Opinião
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3 de janeiro de 2023
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18:39

Pais e filhos: uma homenagem pessoal ao Rei Pelé (por Marcelo Milan)

Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Marcelo Milan (*)

O Deus Negro do futebol se foi. Mais do que a fuga do antigo ocupante da faixa presidencial, o final do ano de 2022 ficará marcado no Brasil e no sistema solar pela morte de Edson Arantes do Nascimento. O homem que deu vida ao legendário Pelé e um sentimento ímpar de alegria a um País e gratidão ao mundo. O futebol sempre foi uma das características definidoras dos brasileiros, e talvez nem mesmo a histórica posse de Lula, outro gigante, possa servir de bálsamo para aplacar a dor. Pelé foi o único tricampeão mundial de seleções, assim como Lula é o único brasileiro três vezes eleito presidente, contra tudo e contra todos. Experiências que não mais se repetirão. Não é coincidência que não exista certeza sobre as datas de nascimento dos dois sentimentais (chorões), no final do mês de Outubro, marca do subdesenvolvimento. Edson deixa um enorme vazio. Um buraco que desafia a física, pois possui um peso esmagador. Um vazio que oprime e aperta. Justifica o substantivo pesar. E como pesa. E que vem se somar, ao torcedor santista principalmente, a uma sequência desde 2019, com a passagem de Coutinho, e a do gaúcho Dorval em 2021. Uma época inteira de glórias morre aos poucos. 

Todos os adjetivos possíveis e imagináveis já foram atribuídos ao Rei. Então, o que mais resta dizer nesta despedida em sua homenagem? Um tipo diferente de herança. Pelé tem um papel fundamental nas relações humanas, no fortalecimento dos laços entre pais e filhos. A própria lenda Pelé surge a partir da motivação de Edson Arantes de presentear seu pai com uma taça do mundo. De filho para pai. No País do futebol, em grande parte graças a Pelé,  é praticamente um chavão a expressão “Não vi Pelé jogar, mas ouvi as histórias pela boca do meu pai”. Comigo não foi diferente. Nasci no mesmo mês e ano que Pelé encerrou sua carreira no Santos Futebol Clube. Espero que a alegria da minha chegada ao mundo, segundo filho e primeiro homem, tenha compensado a tristeza de meu pai não mais poder se encantar com o Rei nos campos. E de já não poder compartilhar as alegrias do futebol com seu próprio pai, falecido no ano anterior. Então, mesmo antes de adquirir consciência futebolística, já escutava de meu pai as mil e uma maravilhas da epopeia do Rei e da máquina de fazer gols que era o Santos da época, geralmente apresentada na forma do famoso quinteto (mas foram tantas formações divinas nos anos 1950 e 1960 que é difícil escolher). A referência ao Rei era constante: Pelé. Pelé. Pelé. Impossível não ficar curioso sobre aquele ser humano, mesmo sem ter sua imagem e sua ação, e começar a se apaixonar. Pelo futebol e por Pelé.

Antes da revolução da tecnologia da comunicação e da sociedade em rede, a tradição oral era a  forma mais efetiva e afetiva de socialização das crianças no esporte mais popular do País. E os pais se socializavam pelas exibições ao vivo e cada vez mais pelas tecnologias da época, como a radiodifusão e, crescentemente, as transmissões televisivas. O satélite ainda estava iniciando como meio de comunicação. Uma cena comum em minha casa era ver meu pai grudado em um radinho de pilha escutando as transmissões de futebol. E por estas tecnologias anteriores, Pelé se tornou figura pública mundial. Todas as pessoas, de alguma forma ou de outra, acabam ouvindo falar de Pelé e podem reproduzir suas jogadas que foram registradas e preservadas. Aqui a tecnologia mostra o sentido profundo do clássico texto de Walter Benjamin, A Obra De Arte Na Era De Sua Reprodutibilidade Técnica. Os gols e as jogadas do Rei podem ser reproduzidas exaustivamente (eu mesmo faço isso). O audiovisual como indústria cultural e do entretenimento permitiu não apenas mundializar o Rei, já que isto era impossível para o Santos (ou para o time de futebol da Confederação Brasileira de Desportos). O videotape permitiu “ver” Pelé jogar. A internet faz o mesmo hoje. A propósito, na classificação das atividades econômicas do IBGE, há uma categoria agregada abarcando arte, cultura, recreação e esportes. De fato, a bola nos pés, na cabeça, no peito de Pelé tornam os quatro, e tantos outros, uma única coisa e o IBGE é também pelezista sem saber. 

