Opinião
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31 de março de 2022
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07:30

O que precisamos saber sobre 64 no governo Bolsonaro (por Coletivo Testemunho e Ação/Sig Intervenções)

Foto: Marcos Correa/PR
Foto: Marcos Correa/PR

Coletivo Testemunho e Ação/Sig Intervenções – Sigmund Freud Associação Psicanalítica (*)

Algumas horas depois do último discurso do presidente da República João Goulart, tropas do exército da 4a Região Militar sediada em Juiz de Fora, MG, comandadas pelo general Olímpio Mourão Filho foram deslocadas em direção ao Rio de Janeiro para deflagrar o golpe civil militar de 31 de março de 1964. Foi o início de um dos períodos mais sombrios da história brasileira. Com a ruptura institucional do processo democrático, chamado de Revolução pelos seus protagonistas, iniciou-se um período de ataques à democracia e aos opositores do regime com prisões, torturas e morte. Durante os 21 anos do regime militar, cerca de 25 mil pessoas passaram pelas prisões e em torno de 10 mil partiram para o exílio.

Para além das celebrações públicas de comemoração do Golpe de 64 , o governo Bolsonaro chega em 2022 com a reedição de diversas atitudes antidemocráticas semelhantes às medidas de exceção empregadas no período. Militarização de governo, elevado emprego da Lei de Segurança Nacional entre 2019 e 2020 na perseguição de opositores, bem como a utilização da censura na educação e ciência, além da aberta apologia à tortura. Mas há muito mais a saber sobre o que vem sendo “desfeito” em relação a operar sobre a violência de Estado.

                        

 Como resultado de uma ampla mobilização social e política a Lei n 6683, a denominada Lei da Anistia do Brasil é sancionada pelo presidente general João Batista Figueiredo, em 28 de agosto de 1979. Beneficiando exilados e banidos  que voltaram ao Brasil, anulou processos nos tribunais militares tendo libertado presos políticos. Importante enfatizar que também favoreceu os militares e responsáveis pela prática de tortura, desta forma equiparando torturados e torturadores como anistiados.

A Comissão Nacional da Verdade fez um levantamento de 377 pessoas responsáveis por graves abusos contra os Direitos Humanos, porém crimes praticados pelos agentes do Estado até o presente não foram levados à Justiça. Nomes como o do delegado Sergio Paranhos Fleury, morto em 1º de maio de 1979 num suposto acidente à bordo de seu iate; coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-CODI do 2° Exercito, órgão atuante na repressão  da política e na tortura, questionado na Justiça e morto em 2015 sem sofrer indiciamento por crimes; assim como o ex-delegado Pedro Seelig, conhecido como “Fleury dos Pampas” que morreu no recente 9 de março, entre muitos outros, se mantém impunes.

Em 2012 o governo federal, dando continuidade ao processo de uma Justiça de Transição, lançou o projeto Clínicas do Testemunho, indo além das propostas de reparação pecuniária. Tal projeto, vinculado à Comissão de Anistia/Ministério da Justiça, deu início a uma política de reparação aos afetados direta e indiretamente pela violência de Estado cometida durante a ditadura. Durante 5 anos pessoas que nunca haviam falado sobre os efeitos da tortura e das mortes por desaparecimento forçados tiveram um espaço de fala e de escuta, fazendo o testemunho de suas histórias de vida durante a ditadura. Chama-se este processo de reparação psíquica. No Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Rio de Janeiro, foram realizados atendimentos individuais e grupais com 668 pessoas inscritas, perfazendo 5585 horas de atendimento. Ocorreram 566 Conversas Públicas com 8732 pessoas participantes, e capacitações de 2477 pessoas, entre elas profissionais da saúde, educação e segurança pública. Seis livros foram produzidos sobre a experiência do projeto Clínica dos Testemunhos. Ocorreram também as Caravanas de Anistia e o projeto Marcas da Memória, que buscavam resgatar a memória do ocorrido naqueles anos, reconhecendo o Estado brasileiro como perpetrador dos atos de violência ao fazer um pedido de desculpa ao anistiado. E assim se deu o início de ampla forma de reparação.

 Desde o início da Comissão de Anistia em 2002 até 2012 haviam sido reconhecidos 39.494 anistiados políticos [1] – pessoas que perderam seus trabalhos por demissões, deixaram o país para viver no exílio, ou sofreram na prisão tortura, morte ou “desaparecimento”. O status de anistiado político concedido às pessoas que sofreram perseguição por órgãos ou indivíduos ligados ao Estado brasileiro, entre os anos de 1946 e 1988, foi extinto em 2017, no governo Temer.                      

A atual Comissão de Anistia não reconhece a ditadura, enquanto o Governo Federal reduz mecanismos do Estado que admitem a violência nos anos de chumbo contra quem discordava do regime militar. Hoje em dia a política de transformar “anistiados em terroristas” e negar a própria ditadura na tentativa de reescrever a memória do ocorrido, repetem-se no tratamento dado a opositores e críticos da violência do Estado brasileiro.

Desde o Governo instaurado em 2019, os benefícios de reparação psíquica e de memória estão ameaçados. Segundo o jornal El País “houve uma queda exponencial nos deferimentos dos pedidos de anistia e um endurecimento das regras para solicitar o benefício durante gestão Jair Bolsonaro. Somente 10% dos pedidos feitos até o momento foram deferidos. O objetivo conforme relatado por interlocutores do Governo, é até o fim de 2022 extinguir a Comissão de Anistia, que é o colegiado responsável por analisar a documentação de todos os pedidos de reparação histórica feitos pelos perseguidos políticos”. 

