País, como diretor de cinema, escritor, roteirista, que sempre se recusou a ser “intelectual de bem”, naquele sentido acolhido pelos discípulos de Olavo de Carvalho, crava a sua grande obra literária.

Sempre me seduziu em Hegel a sua concepção de “espírito da época” ou de “espírito do tempo”. Todos os produtos culturais dentro de um determinado período histórico integram, para Hegel, um arsenal de ideias comuns que marcam uma época, mas não se projetam necessariamente além do seu tempo. Elas constituem assim – não a definição final da época – mas uma espécie de ajuste da subjetividade, para realizar uma fase específica daquilo que mais tarde seria o “espírito do mundo”. Para ele, as “fases” vão se aperfeiçoando na História e marcando-a com seus “conceitos”. O efeito político destes conceitos, em cada ser humano, grupo social, classe (ou mesmo civilização) não foi – todavia – a preocupação central de Hegel. Todo o desfecho da sua interpretação do mundo da História- vivido de forma contraditória pelos humanos – repousaria na fundação do Estado Moderno. Para ele, o erguimento deste Estado seria a constituição da liberdade, que se expressaria no reconhecimento – pelos súditos – da sua soberania legítima. Este reconhecimento estaria na vida cotidiana, na luta pela sobrevivência, nos afetos ganhos e frustrados, nas relações de comércio, na integridade da família e na busca, tanto da riqueza como da sobrevivência.

Na sua monumental “Estética”, Lukács defende que toda a grande obra de arte “obedece e amplia, ao mesmo tempo, as leis do seu próprio gênero”. O grande artista, ao querer satisfazer as exigência do momento, com seu processo criativo, supera o espírito da época cristalizado na arte e universaliza a compreensão, tanto das barbáries cometidas pelos protagonistas envolvidos nos acontecimentos presentes – como ocorreu nos séculos de fundação do Estado Moderno -, como as grandezas e heroísmos humanos ali revistados, na sua sua sucessão, para forjar o “espírito do mundo”. A crônica do microcosmo da “Rua das Ilusões Perdidas” de Steinbeck (ou da sua “macro” crônica no nada sutil “Vinhas da ira”), o épico e grandioso “O Leopardo” de Lampedusa” e o histórico “A Marcha” de E.L. Doctorow, são algumas destas grandes obras literárias que “obedecem e ampliam as leis do seu próprio gênero.” É o que faz Jorge Furtado nesta obra axial.

Aqui é expandido, tanto o sentido da crônica do cotidiano opressivo, em Steinbeck; a visão histórica de ciclos, em Lampedusa (com a emergência da unificação italiana e do seu Estado Moderno); bem como as poderosas ambiguidades da revolução americana em Doctorow. São algumas, entre as milhares de grandes obras que superam o seu tempo e forjaram as ideias que movem o “espírito da época.” Com este livro de Jorge Furtado já temos no nosso Rio Grande, da Serra, do Mar e do Campo, uma delas que lapidam a História. E colocam a literatura gaúcha desta década no centro da grande literatura latino-americana, porque o romance de Jorge supera, obedece e amplia, as leis do seu próprio gênero.

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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