Opinião
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27 de março de 2022
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08:32

Os 250 anos de POA pertencem à população e não aos governantes de plantão: contra as ‘boiadas’ que degradam o meio ambiente

Retrocessos na área ambiental em Porto Alegre cresceram nos últimos anos. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)
Retrocessos na área ambiental em Porto Alegre cresceram nos últimos anos. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

InGá, Agapan, Mães e Pais pela Democracia e Coletivo Ambiente Crítico (*)

Nas comemorações dos 250 anos da cidade de Porto Alegre, vimos trazer a público e ao prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, nosso protesto quanto a um conjunto de descasos e enfraquecimentos deliberados da gestão ambiental, que incluem a venda do patrimônio público da capital do Estado. Entretanto, um dos pontos de esquecimento de parte do governo, nesta data, é que o território de nossa cidade já era habitado por povos indígenas, há milhares de anos.

Os retrocessos na área ambiental da Prefeitura Municipal (PMPA) são vários, representados não somente pelo enfraquecimento da estrutura de gestão ambiental, já referida como “apagão” na área, em documento elaborado por diversas entidades, em 11 de fevereiro de 2021, encaminhado à prefeitura, mas nunca respondido tanto pelo chefe do executivo municipal quanto pelo chefe da pasta de meio ambiente.

Um dos principais itens reivindicados no documento acima citado é justamente a ausência de prioridade na área ambiental, enquanto é constatada como prioridade pelo mercado imobiliário, onde, na crista da onda neoliberal, privatizam-se espaços e patrimônios públicos, mantendo um ambiente de negócios e clientelismo também nos espaços de poder da cidade.

Ou seja, um dos principais eixos da administração municipal, em consonância com a maioria dos membros da Câmara de Vereadores, se traduz no ataque à proteção do meio ambiente, como estratégia de fortalecer grandes setores econômicos e seus oligopólios, com visão e práticas gananciosas e imediatistas.

O processo acelerado de desmanche da proteção da área ambiental do município de Porto Alegre vem, pelo menos, desde o governo de Nélson Marchezan Jr., e se consolida hoje. Recentemente o executivo elaborou e encaminhou um projeto de lei que permite a venda do prédio da Primeira Secretaria Municipal do Meio Ambiente do Brasil, fundada em 1976, junto com mais de 90 outros próprios municipais. A proposta representará um ataque à estrutura física da prefeitura e também maior dependência financeira do setor privado que providenciará, então, alugueis – com nosso dinheiro – para sediar áreas de serviços públicos essenciais, até então em imóveis públicos. Cabe lembrar, entretanto, que há cerca de um ano, o secretário de meio ambiente, Germano Bremm, havia declarado publicamente a permanência da Biblioteca Municipal na sede da SMAMUS, após protestos e mobilizações contra a ideia de retirarem, da sede da Secretaria, um dos maiores acervos de publicações ambientais do Estado. Por outro lado, já funciona com maior ênfase um escritório de licenciamentos ou balcão de licenças em áreas fora da SMAMUS.

No início da atual gestão municipal, em 2021, o prefeito Sebastião Melo modificou o nome, o caráter e a atribuição da SMAM, passando para ser chamada de Secretaria de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade, SMAMUS, por meio da aprovação do Projeto de Lei Complementar (PLC) n. 001/21. A área de urbanismo não consta no marco da legislação ambiental brasileira, ou seja, a Política Nacional de Meio Ambiente (Lei n. 6.938/1981) define o papel central do órgão de meio ambiente nas políticas e na gestão do tema. Tal mudança não passou por consulta ao Conselho Municipal de Meio Ambiente (COMAM) e à população porto-alegrense. A inclusão de urbanismo, ou infraestrutura urbanística, no órgão ambiental destrói a autonomia da pasta de meio ambiente, principalmente no que tange ao licenciamento, criando conflito de interesse com relação ao poder de Estado e dos serviços públicos entregues de bandeja a grandes grupos econômicos do setor imobiliário e da construção civil.

Torna-se evidente a submissão da administração à lógica da expansão urbana predatória, carro chefe desta e das últimas gestões da Prefeitura de Porto Alegre. A administração municipal retoma, na prática, a extinção da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, desejo explícito do ex-prefeito. Coincidentemente, ou não, o secretário da SMAMUS é o mesmo do governo anterior, a despeito do ex-prefeito ter sido derrotado na eleição de 2020.

Na esteira de fragilização do poder público na gestão ambiental, a prefeitura vem levando a cabo, de forma atropelada, leis de flexibilização ambiental. Em destaque, podemos citar o Licenciamento Ambiental por Compromisso (LAC), ou Autolicenciamento, contestado pela Procuradoria Geral da República (PGR) no Supremo Tribunal Federal (STF), pois tenta retirar o papel constitucional intransferível dos órgãos de Estado no licenciamento, o que resulta em benefícios evidentes a setores econômicos.