E então o passo seguinte na socialização é ir ao estádio com o pai e ver os jogos presencialmente. Iniciação ao espetáculo in loco. Isso faz muita diferença para a consolidação dos vínculos e laços. Uma reprodução em uma tela, monitor ou telefone móvel, e mesmo uma transmissão ao vivo, não tem a mesma magia da exibição artística ao vivo. A socialização passa do escopo familiar para o social. A festa nas arquibancadas não tem equivalente. Na década de 1980, quando comecei a frequentar os estádios, o Santos não mandava jogos contra os times da capital de São Paulo no Urbano Caldeira (Vila Belmiro). Os jogos eram no Pacaembu ou no distante Morumbi. Com a volta dos mandos na Vila nos anos 1990 e 2000, era possível resgatar um pouco da magia do templo sagrado onde o Rei desfilou, Todavia, os times do Santos eram em geral medíocres. Ou mesmo fracos. Assistir aos jogos tinha um outro atrativo: a possibilidade de que o Rei estivesse em seu camarote, evento raro (nunca tive a honra). Só o burburinho da torcida sobre esta possibilidade já era excitante. O terceiro passo é começar a praticar o esporte. E sonhar jogar em uma equipe profissional. É um aspecto onírico. Talvez desejo muito mais dos pais do que dos filhos. Mas neste estágio as referências são sempre as presentes (eu imitava o Marola, goleiro dos anos 1980). Ninguém queria assumir o papel do Pelé no time. Possivelmente por uma reverência inconsciente. Pelé não pode ser emulado.

A força do futebol enquanto fenômeno cultural e o poder de difusão da tecnologia podem ser ilustrados por outra experiência. Um tio meu, irmão de meu pai, tendo sido também encantado pelo Rei, mesmo depois de convertido ao fundamentalismo pentecostal não abriu mão de torcer fanaticamente pelo Santos. E de ver as transmissões televisivas dos jogos quando era proibido aos crentes assistir TV (antes das compras massivas de canais e de programação por estas seitas), escutar Rock (antes da massificação do Gospel no Brasil) e as mulheres usarem calças. Em 2005, já com a religião aceitando a tecnologia, meu tio planejava a aquisição de um novo aparelho para vermos a copa de 2006 durante minha visita regular de meio de ano ao Brasil (eu sempre voltava para casa durante o verão nos Estados Unidos, onde fazia meu doutorado). O tio faleceu antes do torneio. Mas a tradição de pai para filho já estava consolidada. Meus primos também são Santistas. 

E essa herança é única. Nenhum torcedor ou torcedora de outros times de futebol pode ter a noção do que Pelé representa para o Santos e sua torcida e da gratidão em receber esta herança. Existe uma identidade no profundo sentido da palavra, uma ligação inquebrantável e eterna. Nos chamam muitas vezes de viúvas do Rei. Sim. Com orgulho. Embora fosse cidadão do mundo pela sua arte com os pés (derivada de sua inteligência e condições físicas únicas), não quis ser enterrado em Nova York, o centro do mundo, onde atuou pelo Cosmos, ou em Brasília-DF ou Rio de Janeiro, palco de conquistas célebres, por ser o maior brasileiro que já pisou na ilha de Santa Cruz. Pelé fez questão de ser velado no campo onde se fez jogador profissional e lenda, e enterrado na singela cidade de Santos, sepultado em um mausoléu com vista para o Urbano Caldeira. Como canta o hino do clube, “nascer, viver e no Santos morrer é um orgulho que nem todos podem ter”. Pelé poderia atuar por qualquer clube do mundo e multiplicar sua riqueza material, mas quis o destino que atuasse toda a sua vida profissional no Santos Futebol Clube (o Cosmos representou apenas um empreendimento financeiro). E esse tesouro de carreira se transforma em herança narrativa doada pelos pais aos filhos, como um ritual. Quando Edson Arantes do Nascimento parte em definitivo, uma parte da nossa essência, da nossa formação e da nossa própria conexão afetiva com o futebol, mediado pelos nossos pais, vai com ele. A mais importante fonte das ligações desenvolvidas pelos jogos de memória com nossos pais se perde para sempre. Sem possibilidade de reposição.

Tudo isso certamente tem um forte componente de gênero. Pais e filhos. De fato, não é surpreendente, sendo o País uma sociedade patriarcal. E assim as histórias são contadas sobre o que se passava nos campos de futebol na modalidade masculina. A natureza relativamente recente e a falta de visibilidade e apoio impossibilitam que o mesmo tratamento seja dado à Rainha Marta. E portanto a transmissão da tradição pelezista envolve, quase sempre, pais e filhos. Minhas irmãs não receberam a mesma socialização no futebol e na mágica de Pelé e Cia, mesmo compartilhando o mesmo lar. Futebol era coisa de menino. A mana mais velha nem mesmo torce para o Santos, tendo nascido quando o Rei ainda atuava. Minha mãe, por ter passado parte de sua infância e juventude em Santos, também conhece muitas histórias e talvez transfira seu amor à cidade ao time de futebol, que ela acompanha. Mas não com a mesma intensidade (ou fanatismo meu e de meu pai, até certo ponto no tempo). E, claro, a centenária Dona Celeste teve um papel ativo fundamental na constituição do Rei. 