Conforme noticiado na imprensa do país o presidente Bolsonaro retirou a Comissão de Anistia do guarda-chuva do Ministério da Justiça e o transferiu ainda em 2019 para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Assim, a Comissão de Anistia passou a ser comandada pela pastora e advogada Damares Alves, à quem cabe a decisão final sobre o recebimento das reparações financeiras. Em um de seus primeiros atos, Damares decidiu que entre os 27 membros da comissão, sete seriam militares ou teriam algum vínculo direto com a família Bolsonaro [2]. Desde então, a Ministra assinou 3.572 portarias que tratam de anistiados, indeferiu o pedido de 2.402 (65%) requerentes, deferiu 363 (1,3%) e anulou 807 (33%) anistias que já haviam sido concedidas em outros Governos. 

Neste panorama assinalamos que a revisão da Lei de Anistia não evolui: sustenta-se a equiparação de torturados e torturadores como anistiados dos crimes cometidos.  A condição de anistiados, desaparecendo do cenário do governo nacional, serve ao intuito de desativar a necessária e bastante tardia Justiça de Transição no Brasil.

Em continuidade às mudanças promovidas por Temer, Bolsonaro transferiu o Arquivo da Casa Civil para o Ministério da Justiça e Segurança, lugar estratégico para a boa gestão de documentos públicos federais, entretanto nomeando pessoas sem experiência e qualificação na área. O mais grave porém é a continuidade da política de não divulgação dos acervos da ditadura militar que, desde 2005 eram recolhidos ao Arquivo e constituíram o Portal Memórias Reveladas. Este Portal desenvolvido em 2009 tornou-se o principal banco de dados da internet. Formado por milhares de documentos oriundos das mais diversas instituições públicas, é capaz de revelar o funcionamento dos órgãos de repressão e espionagem, além das lutas de resistência no período. Pergunta-se também sobre o destino do Concurso de Monografia criado para estimular o acesso às informações, onde o pesquisador teria que usar como fonte de seu trabalho os documentos aí existentes. Esse concurso, a ser realizado de dois em dois anos, previa como premiação a publicação da obra selecionada. Em 2017/2018 o concurso e seleção da obra vencedora não obtiveram publicação, ou seja, Temer não publicou e Bolsonaro sequer promoveu novo concurso.

Mas é durante a gestão do Ministro da Justiça e Segurança Sérgio Moro, que ocorrem algumas das mudanças mais drásticas em relação ao Arquivo. Alteração que possibilitou aos órgãos da administração pública federal eliminar seus próprios documentos, desobrigados de passarem pela análise dos técnicos desta Instituição.  Advinda do Decreto 10.148 de 02 de dezembro de 2019,  outra alteração importante foi a que modificou a composição e funcionamento do Conselho Nacional de Arquivos, órgão colegiado composto por diferentes câmaras técnicas e parceiro na promulgação de leis e procedimentos a serem adotados pelas instituições do país. Assessoria que nunca funcionou até os dias de hoje.

Tais modificações na prática não só aniquilam as políticas arquivísticas estabelecidas pelo Arquivo Nacional, como também retiram sua autoridade para estabelecer e promulgar políticas no setor. A eliminação de documentos normatizada por este decreto impõe mais do que o caos na gestão documental: significa o fim do acesso às informações públicas.  Denúncias de servidores da Casa Civil, divulgadas em diferentes meios de comunicação do país, expõem a decisão da Diretora da Instituição de retirada das expressões “ditadura” e “tortura” dos documentos de natureza militar que servem à pesquisa e dificultam cada vez mais o acesso a estes documentos. Não causa surpresa acrescentarem que a política de recolhimento de parte deste acervo, que ainda se situa em Brasília, não acontece mais, sonegando-se assim a História Brasileira.

A sucessão de atos administrativos desqualificadores do Arquivo Nacional vão da nomeação de pessoas com experiência e qualificação que não cumprem a legislação exigida, como a de Ricardo Borda D’Água (ex-segurança do BB e ex-subsecretário de Segurança Pública do DF) para a direção da Casa e à exoneração de servidoras qualificadas, como Dilma Cabral da Costa e Cláudia Lacombe Rocha, por críticas a gestão de documentos e do Arquivo. Poderiam ser citados outros movimentos de pessoal entre os servidores, de caráter meramente punitivo.

  O interesse do governo federal por apagar os crimes e horrores cometidos neste período, de forma a suprimir não apenas a verdade, mas impedir a identificação dos responsáveis pelas barbaridades realizadas é inegável. 

Estas diretrizes caracterizam uma expressa intenção em desestruturar as políticas implementadas há décadas pelo Arquivo Nacional, não apenas para os seus diferentes acervos, mas também para os demais arquivos do país.  O desmonte das instituições de memória oficial se confirma: ações deste tipo já foram executadas em relação à Biblioteca Nacional, ao Museu Histórico Nacional e a Casa Rui Barbosa. A prática do sigilo e da censura sobre os documentos do período da Ditadura Militar mostra que a Lei de Acesso foi extinta na prática, impedindo o livre acesso a informações e a prestação de contas sobre questões que são de natureza pública. 

Abrem-se assim as possibilidades de que governos sobreponham seus projetos de manutenção de poder aos compromissos éticos e públicos de uma sociedade menos violenta; implicações tais como retirar de um país a possibilidade de aprender com sua própria história parecem ser naturais e legítimas às políticas de Estado.  

 Como já dissemos muitas vezes e não cansamos de repetir: um país que não preserva sua história e escamoteia o seu presente não pode construir um futuro.

Lutamos por Verdade, Memória e Justiça!

Notas

[1]  Diário Oficial da União e relatórios da Comissão de Anistia

[2]  El País, 10.04.2021, texto de Afonso Benites

(*) Coletivo Testemunho e Ação/Sig Intervenções – Sigmund Freud Associação Psicanalítica

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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