Outras iniciativas de perversidades, em meio a Covid-19, têm relação à modificação do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (PDDUA), sem a possibilidade da realização de reuniões presenciais e participação da população, situação que motivou recomendações do Ministério Público Estadual para que fosse interrompido o processo de mudanças no PDDUA, em meio ao quadro da pandemia, tornando-os mais permissivos à especulação imobiliária.

Neste aspecto, destacamos projetos urbanísticos em áreas da orla e áreas naturais, que se consolidou por meio do PLC 016/2020, favorecendo o grande empreendimento imobiliário Fazenda Arado Velho. A nova lei, que atropela os órgãos de meio ambiente, permite a ocupação urbana adensada numa das maiores Áreas de Proteção ao Ambiente Natural (APAN) da Zona Sul de Porto Alegre. Trata-se de um empreendimento com 426 hectares (10 vezes a área do Parque Farroupilha), com predomínio de ecossistemas naturais, ocupação de comunidade guarani e paisagem rural, especialmente na Ponta do Arado, transformada em Área de Uso Intensivo. Este projeto visa sua implantação urbanística com mais de 2 mil residências de alta e média classe, com muito concreto e asfalto, na última maior área verde natural do bairro Belém Novo. Pode expulsar ocupação secular de território do povo Guarani, destruindo também Áreas de Preservação Permanente da orla do Guaíba, como banhados, matas, restingas e campos nativos, que abrigam muitas espécies de flora e fauna ameaçadas de extinção, protegidas pela Lei da Mata Atlântica (Lei Federal 11.428/2006) e Lei Orgânica de Porto Alegre.

Da mesma forma, outras investidas de parte da prefeitura tentam facilitar a ocupação privada de áreas da orla do Guaíba, especialmente em áreas públicas no Cais do Porto, ou outras áreas descaracterizando a paisagem, por meio de altas edificações, como no caso de empreendimentos ou torres elevadas junto ao Esporte Clube Internacional, em área de aterro público realizado na década de 1970, junto à avenida Padre Cacique.

No clima da entrega do patrimônio público, recentemente, a PMPA deu continuidade à transferência de 80% da propriedade do terreno, com áreas naturais, do Parque Municipal Saint-Hilaire à prefeitura de Viamão, que não tem recursos e capacidade de gerenciar a área de enorme relevância em proteção à biodiversidade e também ao lazer. A prefeitura de Porto Alegre desvencilhou-se de um patrimônio público que que correspondia a maior área verde de próprio municipal, em área que representa cerca de 20 vezes o tamanho do Parque Farroupilha. A Prefeitura Municipal de Porto Alegre já vem, desde a administração anterior, elaborando esta proposta de entregar este patrimônio natural, à outra prefeitura vizinha, junto com a Câmara de Vereadores, sem ao menos consultar a área técnica da Secretaria de Meio Ambiente nem mesmo o COMAM.

Outro aspecto que consagra o esvaziamento da histórica Secretaria Municipal de Meio Ambiente é a manutenção do fechamento das Zonas de Arborização, além da permissão de mutilações e cortes indiscriminados de árvores, denunciados semanalmente pela população, com o simultâneo abandono do Plano Diretor de Arborização Urbana, praticamente abandonado também pela aposentadoria, sem reposição, de técnicos na área. Apesar da declaração de compromisso do atual prefeito em retomar o Viveiro Municipal, o contingente de funcionários é insuficiente para uma produção com qualidade de mudas de árvores nativas e outras plantas que compõem a biodiversidade do município.

Por outro lado, a manutenção de praças e parques e o manejo de árvores em locais públicos, que deveria ser atribuição da SMAMUS, segue sendo realizada pela Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (SMSURB). A nova (des)estrutura da secretaria de meio ambiente, além do desvio de sua finalidade, teve prejuízos na gestão ambiental municipal, sendo a parte da arborização a mais evidente, com a transferência de funções para outra secretaria que promove a poda, a supressão e a intervenção drástica na vegetação urbana.

A aposentadoria progressiva, sem reposição, e a crônica ausência de técnicos concursados na área ambiental, com os últimos concursos públicos realizados há cerca de 25 anos, facilita a terceirização e a mistura entre interesses privados e públicos, o que não é concebível na área ambiental. Os técnicos que analisam pedidos de licenças têm que ter estabilidade, autonomia, tempo suficiente para analisar processos de requerimentos e possuir liberdade de julgamento e decisão.

No que toca ao Fundo Pró-Ambiente do Município (FUNPROAMB), que obtém recursos de multas e visa a compensação de danos ambientais, correspondendo a muitos milhões de reais que deveriam ser investidos em projetos especiais de proteção ambiental, o mesmo continua sendo alvo de tapar buracos do orçamento da prefeitura. Permanece há 5 (cinco) anos o cancelamento do último Edital Público (2016) que contemplava projetos de entidades ambientalistas, para a melhoria da proteção e gestão ambiental. Infelizmente, tal fundo atualmente configura desvios de sua finalidade, em áreas de custeio de atividades diárias, que vão desde a varrição de praças, investimento de concreto em áreas verdes e a manutenção do Cemitério Municipal. Enquanto isso, as Unidades de Conservação, que não recebem os aportes devidos do orçamento da PMPA, esperam há anos, quase sem sucesso, para receber os recursos do FUNPROAMB. Lembrando-se das Unidades de Conservação Municipais têm seus Conselhos Consultivos também desfeitos há mais de dois anos.