Como não poderia deixar de ser, a dimensão pessoal se confunde com a dimensão social, nacional e cultural. A época áurea do futebol-arte brasileiro acabou com a aposentadoria de Pelé no início dos anos 1970. Em termos de seleção, houve apenas o espasmo de 1982, com um camisa 10 da estirpe de Zico. Depois, a camisa enfeitiçada pelo Rei não serviu em mais ninguém. Ficou grande demais. A vitória na copa de 1994 teve como um de seus símbolos os muambeiros, que derrubaram um dos poucos homens públicos decentes à época, Osiris Lopes Filho, ao se recusarem a pagar os impostos aduaneiros devidos. Nenhum encantamento naquele time, nenhuma arte. Foi uma conquista quantitativa, sem qualidade futebolística. Nenhum camisa 10 digno (e a seleção da Itália, que o tinha, não venceu). O torneio de 2002 foi vencido com o fenômeno, após amarelar em 1998, já totalmente submetido ao marketing do dedinho da cervejaria levantado. Nada perto do soco no ar imortalizado pelo Rei. Para não mencionar as humilhações da final de 1998 (ainda mais quando comparada com a semifinal contra a França em 1958, quando Pelé marcou três vezes na goleada contra a França – o Rei não amarelava nem aos 17 anos) e da semifinal contra a Alemanha em 2014. Não surpreende que não tenham ido se despedir e prestar as últimas homenagens ao maior de todos os tempos. Seus feitos somados não superam, para ficar em uma modalidade apenas, o tricampeonato mundial do Rei.

A decadência é clara e não se limita ao aspecto esportivo, avançando nos costumes. Basta comparar as mensagens de Pelé nas suas despedidas/celebrações. Ao encerrar sua carreira no Cosmos, o Rei Pelé desejou ao mundo amor, amor, amor. Antes, após marcar o histórico milésimo gol no mágico Maracanã, Pelé homenageou as crianças, as pessoas com deficiência, os idosos e o pobres do País: “Pelo amor de Deus, olha o Natal das crianças, olha Natal das pessoas pobres, dos velhinhos cegos. Tem tantas instituições de caridade por aí. Pelo amor de Deus, vamos pensar nessas pessoas. Não vamos pensar só em festa. Ouça o que eu estou falando. É um apelo, pelo amor de Deus. Muito obrigado”. Porque não é apenas futebol. A  lembrança de Lula reaparece novamente nas falas do Deus Negro do futebol. No jogo de comemoração do seu meio século de vida, entrou em campo com um uniforme clamando por Paz. É fácil ver o abismo com as gerações atuais. Os grandes jogadores brasileiros de hoje, de cada quatro palavras, três são “Glória a Deus”. E fazem arminhas.  Felizmente, não foram e agora nunca serão dignos de amarrar as chuteiras do Rei. Um projeto viável de Nação ficou perdido em algum lugar durante os anos mágicos do Rei no Santos e no time da CBD.

Falando em crianças, para voltar ao tema Pais e Filhos, é inimaginável pensar que meu filho, ou qualquer outra criança da idade dele, possa ganhar a copa do mundo de 2034, quando terão a idade com que o Pelé se tornou Rei e teve uma apresentação magistral na copa de 1958. Isso mostra o quão especial era o Rei e sua dádiva. Assim, que histórias do futebol vou contar para o meu pequeno quando ele adquirir consciência futebolística? Vou contar que vi Neymar jogar ao vivo? Não, obrigado. Não há motivo para se gabar. Robinho? Também vi jogar, encantar e pedalar. Desnecessário tecer qualquer comentário adicional aqui. Com a criança Rodrygo não deu nem mesmo para cogitar acompanhar uma temporada. Melhor nos socializarmos no verdadeiro futebol arte pela tecnologia digital, para o qual minhas histórias podem ser redundantes, pois tudo que havia para ser dito sobre o Rei já foi feito e, dizem, uma imagem vale por mil palavras (mas não tem qualquer afeto interpessoal). Então, Pelé, por ser de fato Eterno, com seu característico e belíssimo sorriso, seguirá sendo o ídolo do meu pai, meu e do meu filho, quando ele aprender o que é o futebol. 

(*) Gratíssimo súdito do Rei Pelé

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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