Opinião
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11 de fevereiro de 2022
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18:56

Jardim Botânico de Porto Alegre: não há ‘turismo sustentável’ solapando a conservação ambiental

Jardim Botânico tem coleções de plantas raras. (Foto: Maia Rubim/Sul21)
Jardim Botânico tem coleções de plantas raras. (Foto: Maia Rubim/Sul21)

João Pedro Baraldo Mello, Júlia Fialho Soares, Marina Vieira da Rosa e Willian Souza Piovesani (*)

Já na década de 1970, havia evidências de que aproximadamente 20% da diversidade vegetal mundial estava ameaçada de extinção como resultado principalmente de atividades antropogênicas. Os jardins botânicos passaram, então, a ter como uma de suas principais atribuições a conservação ex situ de plantas, especialmente das ameaçadas. Existem aproximadamente 3 mil jardins botânicos distribuídos por 180 países, os quais abrigam em torno de 105 mil das 350 mil espécies de plantas vivas conhecidas, além de receberem cerca de 500 milhões de visitantes por ano.

Dentre os jardins botânicos classificados como categoria A pelo Jardim Botânico do Rio de Janeiro que está subordinado ao Ministério do Meio Ambiente, à exceçãodo  Jardim Botânico de São Paulo, os demais possuem administração pública não concessionada. A minuta de contrato prevê que a concessionária apoie financeiramente iniciativas que mantenham o Jardim Botânico de Porto Alegre (JBPOA) na categoria A com a destinação de recursos supostamente exclusivos para tanto; porém, abre margem para eles serem destinados a outros fins. O valor mencionado na minuta de contrato é de 1,16% da receita operacional bruta (ROB) auferida pela concessionária, a ser empregado na continuidade das atividades intituladas de ENCARGOS ACESSÓRIOS. Dentre as atividades a serem financiadas, encontram-se listadas as “iniciativas relacionadas às coleções especiais do JARDIM BOTÂNICO DE PORTO ALEGRE representativas da flora nativa do Estado”. Não há um detalhamento sobre quais são as referidas iniciativas a serem implementadas pela concessionária, assim como não está claro se e como essa porcentagem será suficiente para custear as despesas relativas a essas atividades.

Existem no JBPOA 29 coleções científicas, as quais somam cerca de 4.300 plantas. São deveres do JBPOA e de seu quadro técnico especializado a manutenção e o incremento constante dessas coleções, afinal esse é um dos objetivos centrais de um jardim botânico, regido em normas internacionais. É preciso que se esclareça no edital de concessão sobre como serão organizadas as equipes responsáveis pela curadoria das coleções, garantindo-se a correta delegação de funções a todos os funcionários que hoje trabalham no JBPOA (técnicos e jardineiros). Além disso, será obrigação da concessionária a revisão periódica das instalações onde se localizam as plantas envasadas (bromeliário,  cactário e orquidário), de modo a se evitar perdas de espécies sensíveis pela inadequação da infraestrutura.

Sabe-se que a flora do Rio Grande do Sul apresenta em torno de 4.650 espécies, das quais 1.230 têm seu estado de conservação avaliado. 789 espécies vasculares foram categorizadas como ameaçadas de extinção no estado. No JBPOA, 19% dessas espécies estão conservadas nas coleções, isto é, 145. Considerando todos os jardins botânicos brasileiros, o de Porto Alegre é o que apresenta o segundo maior número de espécies ameaçadas. No plano de concessão da instituição, esses dados não são mencionados e, consequentemente, não há informações sobre o que e como será feito para manter essas espécies e, principalmente, aumentar esse acervo. Deve ser prioridade o planejamento levando em consideração tais aspectos, já que esse é o principal objetivo do jardim botânico enquanto instituição de pesquisa em prol da conservação e também um dos principais atrativos à visitação do público em geral e escolar. Sem a conservação das espécies da flora, especialmente ameaçadas e nativas do Rio Grande do Sul, o jardim botânico transformar-se-ia em uma simples praça arborizada, sem nenhum atrativo diferencial.