Na área de meio ambiente urbano, rural ou natural do município, torna-se também evidente a continuidade do esvaziamento de atividades como a fiscalização do ambiente natural, mesmo frente à grilagem de terras e loteamentos ilegais no extremo sul do município, corte indiscriminado de árvores, a fragilização da Educação Ambiental por parte do quadro da SMAMUS e demais secretarias associadas ao tema, em especial a SMED, onde a Educação Ambiental foi desfeita junto com a desvalorização constantes dos professores municipais, nestas últimas gestões.

No que se refere ao Conselho Municipal de Meio Ambiente (COMAM), desde meados de 2017, a partir da gestão do prefeito Marchezan Jr., houve um Edital que excluiu a representatividade das entidades ambientalistas, reunidas há mais de três décadas em seu fórum legítimo, a Apedema. Este processo, que incorporou um sorteio, ou “bingo”, à semelhança de iniciativa do governo Bolsonaro, em esvaziar o CONAMA, segue atualmente na gestão do Prefeito Sebastião Melo. A intenção é tirar a autonomia e combatividade das entidades que representam a sociedade e alinhar outras entidades, que não representam o setor, aos pleitos da prefeitura e dos setores econômicos que lhe dão apoio.

O Conselho do Plano Diretor Urbano e Ambiental (CMDUA) também é submetido à pressão governamental para aprovações repentinas de projetos altamente questionáveis, em processos de modificações estruturais que envolvem o regime urbanístico de áreas do município ou mesmo em temas que impliquem em facilitação de licenciamentos de projetos de lei ligados à área ambiental enviados à Câmara de Vereadores de Porto Alegre.

Que município e que cidade queremos?

Porto Alegre é um município de cerca de 49 mil hectares, que envolve áreas urbanas, rurais e naturais, e conta com muita história, cultura e sociobiodiversidade. Temos que comemorar a beleza paisagística dos morros graníticos, bordeados de formações florestais de Mata Atlântica, ponteados de nascentes e coroados por campos nativos do Pampa, cortados por arroios que vão desembocar na excepcional paisagem da orla do rio-lago Guaíba, com suas lindas praias e vegetação de restingas, fortemente ameaçadas por condomínios fechados, grandes empreendimentos que destroem biodiversidade e paisagem.

Lembremos que aqui surgiu o Fórum Social Mundial, por um Outro Mundo Possível e cada vez mais Necessário. Aqui surgiu a primeira Secretaria Municipal de Meio Ambiente e a primeira Reserva Biológica do Brasil. Não por acaso, aqui nasceu a entidade ambientalista mais antiga do país, a AGAPAN. Assim, não vamos deixar de comemorar as conquistas da sociedade, com alegria, junto aos porto-alegrenses, e os 250 anos de Porto Alegre pertencem à população e não aos governantes de plantão.

Queremos uma estrutura pública de gestão da cidade que fortaleça os órgãos públicos, sem a venda do nosso patrimônio, mantendo o histórico de órgãos que muito contribuíram para a qualidade de vida dos habitantes humanos e não humanos da cidade, como o DMAE, o DMLU, a SPM, a SMAM e suas Zonais, a SMED, a SMS, o DEMHAB, entre outros setores hoje esvaziados pela lógica da terceirização, estado mínimo e negócios máximos.

Temos que promover uma inversão de prioridades, com retorno de ênfase na urbanização em áreas mais centrais, com infraestrutura já consolidada, e não a extensão de infraestrutura, hoje inexistente, para áreas que são alvo da especulação imobiliária, mas têm vocação para a manutenção de paisagem natural, biodiversidade, produção rural orgânica e agroecológica. Destacamos a importância da constituição de um Cinturão Verde no Município, tema que foi um dos eixos da última Conferência Municipal de Meio Ambiente de Porto Alegre.

Este patrimônio natural e histórico-cultural pode gerar maior autoestima à população que aqui vive, turismo ecológico e rural, incremento da cultura local e do turismo que incentiva a valorização de diferenciais locais, nos aspectos típicos da capital. Lembremos de alguns diferenciais de Porto Alegre, no tocante ao aspecto histórico, das construções antigas da Cidade Baixa, no Cais do Porto, Cultural e Público, na Zona Rural que é importantíssima para a agroecologia e a menor dependência de alimentos, que vêm de fora e com resíduos de agrotóxicos. Nossa capital é uma das que mais reúne número de morros (44), a maior quantidade de feiras agroecológicas e orgânicas do País e possui também os Caminhos Rurais, que são uma estratégia de mostrar aos habitantes da capital e aos que vêm de fora de que aqui não precisamos do concreto para o convencional e questionável modelo de desenvolvimento, que concentra, degrada a biodiversidade, descaracteriza a paisagem e cria desigualdades.

(*) Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá), Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), Associação de Mães e Pais pela Democracia e Coletivo Ambiente Crítico

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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