Opinião
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10 de maio de 2022
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07:30

‘Eu sei o que é melhor para você’ (Coluna da APPOA)

Imagem: Gerd Altmann/Pixabay
Imagem: Gerd Altmann/Pixabay

 Inajara Erthal (*)

“Quando uso uma palavra” – disse Humpty Dumpty num tom zangado – “ela significa exatamente o que eu quero que ela signifique – nem mais nem menos.” “A questão”, disse Alice, “é se você pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes.” “A questão” – disse Humpty Dumpty – “é saber qual o significado mais importante – isso é tudo”.

Lewis Carroll, “Alice no País das Maravilhas”

Minha motivação para escrever este pequeno texto é a urgência que produziu em mim a fala do presidente da república dizendo que as Forças Armadas do país sabem o que é melhor para a Nação. Pois bem, gostaria de retomar a frase dita, muitas vezes, pelos pais aos seus filhos e filhas: “eu sei o que é melhor para você”. Certamente um pai e uma mãe precisam acreditar neste saber prévio para dar conta da difícil, incrível e complexa tarefa de acompanhar um sujeito, melhor, de tornar o filho e a filha sujeitos. Porém, o paradoxal de tal tarefa é que, para sermos sujeitos, precisamos adquirir a alteridade (processo que nos leva reconhecer as diferenças na relação com o outro) que nos possibilite prescindir, justamente, do pai e da mãe, poder andar na vida sem sermos tutelados por outros. Alteridade, portanto, é o que nos possibilita interagir com outros.

Pensemos, muito rapidamente, como ocorre este processo de alteridade subjetiva. Depois da necessária alienação primordial, que coloca a criança num submetimento das, vamos dizer assim, vontades e caprichos do outro, esta mesma criança, precisa ir construindo suas maneiras de mostrar a este outro os limites de seu acesso ao corpo e a vida da criança. Processo que vai sendo edificado ao longo da vida, mas, esperamos que lá pelo final da adolescência possamos dar conta, minimamente, das nossas escolhas. Ao menos no que diz respeito à construção de litorais para possibilitar enlaces em que o sujeito esteja sempre implicado e atuante na responsabilização das consequências das suas escolhas.

A clínica nos dá testemunho das dificuldades que o sujeito se encontra quando não consegue construir um litoral, ou seja, as balizas que lhe possibilitem produzir escolhas, vamos dizer, por sua conta e risco. Para não nos alongarmos, uma delas, por exemplo, é a construção de relações tóxicas, organizadas a partir da necessidade de um acompanhante, que em tais condições, se torna imprescindível para que o sujeito evite a fobia gerada pela necessária escolha frente a vida. Precisando sempre de um outro que o segure e escolha por ele. Pois bem, isto é o que pode ocorrer na vida de um sujeito às voltas com o curso da sua dificuldade em construir alteridade. 

Por aí, podemos nos perguntar, que consequências quando, como Nação, escolhemos para presidir o país, um mandatário que coloca nas Forças Armadas a condição de saber o que é melhor. Tirando, assim, a possibilidade de escolha dos que realmente devem decidir os rumos, o povo. Quando deixamos para o outro escolher por nós estamos fazendo uma economia que nos jogará num rumo incerto e pior, pode nos levar a pagar o preço com o nosso submetimento a este autoritário que toma a tirania por princípio quando se coloca no lugar de quem sabe. 

Assim, esta fala do nosso hodierno presidente, indica o quanto precisamos estar atentos e vigilantes para não perdermos nossa condição de sujeitos. Pois, para as Forças Armadas, ou qualquer outra instituição, se colocar nesta via de saber o que é melhor para uma Nação tão diversa como o Brasil, implicaria excluir as contradições, ou seja, os saberes que se opõe, precisaria tirar do cidadão brasileiro sua condição de alteridade.

(*) Psicóloga e psicanalista, membro da APPOA e do Instituto APPOA. Mestre em Psicanálise: Clínica e Cultura pela UFRGS e-mail: [email protected]

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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