A ausência de um órgão mediador e gestor entre o estado e a concessionária, o qual seja composto por técnicos especialistas nos objetivos de jardins botânicos é uma ameaça à manutenção da condição de excelência do JBPOA, representada pela categoria A, e à própria conservação ambiental do espaço no qual o Jardim se encontra. Recentemente, antes da possível concessão, o plano diretor do JBPOA já vinha sendo alterado sem diálogo com pesquisadores e técnicos da área, mudando categorias de uso no zoneamento do Jardim. Como garantir, então, a integridade das coleções e a conservação, principal fim de um jardim botânico, se a demanda por modificações tende a aumentar e é feita sem avaliações técnicas? Deixar todas as decisões exclusivamente à Secretaria de Meio Ambiente (SEMA) é temerário, pois ela está sujeita a diferentes visões políticas de cada governo. É preciso que haja uma instância composta por técnicos vinculados ao JBPOA para mediar e garantir a manutenção dos objetivos de um jardim botânico perante as propostas de modificações.

Além disso, a pesquisa científica desenvolvida no JBPOA é de extrema importância, não só para conhecimento e conservação da flora do estado do Rio Grande do Sul, mas também para cumprir com as exigências ambientais com as quais o estado do Rio Grande do Sul está comprometido legalmente. Desde 2015, há um evidente sucateamento da instituição, potencializado com as sucessivas tentativas de extinção que culminaram na lei Nº 14.982/17 e no decreto Nº 54.268/18, que preveem a demissão de funcionários responsáveis por algumas das atividades citadas anteriormente.

Como o quadro técnico-científico pode ser compatível com as atividades a serem realizadas, se o plano segue sendo a demissão dos atuais funcionários? Fica inviável, mesmo com a contratação de novos técnicos, pois estaríamos perdendo especialistas com experiência na área. O desenvolvimento de programas de pesquisa que visem à conservação e à preservação das espécies deve ser uma prioridade. Já há uma dificuldade de manter o programa de publicação técnico-científica, considerando a demissão de funcionários da Revista Iheringia, sér. Botânica. A pesquisa científica realizada no JBPOA foi, durante muito tempo, também atrelada a bolsistas de Iniciação Científica (IC), atuando, também, na formação desses alunos como pesquisadores; com a extinção do CNPJ da Fundação Zoobotânica (FZB), bolsas de pesquisa não foram mais concedidas ao JBPOA, e, atualmente, não há alunos de IC vinculados ao JBPOA, bem como não há, desde 2018, vagas para estudantes realizarem estágios curriculares não-remunerados.

É grave que o processo de concessão esteja sendo conduzido de forma unilateral pelo governo, excluindo do diálogo os próprios técnicos do Jardim Botânico, da SEMA, de pesquisadores e da sociedade civil organizada e, consequentemente, desconsiderando suas sugestões. Tal comportamento coloca em risco as principais atribuições do JBPOA, todas em prol da conservação da biodiversidade. Na proposta, não há preocupação com explicar como serão protegidas as espécies ameaçadas, como serão expandidas e mantidas as coleções de plantas, como serão geridas as alterações físicas no Jardim e como será mantida a pesquisa científica. Desde o processo de extinção da FZB, a assunção das atividades pela SEMA não foi completamente resolvida, com o processo de concessão e possível demissão dos atuais técnicos é provável que isso se agrave. Há, portanto, um risco aos objetivos de um jardim botânico estabelecidos na Resolução CONAMA 339/2003 e o processo de concessão deve ser interrompido. Sem atenção a essas demandas, o JBPOA será descaracterizado e nem mesmo o que a proposta de concessão chama de “turismo sustentável” ocorrerá, pois não é possível haver sustentabilidade solapando a conservação ambiental.

João Pedro Baraldo Mello – biólogo, mestrando em Ecologia e ex-bolsista de iniciação científica da FZB

Júlia Fialho Soares – bióloga, mestra em Botânica e ex-bolsista de iniciação científica da FZB

Marina Vieira da Rosa – bióloga, mestra em Ecologia e ex-bolsista de iniciação científica da FZB

Willian Souza Piovesani – biólogo, mestrando em Botânica e ex-bolsista de iniciação científica da FZB

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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